Como governadores se unem para confrontar Bolsonaro
A questão do ICMS sobre os combustíveis se soma a uma série de outras pautas em que há divergências entre os estados e a União
Publicado 05/02/2020 16:33 | Editado 05/02/2020 17:25
O presidente Jair Bolsonaro criticou os estados pelo preço da gasolina, em sua conta no Twitter, no domingo (2). Segundo ele, a queda do preço do combustível nas refinarias não chega ao consumidor porque é compensada pelo valor do ICMS (Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços), cobrado nos estados.
Na mesma postagem, Bolsonaro ainda anunciou que vai encaminhar ao Congresso um projeto de lei para que o ICMS seja recolhido conforme um valor fixo por litro de gasolina. Atualmente, o imposto é cobrado proporcionalmente ao preço final do combustível.
A resposta ao presidente se deu por meio de nota conjunta, assinada por 22 dos 27 governadores brasileiros, entre eles todos os das regiões Sul, Sudeste e Nordeste. Na carta, os governadores pediram que a União reduza os tributos federais (PIS, Cofins e Cide) sobre operações que envolvam os combustíveis. Solicitaram também que o governo “explique e reveja” a política de preços da Petrobras, já que o Executivo federal “controla os preços nas refinarias e obtém dividendos com sua participação indireta no mercado de petróleo”.
O tema dos preços dos combustíveis é bastante sensível para qualquer governo, como ficou evidente na paralisação dos caminhoneiros em 2018 e nas ameaças do grupo – que faz parte da base eleitoral de Bolsonaro – de nova greve em 2019.
Um projeto de lei prevendo a diminuição do recolhimento do ICMS, no entanto, deve encontrar resistência no Congresso. A tendência é que os governos estaduais pressionem suas bancadas a votar contra mudanças na arrecadação do tributo, uma das principais fontes de arrecadação dos cofres estaduais.
A questão do ICMS sobre os combustíveis se soma a uma série de outras pautas em que há divergências entre os estados e a União. Na segunda-feira (3), por exemplo, Bolsonaro criticou os governadores do Rio de Janeiro, do Espírito Santo e de oito estados do Nordeste que não aderiram ao projeto das escolas cívico-militares do governo federal. Segundo ele, “motivos políticos” explicam a rejeição ao modelo militarizado. O governador do Rio, Wilson Witzel (PSC) é um possível candidato à presidência em 2022, e, assim como o paulista João Doria, que se posicionou contra mudanças no ICMS, disputa o eleitorado de Bolsonaro.
Entre os conflitos mais recentes entre a União e os estados, houve casos em que a oposição dos governadores foi articulada conjuntamente, ganhando força frente ao Executivo federal. As iniciativas reúnem representantes de diversos partidos, dos alinhados ao governo federal aos de esquerda. O Nexo lista abaixo três desses arranjos e a que eles se opõem.
Preservação da Amazônia
Os governadores da Amazônia Legal formalizaram, em abril de 2019, o Consórcio Interestadual de Desenvolvimento Sustentável da região, que abrange nove estados (Acre, Amapá, Amazonas, Pará, Rondônia, Roraima, Tocantins, Maranhão e Mato Grosso). Os governadores já se reuniam em fórum regional desde 2008, mas decidiram criar o consórcio para facilitar a atuação em bloco e a captação de recursos junto a organismos nacionais e estrangeiros.
Desde que foi criado, o consórcio vem se posicionando contra a iniciativa do governo federal de fazer mudanças no Fundo Amazônia, iniciativa do Brasil para captar investimentos estrangeiros e nacionais para ações de preservação da floresta. Em nota de julho de 2019, o consórcio interestadual lamentou as posições do governo federal que causaram a suspensão dos recursos do fundo.
Na nota, o grupo também sugeriu que os recursos do fundo sejam geridos pelo Banco da Amazônia, pela proximidade com os estados da região. Atualmente, a gestão é feita pelo BNDES, vinculado ao governo federal.
Os governadores, ainda, têm negociado diretamente com a Noruega, a Alemanha e o Reino Unido, que contribuíam para o Fundo Amazônia. Entre os assuntos discutidos com os representantes estrangeiros, está a criação de um novo fundo internacional, vinculado ao próprio consórcio.
“Estamos buscando soluções. […] Ninguém deseja excluir o governo federal, construir uma agenda paralela. Agora, ninguém quer ficar a reboque, se porventura, houver divergência”
Helder Barbalho (MDB)
Governador do Pará, em 13 de setembro de 2019 por ocasião da reunião dos governadores da Amazônia Legal com embaixadores da Alemanha, Noruega e Reino Unido
Segundo o governador do Amazonas, Wilson Lima (PSC), o consórcio também fez uma reunião na Embaixada da França, depois que o presidente francês Emmanuel Macron e o presidente Jair Bolsonaro se indispuseram nas redes sociais. “Não dá para, em um mundo globalizado, um país como o Brasil querer se isolar de determinadas relações. É hora de baixar a poeira e restabelecer”, afirmou o governador.
Em agosto de 2019, em meio à crise das queimadas na Amazônia, os governadores se reuniram com o presidente Bolsonaro e ministros do governo, para cobrar do governo federal, além da manutenção do Fundo Amazônia, um planejamento de longo prazo de combate às queimadas e ao desmatamento na região. Por ocasião da reunião, alguns governadores ainda discordaram do modo como o presidente e seus ministros estavam discutindo o tema no âmbito internacional.
“Acho fundamental que façamos sempre um discurso ponderado. Quando se solta uma faísca nos níveis hierárquicos mais altos, quando vai chegando ao chão da realidade, pode se transformar em um incêndio”
Flávio Dino (PCdoB), governador do Maranhão, em agosto de 2019
A oposição nordestina
Em julho de 2019, governadores do Nordeste, região onde vivem 55 milhões dos brasileiros, também criaram um consórcio. Com o objetivo de intensificar agendas conjuntas e promover a coordenação política entre os nove estados nordestinos, o Consórcio Nordeste tem discutido temas como emprego, saúde e segurança, além de analisar parcerias público-privadas, privatizações e modelos que impulsionem o crescimento econômico da região.
Os consórcios entre entes federativos se multiplicaram nos últimos anos como um arranjo de estados e municípios para aumentarem sua força política frente à União, especialmente em momentos nos quais as verbas do Executivo federal estão mais escassas. Por ser formado em maioria por governadores mais alinhados à esquerda, o Consórcio Nordeste consolidou uma imagem explícita de contraponto ao governo Jair Bolsonaro, dados os gestos e posicionamentos que o grupo vem adotando.
Antes mesmo da criação do consórcio, por exemplo, os governadores nordestinos publicaram carta de repúdio às declarações do presidente da República sobre o governador de Pernambuco, Paulo Câmara (PSB). No Facebook, Bolsonaro havia chamado Câmara de “espertalhão” por supostamente se apropriar de uma iniciativa do governo federal. Na postagem, o presidente também havia compartilhado um vídeo sobre um outdoor pernambucano que anunciava pagamento do 13º do Bolsa Família com dinheiro do estado. Câmara respondeu afirmando que se tratava de proposta dele apresentada ainda durante a campanha eleitoral de 2018 e, portanto, antes de o governo federal instituir o 13º do Bolsa Família, o que aconteceu em outubro de 2019.
“Além de inverídica, a mensagem publicada possui um tom inaceitável, em qualquer situação, tornando-se ainda mais grave ao ser assinada pela mais alta autoridade do Poder Executivo nacional. É profundamente lamentável que a missão confiada ao atual presidente seja transformada em um vergonhoso exercício de grosserias e, neste caso, também na propagação de falsidades”
Governadores nordestinos
Carta de Repúdio assinada pelos governadores da Bahia, de Alagoas, do Ceará, do Maranhão, da Paraíba, do Piauí, do Rio Grande do Norte e de Sergipe.
Desde a formação do consórcio, os nove governadores têm dado ênfase à pauta ambiental, um dos grandes déficits do governo, inclusive no cenário internacional. Durante viagem à Europa, em encontros com investidores, os projetos de energia renovável ganharam destaque. “Temos muito interesse em cooperar com o consórcio, em ações como a proteção ambiental. Sabemos do grande potencial que seus estados têm na área de energia renovável”, firmou Volker Oel, do Ministério de Cooperação Econômica e Desenvolvimento alemão.
Outra questão de embate foi o modo como Bolsonaro e seus ministros reagiram ao aparecimento de manchas de óleo no litoral nordestino, que atingiram centenas de locais em todos os estados da região nos últimos meses de 2019. Em carta aberta, os governadores do consórcio criticaram o governo pela “falta de celeridade no processo de combate e contenção às manchas de óleo”.
Dois governadores nordestinos são considerados possíveis candidatos para a eleição presidencial de 2022: o maranhense Flávio Dino (PC do B) e o baiano Rui Costa (PT), presidente do Consórcio.
Anulação do decreto das armas
Em carta aberta, 14 governadores (DF, AM, TO, PA, ES e todos do Nordeste) pediram a revogação do “decreto das armas” do presidente Jair Bolsonaro. O decreto, editado em maio de 2019, flexibiliza o porte de armas no Brasil, ampliando o rol de categorias e pessoas que têm direito a andar armadas.
“[…] tais medidas terão um impacto negativo na violência – aumentando por exemplo, a quantidade de armas e munições que poderão abastecer criminosos – e aumentarão os riscos de que discussões e brigas entre nossos cidadãos acabem em tragédias.”
14 governadores. Carta aberta ao presidente da República, em maio de 2019
No documento, os governadores solicitaram ainda que o governo federal desenvolvesse ações que melhorem o rastreamento de armas e munições e intensificasse os meio de controle e fiscalização “para coibir os desvios, enfrentar o tráfico ilícito e evitar que as armas que nascem na legalidade caiam na ilegalidade e sejam utilizadas no crime”.
Em junho de 2019, o governo federal acabou revogando o decreto. Em contrapartida, apresentou um projeto de lei sobre a flexibilização do porte de armas à Câmara dos Deputados, num esforço, segundo o ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni (DEM), de encontrar um “caminho de entendimento”.
Fonte: Nexo Jornal