Nossa responsabilidade histórica é maior que nunca, diz líder das Farc

As Farc-EP (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia – Exército do Povo) abriram neste sábado (17) sua décima Conferência Nacional Guerrilheira, que reúne mais de 200 líderes guerrilheiros para discutir e aprovar o acordo de paz entre o grupo e o governo colombiano, cujo texto final foi alcançado em agosto após quatro anos de negociações.

Timoleón Jiménez - AFP

O acordo de paz, anunciado no dia 24 de agosto em Havana, Cuba, será assinado por Timoleón Jiménez, comandante em chefe das Farc e pelo presidente colombiano, Juan Manuel Santos, no dia 26 de setembro, em Cartagena, no norte da Colômbia. Para entrar em vigência, o acordo deverá ser aprovado pela população colombiana no “plebiscito pela paz”, que será realizado no dia 2 de outubro.

A última conferência das Farc como grupo armado acontece em Llanos del Yarí, região rural no sul da Colômbia. O foco do evento será estabelecer um plano de ação para transformar a guerrilha em um movimento político, com representação nos cargos eletivos do país, como prevê o acordo de paz negociado desde 2012 e estabelecido em Havana, Cuba, que põe fim a 52 anos de guerra entre o grupo armado e forças do governo.

Jiménez abriu a conferência com um emocionante discurso aos militantes da guerrilha.

Ele ressaltou o caráter histórico das Farc-EP, “se alguma coisa nos caracteriza desde o nosso surgimento é, precisamente, a natureza estritamente política, com base na ampla democracia, com diretrizes políticas, militares e culturais tecidas pelo conjunto de seus guerrilheiros, desde a sua primeira conferência nacional”, e encerrou sua intervenção com um apelo aos delegados e delegadas: “A nossa responsabilidade ética e histórica é maior do que nunca. Que os meninos e meninas da Colômbia tenham a chance real de crescerem e serem felizes em um país em paz. Apelo para que este seja o marco de referência de suas intervenções valiosas”.

Líderes das Farc comemoram vitória da guerrilha com o acordo de paz | Foto: AFP


 Ao fim da conferência, no dia 23 de setembro, as Farc anunciarão os passos seguintes para a conformação de um movimento político, assim como o nome que irão adotar. Para o encerramento está previsto o show “Abrindo caminhos pela paz”, que contará com vários artistas colombianos, entre os quais a cantora vencedora do Grammy Latino Totó La Momposina. 

O portal da Resistência traduziu o discurso de Timoleón. Leia na íntegra:

Camaradas,

Estamos aqui reunidos, depois de cinquenta e dois anos contínuos de confronto político e militar com o governo colombiano, com o objetivo de realizar a 10ª Conferência Nacional, o magno evento democrático referido em nossa Constituição. Além do Estado-Maior e seu Secretariado, os delegados aqui presentes, eleitos pelo voto nas Assembleias de Guerrilheiros realizadas em todas as Frentes, Colunas, Companhias e Guerrilha, constituindo a mais ampla representação possível de todos os guerrilheiros e guerrilheiras das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia – Exército do Povo.

Ao contrário do que os nossos adversários e críticos divulgam, as Farc-EP estão longe de ser uma organização de natureza exclusivamente militar, regida pelos critérios caprichosos de um corpo de gestores ambiciosos. Se alguma coisa nos caracteriza desde o nosso surgimento é, precisamente, a natureza estritamente política, com base na ampla democracia, com diretrizes políticas, militares e culturais tecidas pelo conjunto de seus guerrilheiros, desde a sua primeira conferência nacional. Estes são encarregados de designar os membros de sua direção nacional, por meio de votação dos seus integrantes, autorizados pelo grupo a gerir a execução das linhas traçadas pela organização e responder pelo seu desempenho até a próxima Conferência.

Pode ser comprovada a existência das células partidárias, nas quais os membros de cada grupo ou unidade de base têm total liberdade para apontar as falhas e equívocos tanto da direção, quanto de todos os seus militantes, nas reuniões semanais ou quinzenais, das quais os comandantes de todos os escalões são obrigados a participar, sem direito a ocupar cargos de representação, que de alguma forma possam restringir a livre expressão do coletivo.

É possível também propagar a continua prática de balanços, pelos quais os guerrilheiros têm o pleno direito de expressarem a sua opinião sobre as tarefas ou missões, objeto de análise. E a realização das Assembleias de base em cada unidade, ao menos uma vez por ano, onde o coletivo se reúne, analisa e discute o trabalho realizado pelos dirigentes e combatentes de base, durante o período em análise.

Sem dúvida, esta tem sido a prática democrática contínua, o que nos permitiu permanecer coesos e unidos firmemente, frente aos enormes desafios de natureza militar e política, com os quais nos deparamos ao longo destas cinco décadas. Graças a esta prática democrática, seguimos sempre adiante, confiantes de que nossas decisões e ações não são o produto de qualquer genialidade individual, mas do amadurecimento de um pensamento coletivo cuidadosamente construído com a cooperação de todos. E é por isso que na execução de todas as nossas políticas, os combatentes das Farc-EP agem com o entusiasmo de quem sabe que o seu compromisso é com uma causa comum, e assim dão o melhor de si, com a plena convicção de fazer o certo.

Aqueles que desconhecem a natureza das Farc, não conseguem explicar como os 48 camponeses marquetalianos[1], passaram a ser milhares de homens e mulheres que compõem a formidável organização que nos tornamos depois de décadas de luta e, portanto, procuram explicar o prodigioso fato histórico, com teorias aventureiras, sempre voltadas a ignorar a poderosa força criativa da consciência e organização popular. Um povo unido e devidamente organizado, é uma força invencível.

As Farc não só resistiram à maior e mais violenta investida lançada pelo imperialismo e seus aliados do capital nacional e pelo latifúndio, contra um exército guerrilheiro e um povo que se declarou em rebelião, mas conseguimos sentar em uma mesa de negociação com eles para levar adiante um Acordo Final de Término do Conflito, que deixa definitivamente claro que nesta guerra não há vencedores ou vencidos, enquanto os nossos adversários são forçados a reconhecer nossos direitos de pleno exercício político com as mais amplas garantias. Fica claro, para nós, como e por que conseguimos este Acordo. E queremos que aqueles que ainda têm dúvidas sobre a nossa luta, aproximem-se e percebam a vontade que temos de colocar todas as nossas energias para o novo país, com o qual sonha a maioria dos colombianos.


Guerrilheiros das Farc participam de atividades da Conferência | Foto: AFP 
 

Vocês bem o sabem e são capazes de expor com a consciência limpa, diante da imprensa nacional e estrangeira, aqui presente, ou em qualquer outro cenário, que as Farc-EP sempre proclamaram o respeito à população civil, a seus interesses e bens, acima de qualquer circunstância. E que essa população, que conhecemos com o nome de massa, tem sido, portanto, o nosso apoio fundamental ao longo de todos estes anos. Da nossa experiência fazem parte milhares de exemplos em que famílias camponesas, indígenas, negras ou de condição humilde, do campo e da cidade, deram-nos apoio incondicional e proteção à nossa força e aos seus membros, em muitos aspectos, mesmo com o risco de sua própria vida ou da liberdade, permanentemente ameaçados pela fúria das forças do Estado ou paramilitares. Sabemos que nos corações e mentes das pessoas simples e honestas que nos conhecem pessoalmente e têm tratado diariamente conosco, se aninha uma verdade completamente diferente daquela alardeada pela mídia, a serviço da oligarquia.

A paz exige que o poder midiático não continue sendo utilizado como mais um instrumento de guerra. Façamos de seu potencial e eficácia uma ferramenta para a reconciliação entre todo o povo colombiano. Há de fato uma outra Colômbia, outro acúmulo de histórias e verdades que aguardam sua chance. Aqui estamos, preparando-nos para isso, com o afeto e a solidariedade de muita gente em nosso país e em todo o mundo. A nossa aspiração mais profunda é que a nossa mensagem alcance muito mais gente, até que o clamor pelas grandes transformações se torne irreprimível.
O significado do Acordo Final de Término do Conflito e a construção da paz estável e duradoura, é ainda mais importante do que parece à primeira vista. Se os nossos adversários quiserem proclamar que ganharam a guerra, deixemo-los agirem assim. Para as Farc-EP e o nosso povo, a maior satisfação será sempre ter alcançado a paz.

Certamente esta Conferência Nacional terá múltiplas conclusões, distintas do seu objetivo principal. Uma delas deverá ser a eterna gratidão aos povos e governos de Cuba e da Noruega que, como países garantes, fizeram até o impossível para que este difícil processo chegasse a uma feliz conclusão. Da mesma forma, agradecemos também à Venezuela e ao Chile, que acompanharam as duas partes sempre que necessário para a realização do objetivo final das negociações.

Devemos prestar homenagem especial à memória e abnegação deste titã dos povos de Nossa América, o presidente eterno Hugo Rafael Chávez Frias, sem cujo apoio e impulso inicial nada que alcançamos teria sido possível. Não há dúvida de que Bolívar e Chávez ainda têm muito a fazer na América Latina. Devemos homenagear também a cada uma das organizações e personalidades, homens e mulheres, que admiravelmente durante todos esses anos levantaram as bandeiras de solução política nos cenários e eventos mais variados, trazendo consigo multidões crescentes, que conseguiram colocar no imaginário da Colômbia, a necessidade de um acordo final de paz.

O Estado-Maior e seu Secretariado convocaram a Conferência Nacional, nos termos dispostos na Plenária Ampliada do Estado-Maior, realizada em março do ano passado, que endossou todos os acordos assinados até agora pela nossa Delegação de Paz nas rodadas de conversações em Havana, enquanto possibilitou ao Estado Maior, seu Secretariado e à Delegação da Paz, que continuassem a envidar todos os esforços possíveis, de acordo com as nossas diretrizes históricas, a fim de alcançar um Acordo de Paz Final nos termos concebidos pela agenda acordada em agosto de 2012.

Da mesma forma, a Plenária acima mencionada estabeleceu terminantemente que, após a assinatura, o Acordo Final entre o governo nacional e as Farc-EP não poderia adquirir validade para a nossa força, sem o reconhecimento e aprovação de uma Conferência Nacional da Guerrilha, que seria convocada para esse fim específico.

Como é do conhecimento público, em 24 de agosto último foi assinado na cidade de Havana, com testemunhas internacionais e todas as formalidades, o Acordo Final de Conflitos e a Construção de uma Paz Estável e Duradoura, entre Humberto de la Calle Lombana, chefe da Delegação de Paz do governo da Colômbia e Ivan Márquez pela direção das Farc-EP.

O passo seguinte, previsto por ambas as partes, após entrar em vigência o cessar fogo e as hostilidades bilaterais, será a assinatura do Acordo Final pelo Presidente da República, Juan Manuel Santos e por mim, como Comandante em Chefe das Farc-EP.

Também é de conhecimento público que está definida a data de 26 de setembro para a celebração deste evento histórico na cidade de Cartagena de Índias. O governo nacional, sabendo da previsão da Plenária do Estado-Maior de março de 2015, concordou em fornecer todas as garantias para a realização desta Conferência Nacional, a fim de dar a oportunidade para que todas as Farc-EP, em suas mais altas instâncias democráticas, comprometam-se com o cumprimento deste Acordo Final.

Portanto, esta conferência é convocada com duas finalidades específicas para a sua completa discussão e definição. Em primeiro lugar, a análise e o referendo do Acordo Final, a fim de adquirir caráter vinculativo, ou seja, que seu cumprimento seja obrigatório para a nossa guerrilha. E, em segundo lugar, para ensejar políticas e arranjos organizacionais para iniciar a transição para um partido ou movimento político, no qual está incluída a elaboração da convocatória de um Congresso constitutivo, que deverá estabelecer o seu Programa, Estatuto e Direção Política.

Esperamos sinceramente que esta histórica Décima Conferência Nacional se caracterize, como todos os nossos eventos, pela mais ampla democracia, pelo alto nível dos debates e a adesão fiel à linha política e militar delineada pelos nossos fundadores, Manuel Marulanda e Jacobo Arenas. Nada mais me resta a não ser convidá-los a buscar inspiração em todos os guerrilheiros das Farc-EP, a partir de cada um dos seus blocos, frentes e várias unidades. Esperamos que possam transmitir fielmente o sentimento das assembleias gerais que os elegeram.

Há um povo inteiro que está há 52 anos à espera da paz e tem lutado incansavelmente por ela. Muitos de seus filhos tombaram no caminho por esse objetivo, e muitos outros continuam atrás das grades em prisões no país ou no exterior. O nosso compromisso inabalável para com o povo colombiano deve ser ratificado neste evento de forma conclusiva. A nossa principal preocupação deve ser como tornar a paz uma realidade em nosso país, com base na justiça social e democracia.

Isso implica a vinculação das grandes maiorias inconformadas, com a vida política ativa de nossa nação, implica a necessidade de uma mensagem nova, fresca e esperançosa de mudanças, implica a tarefa essencial da unidade sem a qual todo o esforço se dispersa e se perde. É fundamental na vida pública uma forma diferente, saudável e transparente de fazer política. Estamos diante de uma oportunidade importante para abordar estas tarefas essenciais. A nossa responsabilidade ética e histórica é maior do que nunca. Que os meninos e meninas da Colômbia tenham a chance real de crescerem e serem felizes em um país em paz. Apelo para que este seja o marco de referência de suas intervenções valiosas.

Declaro oficialmente instalada a Décima Conferência Nacional das Forças Armadas Revolucionárias de Colômbia – Exército do Povo. O destino da Colômbia encontra-se em suas mãos.

[1] Marquetalia era um enclave de guerrilheiros comunistas que não entregaram as armas depois da violência bipartidária dos anos 1950 e refugiaram-se na zona montanhosa acidentada da Cordilheira Central, visando a fugir da perseguição das autoridades. (N.T.)