A paz na Colômbia liquida todas as desculpas

Foi possível terminar o conflito armado interno mais antigo da América Latina, e talvez do mundo. Se passaram nada menos que 52 anos, desde 1964, quando as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia começaram a operar, primeiro como a autodefesa camponesa, para depois se tornar guerrilha.

Por Martín Granovsky

Paz na Colômbia - Divulgação

Se passaram nada menos que 68 anos desde o assassinato de Jorge Eliécer Gaitán, o líder popular que promovia a reforma agrária e a autonomia da Colômbia na política exterior, e foi liquidado por um jagunço, em pleno centro de Bogotá. Foi naquele momento, quando ainda não existiam as Farc, que começou o que os colombianos chamam de “a Violência”, assim simplesmente, sem necessidade de maior esclarecimento. “A Violência” é um processo que, desde aquele início até a abertura das negociações de paz, produziu um número estimado de 200 mil mortes, e um sem fim de pessoas deslocadas das regiões rurais.

Foi possível ver a sociedade colombiana, com a liderança de Juan Manuel Santos e o apoio de diferentes grupos políticos – e com a oposição do ultradireitista Álvaro Uribe –, ter a lucidez de neutralizar diferentes níveis de conflito, os quais ainda estão presentes, adormecidos mas não extintos, as vezes se sobrepondo uns aos outros. A violência dos paramilitares. A violência do Exército. A violência das Farc. O crescimento, apogeu e queda dos narcos. O aumento do gasto militar dos Estados Unidos no país, atrás somente do que Washington destina a Israel e Egito.

Foi possível reconhecer o problema social de pelo menos seis milhões de pessoas deslocadas de suas terras natais durante décadas de violência contra os camponeses. Talvez seja difícil dimensionar a questão vendo de longe. O êxodo dos que perderam suas terras, ou foram obrigados a deixá-las, já levava três gerações inteiras. Toda compensação será, por definição, insuficiente, pois jamais se voltará ao ponto original. Uma parte desses migrantes receberá terras, que o Estado, obviamente, terá que ajudar a tornar produtivas e de exploração moderna. Mas há também muitos netos dos primeiros deslocados, muitos dos quais perambulam pelas grandes cidades, e alguns vivem fora da Colômbia, muitos reduzidos à miséria.

Foi possível, também, combinar desejos e interesses. Por um lado, os Estados Unidos tiveram que abandonar sua aposta por Uribe e pela guerra. Por outro lado, a América do Sul, e também a América Latina, ajudaram a solucionar o conflito – Cuba, com Fidel e Raúl Castro, e Venezuela, especialmente Hugo Chávez, atuaram com ênfase em favor da paz com as Farc. O diálogo avançou em Havana, com a participação de diplomatas chilenos, além dos noruegueses.

Foi possível ver a Unasul – a que hoje enfrenta a tentativa de desprestígio por parte dos governos conservadores de Brasil e Argentina – se tornar a casa comum dos sul-americanos de esquerda e de centro-esquerda, progressistas e nacionalistas, bolivarianos ou de centro-direita como o próprio Juan Manuel Santos, ou o chileno Sebastián Piñera antes dele. Essa constelação abriu o caminho para eleger Néstor Kirchner como secretário da Unasul, e para que, em agosto de 2010, Kirchner atuasse, com a ajuda de Lula da Silva, para recompor a disputa aberta entre Colômbia e Venezuela. A paz teria sido inviável sem o acordo progressivo dos colombianos, e também, claro está, sem o acordo de Santa Marta, promovido por Kirchner e assinado por Chávez e Santos, numa calorosa tarde, em local próximo àquele onde faleceu o libertador Simón Bolívar.

O acordo de paz num quadro tão complexo como o colombiano derruba a ideia de que a violação da legalidade – como a que se vê no Brasil do golpe de Michel Temer – é a única e inexorável opção. Deslegitima a tese de que conflitos como o da Venezuela são insolúveis, e que requerem, para cúmulo, algum tipo de intervencionismo.

A paz na Colômbia desarma todas essas desculpas.

A paz na Colômbia volta a colocar na agenda o reformismo social e trabalhista que Eliécer Gaitán exibia na Crise dos Anos 30, já sem sangue e adaptado à época atual.