De Olho no Mundo, por Ana Prestes

A especialista em relações internacionais e cientista política, Ana Prestes, destaca em suas Notas desta terça-feira (28), que a concentração em um sistema privado de saúde que exclui os mais pobres e a lentidão nas ação de enfrentamento a pandemia do Coronavírus do governo Donald Trump nos EUA, podem afetar a liderança do país no mundo. Por lá, já são quase 1 milhão de casos registrados e 56.253 mortos pela doença.

Número de casos de coronavírus e de mortos nos EUA é o maior do mundo. Foto: Stephanie Keith/ Getty Images North/Via AFP

O mundo inteiro está de olho nos EUA por conta do impacto que a pandemia do novo coronavírus Sars cov 19 está tendo no país. Já é o recordista absoluto em número de casos e mortos, mesmo que nos outros países haja subnotificação ou inconsistência nos dados, muito dificilmente algum país vai ultrapassar suas marcas. Está escancarado para o mundo o efeito para a saúde pública de um país que concentrou tudo em um sistema privado de saúde que exclui quase 30 milhões de pessoas. Com a pandemia, até o final da semana passada, 26 milhões de americanos já haviam acessado o seguro-desemprego. Enquanto escrevo, espio o mapa da Johns Hopkins e vejo que os EUA já possuem perto de um milhão de casos registrados, são 988.469 mil e 56.253 mortes. O jornal The New York Times fez recentemente uma análise das mais de 260 mil palavras ditas por Trump durante a pandemia, a grande maioria de suas coletivas diárias com a imprensa. O jornal identificou que em 600 momentos ele faz autoelogios e em 160 demonstra empatia, solidariedade o apelo à unidade nacional. Em uma matéria do Nexo jornal, feita por João Paulo Charleaux, sobre como a pandemia tem afetado a liderança americana no mundo, há uma citação interessante de um cientista político, Dominique Moisi: “os EUA prepararam-se para o tipo errado de guerra. O país estava esperando um novo 11 de setembro, mas veio um vírus. Isso nos leva á seguinte questão: teriam os EUA se tornado o tipo errado de potência, com o tipo errado de prioridade?”. Link para a matéria:

Só pra ilustrar essa afirmação de Moisi sobre os EUA terem se preparado para a guerra errada, uma reportagem do El Pais traz a informação de que os gastos militares dos EUA estão em expansão no último período, com uma taxa de crescimento de 5,3% internamente e 38% do gasto mundial. Os gastos são com recrutamento de pessoal, modernização de armas convencionais e militares. Mesmo que o número seja ainda inferior ao gasto há dez anos, com a presença no Afeganistão e no Iraque. A China também aumentou em 5,1% seu gasto militar. O aumento vem em uma crescente desde 1994. EUA e China detém hoje 52% dos gastos militares de todo o globo.

Os EUA estão estrangulando tanto a Venezuela, que o país está perdendo a capacidade do refino de combustíveis. Lá do outro lado do mundo, no oriente médio, o mesmo se passa com o Irã, que sancionado, encontra dificuldade para adquirir bens básicos no mercado internacional. A crise da pandemia fez os dois países se aproximarem ainda mais. As equipes de saúde pública dos dois países tem feito videoconferências para intercambio de protocolos. Os presidentes Maduro e Rohaní também se falam agora com mais frequência, segundo a imprensa estatal dos dois países. Uma matéria do Estadão do final de semana traz uma reportagem sobre a vinda de voos da iraniana Mahan Air para a Venezuela trazendo insumos para o preparo de gasolina, além de peças de reposição que o país não consegue comprar no mercado internacional bloqueado pelas sanções norte-americanas.

Quem também deu sinais importantes de cooperação com o Irã foi a China. A imprensa chinesa noticia que o presidente Xi Jinping falou ao telefone com seu homólogo Hassan Rouhani e “expressou sua sincera simpatia e firme apoio ao governo iraniano e às pessoas que estão lutando contra o surto da Covid19”. O presidente chinês ainda lembrou que o país já enviou ao Irã várias remessas de materiais necessários para o controle da epidemia e foi o primeiro país destino de uma equipe de especialistas chineses. As mesmas fontes relatam que a resposta iraniana foi de agradecimento e pedido de ajuda para suspensão das “sanções unilaterais ilegais” impostas ao país.

Em um processo de “solidariedade” seletiva, como lhe é próprio, os EUA vão enviar respiradores para alguns países latino-americanos. Aqueles que lhe são mais obedientes, por óbvio. São eles Equador, El Salvador e Honduras. A Guatemala também deve ser alcançada, pois Trump está muito agradecido aos países da América Central que estão cumprindo seu plano de contenção da imigração para os EUA. Esses países assinaram em 2019 acordos com os EUA sob pressão. Foram ameaçados por Trump, caso não assinassem, de ter sobretarifação sobre suas exportações e aplicação de taxas nas remessas de dinheiro dos EUA para o país (muitos cidadãos destes países trabalham no setor agrícola dos EUA e mandam dinheiro para suas famílias que ficaram no país de origem”. Ao assinarem os acordos, Guatemala, Honduras e El Salvador ficaram obrigados a receber de volta solicitantes de asilo nos EUA provenientes de outros países. Por isso ficou conhecido como o acordo do “terceiro país”. Os países ficam obrigados a abrigar imigrantes de outras nacionalidades, que não as suas e que estejam pedindo asilo aos EUA. De 2007 a 2016 o número de imigrantes em situação irregular nos EUA, apenas originário destes países, chegou a 375 mil.

A pandemia fez até Europa e Reino Unido esquecerem que estão vivendo um Brexit. Na última semana o negociador europeu, Michel Barnier, reclamou da falta de progresso nas negociações. Segundo ele, para que haja um acordo de convivência em relação à economia e à geografia até o final do ano, algo precisa avançar até junho. Só pra recordar, o Reino Unido deixou a União Europeia em 31 de janeiro, mas segue sujeito a várias regras e ainda é parte do mercado único e da união aduaneira até 31 de dezembro. Alguns organismos, como o FMI, pressionam por uma extensão do período de negociações.

Aos poucos, a Etiópia está se firmando na África como um dos principais entrepostos da presença chinesa na região. Assim como o governador do Maranhão, Flávio Dino, aqui do Brasil conseguiu comprar respiradores chineses com a carga passando pela Etiópia e não por países europeus ou EUA, para garantir sua chegada, o mesmo ocorre com a maioria dos países africanos. Em matéria do Estadão, o jornalista Marcelo Godoy, traz as informações de que hoje, Etiópia e África do Sul são os principais parceiros da China na África para as respostas à pandemia no continente. A capital da Etiópia, Adis-Abeba, é onde está localizada a sede da União Africana e o país se tornou mais estável com o fim da guerra com a Eritreia. Está também próximo do Djibuti onde a China tem sua primeira base militar estrangeira. Sem dizer que o Chifre da África e o sul da península arábica é um ponto estratégico na geopolítica há milênios. Detalhe importante é que o atual secretario geral da OMS, Tedros Adhanom foi por muito tempo ministro da saúde na Etiópia e contou com o apoio da China para ser eleito ao cargo.

Segue em alta na imprensa internacional o “cancelamento do casamento” entre a Boeing e a Embraer com ataques dos dois lados. A Boeing acusa a brasileira de não ter cumprido as “condições necessárias” e a Embraer acusa a norte-americana de rescindir o contrato com “falsas alegações”. No meio da confusão, uma cifra de 5,2 bilhões de dólares. Com o casório, seria criada uma nova empresa que ficaria sob o comando da Boeing, que teria 80% de participação e a Embraer ficaria com 20%. Não sei porque a Embraer está reclamando por cair fora desse mau casamento…

Em Israel, chama atenção como os ultraortodoxos estão sendo atingidos pela epidemia local do coronavírus. Eles já são um terço dos casos de todo o país, apesar de serem cerca de 10% da população de 9 milhões de habitantes. Os haredis (tementes a Deus) como são conhecidos, tem uma peculiaridade de serem famílias numerosas (sem controle da reprodução) e nas quais grande parte dos homens se dedicam exclusivamente aos estudos das sagradas escrituras e orações, enquanto as mulheres sustentam as famílias com empregos precários e buscando ajudas sociais. Justamente os bairros onde estão estas famílias são as zonas de maior contágio por covid19.

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