O partido mandou me chamar
Se a vida pudesse ter a imagem de um ponto da curva, de inflexão num só instante, eu diria que me aconteceu um no sábado de carnaval. Estávamos eu e Francêsca no Mercado da Boa Vista, ali por volta de uma da tarde, sentados a uma mesa, quando vi na multidão que ondulava as pessoas de Alanir Cardoso e Nevinha. O que eram eles?
Publicado 28/02/2018 13:46 | Editado 25/10/2020 16:54
Urariano Mota*
A sua visão transmitia um sentido bom que acenava para o melhor da gente na tarde: casal de militantes comunistas, cabelos brancos, provados e sobreviventes da ditadura. Então nós os convidamos para que dividissem um pequeno espaço da mesa onde estávamos, espremidos na multidão que sorria e gritava e bebia.
“Me segura senão eu caio”, entre muitos frevos estrondava, e bêbados, ou quase bêbados, mulheres e homens davam impulsos brincalhões na mesa como se estivessem a cair. Ali não era nem seria ambiente de se discutir política, revolução, história, onde já se viu? O barulho e a ocasião impediam. Mas como se pode pedir a um escritor e a um presidente do PCdoB em Pernambuco, que não falem sobre a ponte de um militante que partira ainda outro dia? Então me veio à conversa como um raio do qual não se escapa: ali, naquele mesmo espaço eu estivera com Marco Albertim a rir e sorrir para a diversidade humana no Mercado da Boa Vista, em alguns sábados. Nós não precisávamos mais, no mercado, pedir lata de sardinha com cachaça, enquanto o dono do boteco me torturava com a música de Waldick Soriano, eu não sou cachorro não, como numa noite desesperada. Ali, no mercado, na última vez, Marco Albertim ia até um boxe e de lá voltava com um prato de frios, queijo do reino, salaminho, mais uns queijos finos, e podíamos beber uísque. Que diferença das sardinhas com aguardente à noite sob a ditadura.
Eu lembrava isso e Alanir, com voz muito baixa, abafada pelos clarins da banda que circulava pela multidão, respondia, Mas dele só me chegavam palavras isoladas e sua expressão, que, traduzidas por Nevinha e Francêsca se traduziam em síntese neste convite:
– Por que você não entra para o Partido?
No Mercado da Boa Vista, então começaram a cantar o compositor e cronista Antônio Maria:
“Sou do Recife
Com orgulho e com saudade
Sou do Recife
Com vontade de chorar
E o rio passa
Levando barcaça
Pro alto do mar
E em mim não passa
Essa vontade de voltar
Recife mandou me chamar
Capiba e Zumba
Esta hora onde é que estão?
Inês e Rosa
Em que reinado reinarão?
Ascenso me mande um cartão
Rua antiga da Harmonia
Da Amizade, da Saudade e da União
São lembranças noite e dia
Nelson Ferreira toque aquela introdução”
– Por que você não entra para o Partido?
Respondi ao convite com ressalvas, mas eu já estava alcançado e ferido na sensibilidade. Esses sábados de carnaval, esses frevos, essas memórias do que passamos, esses lugares hoje de felicidade coletiva, como fugir do seu irresistível apelo? Eu olhava de lado, me furtava. Então expus razões substantivas, pois haveria um programa partidário a seguir, havia conflitos na política prática do partido com governos aliados, que não me deixavam à vontade. Como viver sob a disciplina partidária?
Eu me lembrava do que Graciliano Ramos falou um dia em 1946, na célula comunista Teodoro Dreiser:
“Não somos, entretanto, contrários ao desempenho de quaisquer tarefas intelectuais, e, muito menos, ao de tarefas práticas. Gostaríamos, apenas, de que a execução destas e daquelas nos deixassem margem para a confecção de nossos contos e romances… Apenas desejamos resguardar um pouco nossas horas e de nossa solidão para gastá-lo em nossa literatura, em nossa incoercível necessidade de criar nossos personagens e nossa histórias – coisa que muitos de nós nunca mais conseguiram, desde que se filiaram ao Partido. O horário de trabalho dos demais militantes, operários, camponeses, funcionários públicos…é estritamente respeitado pelo Partido. Gostaríamos, nós também, de dispor de alguns momentos para nossa literatura. Mesmo as ‘duas horas pela manhã’ que um companheiro dirigente ofereceu a Jorge Amado seriam bem recebidas por alguns de nós, que têm a sua espera, na gaveta, um romance de que só falta alinhavar o último capítulo…”
É claro que cito Graciliano Ramos assim enquanto escrevo, mas na hora eu estava com o sentimento do que li, sabia dos conflitos que houve entre um mestre da literatura brasileira e a direção partidária. Então Alanir, como se fosse uma lembrança da fala de Graciliano Ramos, falou a mim, em tudo tão diferente do clássico, eu que sou menor e menor. Então ele falou a este escritor medíocre:
– Você terá respeitada sua liberdade de pensamento e opinião.
Isso eu ouvi. Já antes desse sábado de carnaval, lembro que os camaradas me haviam feito uma recepção calorosa em São Paulo, na Fundação Mauríco Grabois, quando fui lançar o romance “A mais longa duração da juventude”. Depois, no Recife, a UJS Pernambuco ocupou a livraria no lançamento do romance. Foi comovente saber que a linda bebê do presidente da UJS e companheira se chama Helenira. Depois, a brava juventude ergueu o braço e gritou que era herdeira do Araguaia. Não sei mais o que falar sobre tão humanas recepções.
Mas sei que a frase “você terá respeitada sua liberdade de pensamento e opinião’ foi decisiva. E se assim era, pensei, por que não ia me integrar às filas, às fileiras de companheiros vivos e falecidos? Cada vez mais, tenho a compreensão de que sou memória. E quero estar com os companheiros que vi e vejo, estou com eles, porque assim manda o coração. E respondi que sim, que iria à sede do partido assinar minha ficha. Ao falar dessa maneira, eu pensava que iria preencher e assinar um cartãozinho, feito cartão de autógrafos de abertura de firma em cartório. E teria que reconhecer meu garrancho depois. Mas o partido está informatizado, sem fichários de lata cheios de cartõezinhos como antes. O certo é que respondi “vou lá assinar”. Mais adiante, no outro dia, refleti: na atual conjuntura reacionária, como o chamado mundo literário irá reagir a um escritor que se filia ao Partido Comunista do Brasil? No mínimo, de um ponto de vista de prêmios, isso não é exatamente uma recomendação literária. O julgamento de estetas e cultores da pura estética não premia filiação a partido comunista. Não bastasse o que escreve, entrou no partido! Mas acreditem, amigos, poucas vezes me senti tão feliz com a perda de prêmios que um dia talvez quem sabe eu viesse por hipótese remotíssima ganhar. O prêmio que importa é este: socialistas e camaradas, estamos juntos. Na felicidade e na tristeza. Na saúde e na doença.
Eu, que tanto penso em literatura, nos romances, no mundo da cultura, nos amigos e nas mulheres heroicas da luta socialista, fui me encontrar com um comunista que só pensa na revolução. É no que dá um encontro de sábado de carnaval. Entrei no Partido na sexta-feira 16 de fevereiro deste 2018. Entrei atrasado, porque deveria ter entrado bem antes, mas há muito eu já estava em pensamento com os bravos e fundamentais companheiros de geração.
* Jornalista do Recife. Autor dos romances “Soledad no Recife”, “O filho renegado de Deus” e “A mais longa juventude”e do Diário Amoroso do Recife.