Guatemala em chamas: 41 jovens assassinadas por exigir proteção
No último dia 8 de março a Guatemala protagonizou um dos mais atrozes atentados contra mulheres da história recente do continente. Um incêndio tirou a vida de 41 adolescentes, moradoras de um abrigo para menores administrado pelo Estado, que protestavam contra maus tratos e estupros.
Publicado 24/03/2017 11:24
Para o movimento de mulheres do país, trata-se de um “feminicídio de Estado”. Em entrevista, o fundador do Movimento de Jovens da Rua (Mojoca, pela sigla em espanhol), Gerard Lutte, fala sobre este episódio e a violência contra as mulheres e menina na Guatemala.
Gerard é professor de longa data de psicologia do desenvolvimento em diversas universidades italianas (Pontifício Ateneo Salesiano, La Sapienza e, atualmente, Instituto Projeto Homem da Faculdade de Ciências da Educação de Montefiascone), participou dos movimentos de base nos anos 1960-70 (especialmente na favela Prato Rotondo de Roma), no âmbito universitário e na igreja católica. Na Nicarágua colaborou com os jovens trabalhadores sandinistas da JOC (Juventude Operária Católica).
Leia a entrevista na íntegra:
O que aconteceu no abrigo Hogar Seguro?
A Guatemala está vivendo dias de profunda tristeza, de raiva e de revolta pelo massacre de 41 meninas com idades entre 13 e 17 anos em uma instituição estatal destinada à educação e proteção de menores. A instituição abrigava menores de 0 a 17 anos que viviam em situação de abando na rua ou tinham sofrido maus tratos e violência em suas próprias famílias. Às vezes, eles eram enviados para lá por pais sem recursos ou por juízes, em virtude de antecedentes criminais. Crianças de famílias pobres, famílias muitas vezes desintegradas.
São menores que precisam receber respeito, atenção, ternura, formação profissional e apoio psicológico. Em vez de construir pequenos lares-abrigo, como seria necessário, o governo optou pela construção de uma estrutura para 500 menores, onde estavam internados mais de 700, em condições sub-humanas, sujeitos a graves e contínuas violações. Na tarde de 7 de Março, algumas adolescentes do pavilhão chamado “Mi Hogar” – onde a maioria das meninas tinha sofrido e denunciado estupros – rebelou-se e pediu ajuda aos rapazes da ala masculina. Os atendentes, assustados, abriram as portas e convidaram os adolescentes a sair. Sessenta deles esconderam-se nos matagais e áreas próximas.
O Presidente da República, Jimmy Morales, foi imediatamente alertado do que estava acontecendo no instituto, que depende da Secretaria do Bem-Estar Social da Presidência, e ordenou à polícia para manter a ordem e recapturar os fugitivos. Foram encontrados cerca de trinta menores que, de acordo com testemunhas, foram alvo de insultos e maus-tratos por parte da polícia. Por volta das 22 horas foram levados para a frente do instituto, onde permaneceram ao relento até por volta de uma hora da madrugada.
Depois, não foram enviados para seus quartos. Sabemos que entre 52 a 60 meninas foram trancadas em uma sala de aula com aproximadamente 16 metros quadrados, sem banheiro, enquanto os meninos foram levados para o auditório. Foram distribuídos colchões sob o olhar dos policiais (policiais mulheres, para as jovens). Às sete da manhã, distribuíram o café da manhã, mas às meninas que pediam para ir ao banheiro, as policiais respondiam: “Podem apodrecer”.
As jovens se rebelaram novamente, quebrando os vidros. De acordo com o depoimento de três sobreviventes, uma garota colocou um colchão sob a janela e ateou fogo. O colchão caiu sobre outros colchões propagando o fogo. A temperatura chegou a 900 graus centígrados.
Ao ouvir os gritos de socorro de suas colegas, os meninos conseguiram abrir a porta e correram para ajudar, mas foram impedidos a chutes pelos policiais. As policiais não se mexeram, apenas ficaram olhando e lançando insultos: “Sofram, desgraçadas, se foram tão valentes para fugir, sejam valentes para suportar a dor”.
Outra sobrevivente conta ter desmaiado e que, quando recuperou os sentidos, viu que a porta estava aberta e ela estava com metade do corpo para fora e a cabeça para dentro e que conseguiu se levantar com dificuldade apesar das queimaduras enquanto a polícia a espancava. Lembra os gritos das companheiras, mortas carbonizadas.
Outras 21 meninas acabaram morrendo nos dias seguintes, e seu número ainda pode aumentar. Parentes das vítimas não foram avisados. Apesar da promessa da Secretaria de Bienestar Social, não receberam nenhuma ajuda para os funerais. O Presidente da República não teve tempo de comparecer ao local do incêndio e limitou-se a decretar um inútil luto de três dias.
Uma tragédia anunciada…
Sim. Muitos sabiam que aquele lugar era um “campo de concentração” desde que o ex-general Otto Pérez Molina, em 2012, tornou-se presidente da Guatemala. E a situação não melhorou com o ex-comediante Jimmy Morales. Já haviam sido apresentadas 45 denúncias. A procuradoria de Direitos Humanos, o Procurador Geral da Nação, o Conselho Nacional de Adoção, o Ministério Público, o Instituto Nacional de Ciências Forenses e a Unicef denunciaram as condições desumanas em que viviam os menores e chegaram a pedir o fechamento da instituição.
A advogada Paula Barrios, diretora da organização Mulheres que transformam o mundo, denunciou o desaparecimento de 200 meninas entre 2012 e 2016, e pediu o fechamento de Hogar Seguro. A lista de crimes contra os recém-nascidos, as meninas, os meninos e os adolescentes é um elenco de horrores inimagináveis: abuso físico e psicológico, alimentação insuficiente ou deteriorada; violência, estupros, tortura, tráfico.
Já teve a condenação de um professor que obrigava meninos do quinto e sexto anos a fazer sexo oral para deixar a sala de aula e um pedreiro que estuprou uma menina portadora de deficiência. Agora, o promotor investiga diferentes tipos de crimes, como o feminicídio e o tráfico. As autópsias estão tentando determinar se as meninas carbonizadas foram drogadas e estupradas.
No dia 13 de março, foram detidos alguns funcionários e responsáveis pelo abrigo sob a acusação de homicídio culposo, não cumprimento do dever e maus tratos contra menores. No dia 15, o Presidente Morales foi denunciado por tortura, execuções extrajudiciais, abuso de autoridade e violação dos deveres, pelos deputados Sandra Moran e Leocadio Juracán, do Partido Convergencia.
Qual é a política do governo para os menores?
Não existe. Não tem dinheiro, porque o Governo e o Parlamento recusam-se a cobrar impostos dos ricos. Há poucos dias, a maioria do Parlamento votou a favor de reduções fiscais para latifundiários e pecuaristas, que estão entre os setores mais reacionários da oligarquia local. Na América, a Guatemala é o país com os menores impostos para esses setores.
A grande maioria da população vive em condições de extrema pobreza e muitos na miséria; uma grande parte vive em moradias insalubres e não tem acesso a uma boa educação. Muitos jovens não têm instrução suficiente e um trabalho digno e se refugiam nas drogas ou fazem parte de gangues violentas. Adota-se a política da agressão e da repressão, não de prevenção e acompanhamento. Associações como o Mojoca não recebem financiamentos.
Qual é a situação política na Guatemala, após o movimento de las antorchas (marcha das tochas) e o escândalo chamado La Línea (escândalo de corrupção de altos funcionários do governo ocorrido em 2015)?
Em abril de 2015, começou “a primavera guatemalteca”, habilmente orquestrada pela Embaixada dos EUA para realizar uma aliança para a prosperidade no Triângulo Norte (Guatemala, El Salvador e Honduras). Seu objetivo era criar empregos para reduzir a emigração em massa para os Estados Unidos. Desempenharam um papel importante a Comisión Internacional Contra la Impunidad en Guatemala (CICIG), órgão da ONU liderado pelo juiz colombiano Iván Velázquez, e o Ministério Público, administrado pela procuradora Geral Thelma Aldana.
As redes sociais que espalharam a notícia de uma sofisticada rede de contrabando e corrupção na alfândega conseguiram mobilizar milhares de pessoas, principalmente das classes médias urbanas, que levaram à renúncia e prisão do presidente Otto Pérez Molina, da Vice-Presidente Roxana Baldetti Elías e de outros funcionários e vários empresários. Um duro golpe no poder oligárquico criminoso que domina o país. A situação avançou muito nos últimos meses. Como escreve o Professor Mario Sosa, entre os grupos que se enfrentam atualmente pela reforma constitucional, podem ser identificados três polos ou convergências de forças sociais e políticas, que formam coalizões para defender os mais variados interesses.
Existe o poder que há séculos domina o país, o poder oligárquico, de cunho criminoso, racista, encabeçado pelo Cacif, a associação que coordena diferentes setores empresariais. Neste grupo também se incluem as associações de veteranos militares que participaram do genocídio nos anos 1980, além de organizações criminosas, de narcotraficantes. Muitas vezes receberam apoio de empresas multinacionais. Este grupo levou à presidência tanto Molina como Morales e os seus partidos, o Partido Patriota e agora o partido Fcn-Nación.
O segundo polo, da direita moderada e reformista, é liderado pela Embaixada dos Estados Unidos com a cooperação da CICIG, do Ministério Público, de Procuradoria dos Direitos Humanos, do ministro do Interior e da Receita Fiscal. Este grupo perdeu o poder após a eleição de Morales e da maioria dos deputados que controlam a Parlamento, eleitos entre partidos criminosos como o Partido Patriótico de Molina, e o Partido Líder de Manuel Baldizón, além de outros partidos de direita aliados. Dessa forma, Morales conseguiu a eleição de uma junta diretora pelo Congresso que apoia a política de seu governo.
O terceiro polo poderia ser chamado de popular, multiétnico. Nesta convergência encontramos muitos grupos heterogêneos, associações de defesa dos direitos humanos, associações indígenas, educacionais, sindicais, fundações, ONGs. Entre eles emergem o Gran Consejo de Autoridades Ancestrales e a Assembléia Social e Popular, criada na Universidade de San Carlos para coordenar as associações que participaram da primavera guatemalteca com o objetivo de lançar uma reforma radical do Estado. Esses grupos não conseguiram uma união e uma organização suficientes para obter alguma influência no âmbito nacional.
Também em relação à hedionda tragédia do abrigo estatal, estes três grupos de poder medem suas forças. O polo criminoso, responsável pelo massacre, o grupo reformista que, através do Ministério Público, procura identificar e punir os culpados e o polo popular que exige uma reforma radical do Estado, mas de forma desorganizada e ineficaz. Vários grupos convocam assembléias e manifestações, mas não emerge nenhuma coordenação para todas essas associações.
Na Bélgica, em 1996, um caso mais restrito envolvendo um pedófilo que sequestrou e assassinou algumas meninas, provocou uma reação popular maciça e a marcha de mais de trezentas mil de pessoas na capital. Eu gostaria que tivesse ocorrido uma mobilização similar neste país que eu amo e com o qual me identifico.
Como reagiu a Mojoca?
Com assombro, raiva e tristeza. As adolescentes queimadas vivas eram colegas dos jovens do Mojoca. Eles viviam no mesmo ambiente, compartilhavam a mesma realidade de pobreza e exclusão.Madelyn, de 15 anos, e sua irmã menor, passaram pelo Mojoca, viveram na Casa 8 de Março e foram reinseridas na família. Só que, infelizmente, mais tarde um juiz encaminhou Madelyn ao maldito abrigo, onde ela foi queimada viva. Jacqueline, 15 anos, fugiu sete vezes daquele lugar de morte e, felizmente, se reconciliou com sua avó e foi morar com ela. Fazia parte do pavilhão Mi Hogar, onde começou o justo protesto das adolescentes contra os seus algozes. O caminho pode ser violento quando a polícia bate em você, quando matadores acabam com tua vida, mas nos grupos de rua, meninas e meninos encontram uma família que os protege, que lhes dá abrigo, que os respeita.
O Mojoca é um movimento direto com regime de autogestão por meninas e meninos que vivem ou viveram na rua. O método de ensino é baseado na amizade, no respeito pela sua dignidade e sua liberdade. No Mojoca, meninas e meninos organizam-se para defender os seus direitos, melhorar a sua qualidade de vida, contribuir para a construção de uma sociedade mais justa e equitativa, fraterna.
No Mojoca, as meninas, os meninos e os adolescentes encontram um suporte para realizar seus sonhos e muitos já saíram das ruas e estão integrados na sociedade. O Mojoca participa do Movimento Popular guatemalteco e internacional. Atualmente soma-se ao protesto de outras organizações contra os feminicídios de 8 de março, realizados no mesmo instante em que, na capital, o movimento protestava contra a violência, a discriminação e o feminicídio.