Sandra Helena de Souza – Golpe: o conjunto da obra

Por *Sandra Helena de Souza

Golpe

A sequência de quatro atos sobre o período de exceção pós-64 do jornalista Elio Gaspari começa com o título: A Ditadura Envergonhada. Nosso golpe de 2016 foi concebido, entretanto, já no segundo: escancarado (e espetacular).

Em entrevista ao jornalista Glenn Grenwald do The Intercept, a presidente eleita, perguntada sobre por que insiste em dizer golpe o impeachment que sofre, ao mesmo tempo em que, numa ‘aparente’ contradição, afirma que os procedimentos são até aqui absolutamente legais, aponta a contradição da própria realidade atual que ela pretende levar ao paroxismo. Bingo.

Do que se trata, afinal? Da mudança do layout do golpe. No contexto da guerra fria as oligarquias latino-americanas insatisfeitas com avanços progressistas usavam as forças armadas, o pretexto da ameaça comunista e ponto final (e ainda assim se envergonhavam, como assinala Gaspari). Hoje a absorção desse modelo parece impossível tanto local quanto internacionalmente. Assim, a figura do impeachment serve aos mesmos velhos propósitos e é justamente ao insistirem os golpistas em sua lisura e na manutenção da democracia que reside a grande antinomia: não podem impedir a resistência, as ruidosas manifestações e tem que responder às ações dos operadores do judiciário que, dentro e fora do País, questionam inclusive alguns dos procedimentos.

Ou seja, sem legitimidade não há como ter sossego e é custosa a manutenção da aparência de normalidade democrática. Terceiro ato: encurralado, o golpe é como a nova montagem de uma peça clássica ao gosto de audiências semianestesiadas enquanto uma multidão ruidosa quer acabar o espetáculo.

Alguns dos luminares do impeachment, – não falo dos manifestantes nas ruas que demandam ângulo diverso de análise – jornalistas, políticos e juristas, p. ex., reconhecendo o sofisma inescapável do mérito do pedido, costumavam aludir a um ‘conjunto da obra’ tão amplo que incluía a baixa popularidade da presidente, a ‘traição’ do programa eleitoral, os ‘11 milhões de desempregados’ etc.

Os que nos perfilamos na defesa da democracia e, antes, do estado de direito e da permanência da presidente eleita, alguns ainda relutávamos em ‘dizer do que é o que é’. Mas, empossado o governo interino, o despudor foi de tal magnitude, escancaradas as vísceras do enorme conglomerado – judiciário, midiático, empresarial e fundamentalista – com pantomimas grotescas, um traço radicalmente misógino, uma sem vergonha de desmontar e reformar estruturas político-administrativas de inclusão social e diversidade, que mesmo um governo eleito para tal teria mais cuidado em fazer, numa espécie de ‘ir com sede demais ao pote’, que já ninguém de boa-fé e mente sã é capaz de denegar: é golpe.

O contorcionismo dos apologetas do impeachment agora os leva à hilária atuação da surpresa, enquanto a resistência semiclandestina dos opositores acelera o quarto ato: a derrota do golpe.

Aos que, de todas as idades, amam o passado, arrisco pontificar: não, querid@s, isso não dura. O novo Brasil já chegou e exige futuro. A história não se repete.

Mas o quanto de farsa e tragédia haveremos de suportar? A luta nos dirá.

*Sandra Helena de Souza é professora de Filosofia da Unifor e membro do Instituto Latino-Americano de Estudos em Direito, Política e Democracia (ILAEDPD)

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