Airton de Farias: Minha avó sabia

"Vários historiadores questionam atualmente a ideia de porões da ditadura, que a repressão era feita por baixo dos panos. Algo parecido com o que houve em setores da sociedade alemã em relação ao holocausto na II Guerra Mundial. Na Alemanha, porém, a questão foi encarada de frente. Lá, desde cedo, as crianças aprendem o que foi o horror da extrema direita nazista. No Brasil, não. Por isso, tem gente que chega ao disparate de negar que houve uma ditadura entre 1964-85.”

Por Airton de Farias*

edua alves

"A rural superlotada viajou por quase uma hora. Ao fim desse tempo, os presos foram desembarcados em um edifício (local posteriormente identificado como um centro clandestino de torturas, situado nas proximidades do distrito de Amanari, município de Maranguape). (…) Todos os presos foram colocados nus, descalços e mãos atadas às costas, em uma sala escura e, após uma sessão de espancamentos, em meios a gritos e impropérios, foram distribuídos entre diversas equipes de torturadores. Submetido a uma contínua aplicação de choques elétricos, o requerente, aos gritos, atravessou toda a manhã daquele dia ouvindo os gritos de seus companheiros de infortúnio.

Após uma pausa para o almoço dos torturadores, a sessão de tortura continuou ao longo da tarde, interrompida duas vezes para que um soi disant médico verificasse as condições físicas do requerente. Autorizado pelo médico, o suplício foi em frente".

Eis o relato de um dos presos políticos da ditadura no Ceará, numa das chamadas Casas de Terror, locais clandestinos de tortura.

Mas sua avó nega que houvesse uma ditadura no Brasil. Talvez, porque sua avó sempre viveu numa sociedade autoritária, em que a opinião dos mais pobres não tinha importância para os poderes do Estado e estratos econômicos dominantes. A ditadura militar foi "apenas" ainda mais autoritária. E brutal. E assassina.

Além disso, a imprensa era censurada – não podia haver críticas ao governo. Quando não apoiava o regime.

Pior. Muita gente concordava com o que estava acontecendo. Talvez não tenham é coragem hoje de assumir tal apoio. Criou-se a memória do "não sabia".

Vários historiadores questionam atualmente a ideia de "porões da ditadura", ou seja, que a repressão era feita por baixo dos panos.

Algo parecido com o que houve em setores da sociedade alemã em relação ao holocausto na II Guerra Mundial. Na Alemanha, porém, a questão foi encarada de frente. Lá, desde cedo, as crianças aprendem o que foi o horror da extrema direita nazista.

No Brasil, não. Por isso, tem gente que chega ao disparate de negar que houve uma ditadura entre 1964-85. Com o fim do regime nos anos 1980, tratou-se de minimizar os crimes do regime e seus apoiadores, esquecê-los, até como forma de evitar a punição dos torturadores, assassinos, corruptos, etc. Corrupção?

Sim, houve bastante, bastante corrupção durante o governo dos militares.

E sua avó sabia.


*Airton de Farias é Professor e doutor em História pela Universidade Federal Fluminense

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