Como pensar o pós-lockdown planetário

Entre a irresponsabilidade das elites e a total fragmentação da sociedade civil, a Covid-19 como um interruptor está mostrando como o rei – o projeto sistêmico – está nu.

Estamos sendo sugados para uma danse macabre de múltiplos sistemas complexos “colidindo uns com os outros”, produzindo todo tipo de ciclos negativos de retorno , em sua maioria.  

O que já sabemos com certeza, como Shoshana Zuboff detalhou em A Era do Capitalismo de Vigilância, é que “o capitalismo industrial seguiu sua própria lógica de choque e pavor” para conquistar a natureza. Mas, agora o capitalismo de vigilância “tem a natureza humana em sua mira”.

Em The Human Planet: How We Created the Anthropocene (O Planeta Humano: Como Criamos o Antropoceno), analisando a explosão no crescimento populacional, o aumento do consumo de energia e um tsunami de informação “impulsionado pelos ciclos positivos de retorno de reinvestimento e lucro”, Simon Lewis e Mark Maslin do University College, Londres, sugerem que nosso modo de vida atual é o “menos provável” dentre várias opções. “Um colapso ou uma mudança para um novo modo de vida é mais provável”.

Com distopia e paranóia em massa aparentemente a lei da terra (desnorteada), as análises de Michel Foucault sobre biopolítica nunca foram tão oportunas, já que Estados de todo o mundo assumem o biopoder – o controle da vida e do corpo das pessoas.  

David Harvey, mais uma vez, mostra como Marx foi profético, não só em suas análises do capitalismo industrial, mas de alguma forma – em Grundrisse: Fundamentos da Crítica da Economia Política – mesmo prevendo a mecânica do capitalismo digital:

Marx, escreve Harvey, “fala sobre a forma como as novas tecnologias e o conhecimento ficam embutidos na máquina: eles não estão mais no cérebro do operário, e o operário é deixado de lado para se tornar um apêndice da máquina, um mero maquinista”. Toda a inteligência e todo o conhecimento, que antes pertenciam aos trabalhadores, e que lhes conferia um certo poder de monopólio em relação ao capital, desaparecem”.

Assim, acrescenta Harvey, “o capitalista que antes precisava das habilidades do trabalhador está agora livre dessa restrição, e a habilidade é incorporada à máquina. O conhecimento produzido pela ciência e pela tecnologia flui para dentro da máquina, e a máquina se torna a ‘alma’ do dinamismo capitalista”.

Vivendo em ‘psico-deflação’.

Um efeito imediato – econômico – da colisão de sistemas complexos é a aproximação da Nova Grande Depressão. Enquanto isso, muito poucos estão tentando entender o Lockdown planetário em profundidade – e isso vai, acima de tudo, para o pós-Lockdown Planetário. No entanto, alguns conceitos já se destacam. Estado de exceção. Necropolítica. Um novo brutalismo. E, como vamos ver, o novo paradigma viral.

Portanto, vamos rever alguns dos melhores e mais brilhantes na vanguarda do pensamento sobre a  Covid-19. Um excelente roteiro é fornecido por Sopa de Wuhan (“Sopa Wuhan”), uma coleção independente montada em espanhol, com ensaios de, entre outros, Giorgio Agamben, Slavoj Zizek, Judith Butler, David Harvey, Byung-Chul Han, da Coréia do Sul e o espanhol Paul Preciado.

Os dois últimos, juntamente com Agamben, foram referenciados em ensaios anteriores desta série, sobre os estóicosHeráclitoConfúcio, Buda e Lao Tzu, e a filosofia contemporânea examinando A Cidade sob a praga.

Franco Berardi, um ícone estudantil de 1968, hoje professor de filosofia em Bolonha, oferece o conceito de “psico-deflação” para explicar nossa atual situação. Estamos vivendo uma “epidemia psíquica … gerada por um vírus, pois a Terra atingiu um estágio de extrema irritação, e o corpo coletivo da sociedade sofre por um bom tempo um estado de estresse intolerável: a doença se manifesta nesta fase, devastadora nas esferas social e psíquica, como uma reação de autodefesa do corpo planetário”.

Assim, como argumenta Berardi, um “vírus semiótico na psico-esfera bloqueia o funcionamento abstrato da economia, subtraindo dela corpos”. Somente um vírus seria capaz de deter a acumulação de capital morto em seus rastros: “O capitalismo é axiomático, funciona sobre uma premissa não-verificada (a necessidade de crescimento ilimitado que torna possível a acumulação de capital).

Toda concatenação lógica e econômica é coerente com este axioma, e nada pode ser tentado fora deste axioma. Não há saída política para o Capital axiomático, não há possibilidade de destruir o sistema”, porque até mesmo a linguagem é refém deste axioma e não permite a possibilidade de nada “eficientemente extra-sistêmico”.

Então o que restou? “A única saída é a morte, como aprendemos com Baudrillard”. O falecido e grande mestre do simulacro já estava prevendo um recuo sistêmico no pós-modernismo dos anos 80.  

O filósofo croata Srecko Horvat, ao contrário, oferece uma hipótese menos conceitual e mais realista sobre o futuro imediato: “O medo de uma pandemia é mais perigoso do que o próprio vírus. As imagens apocalípticas dos meios de comunicação de massa escondem um nexo profundo entre a extrema direita e a economia capitalista. Como um vírus que precisa de uma célula viva para se reproduzir, o capitalismo vai se adaptar à nova biopolítica do século XXI”.  

Para o químico e filósofo catalão Santiago Lopez Petit, o coronavírus pode ser visto como uma declaração de guerra: “O neoliberalismo se veste descaradamente como um estado de guerra. O capital está assustado”, mesmo porque “a incerteza e a insegurança invalidam a necessidade do mesmo estado”. No entanto, pode haver possibilidades criativas quando “a vida obscura e paroxística, incalculável em sua ambivalência, escapa do algoritmo”. 

Nossa exceção normalizada

Giorgio Agamben causou imensa controvérsia na Itália e em toda a Europa quando publicou uma coluna no final de fevereiro sobre “a invenção de uma epidemia”. Mais tarde ele teve que explicar o que queria dizer. Mas sua principal visão permanece válida: O estado de exceção foi completamente normalizado.

E ainda pior: “Um novo despotismo, que em termos de controles generalizados e cessação de toda atividade política, será pior do que os totalitarismos que conhecemos até agora”.  

Agamben redobra suas análises da ciência como a religião do nosso tempo: “A analogia com a religião é tomada literalmente; os teólogos declararam que não podiam definir claramente o que é Deus, mas em seu nome ditaram regras de conduta aos homens e não hesitaram em queimar hereges. Os virologistas admitem não saber exatamente o que é um vírus, mas em seu nome fingem decidir como o ser humano deve viver”.    

O filósofo e historiador camaronês Achille Mbembe, autor de dois livros indispensáveis, Necropolítica e Brutalisme, identificou o paradoxo do nosso tempo: “O abismo entre a crescente globalização dos problemas da existência humana e o recuo dos estados dentro das suas próprias fronteiras antiquadas”.  

Mbembe mergulha no fim de um certo mundo, “dominado por gigantescos dispositivos de cálculo”, um “mundo móvel no sentido mais polimórfico, viral e quase cinematográfico”, referindo-se à ubiqüidade das telas (Baudrillard novamente, já nos anos 80) e à lexicografia, “que revela não apenas uma mudança de linguagem, mas o fim da palavra”.

Aqui temos o Mbembe dialogando com Berardi – mas Membe leva isso muito mais longe: “Este fim da palavra, este triunfo definitivo do gesto e dos órgãos artificiais sobre a palavra, o fato de que a história da palavra termina sob nossos olhos, que para mim é o desenvolvimento histórico por excelência, aquele que a  Covid-19 desvela”.

As conseqüências políticas são, inevitavelmente, terríveis: “Parte da política de poder das grandes nações não está no sonho de uma organização automatizada do mundo graças à fabricação de um Homem Novo que seria produto de uma montagem fisiológica, de uma montagem sintética e eletrônica e de uma montagem biológica? Vamos chamar-lhe tecno-liberalismo”.

Isto não é exclusivo do Ocidente: “A China também está nisso, vertiginosamente.”

Este novo paradigma de uma infinidade de sistemas automatizados e decisões algorítmicas “onde a história e a palavra não existem mais está em choque frontal com a realidade dos corpos em carne e osso, micróbios, bactérias e líquidos de todos os tipos, inclusive sangue”.

O Ocidente, argumenta Mbembe, escolheu há muito tempo “imprimir um rumo Dionisíaco à sua história e levar o resto do mundo com ele, mesmo que não o entenda”. O Ocidente não sabe mais a diferença entre o início e o fim. A China também está nisso. O mundo foi mergulhado num vasto processo de dilaceração onde ninguém pode prever as conseqüências”.      

Mbembe está aterrorizado com a proliferação de “manifestações vivas da parte bestial e viral da humanidade”, incluindo o racismo e o tribalismo.

Isso, acrescenta, conforma nosso novo paradigma viral.

Sua análise certamente se encaixa com a de Agamben: “Tenho a sensação de que o brutalismo vai se intensificar sob o impulso do tecno-libertarianismo, seja sob a China ou escondido sob os apetrechos da democracia liberal. Assim como o 11 de setembro abriu caminho para um estado generalizado de exceção, e sua normalização, a luta contra o Covid-19 será usada como pretexto para mover ainda mais o político para o domínio da segurança”.

Mas desta vez”, acrescenta Mbembe, “será uma segurança quase biológica, carregando com novas formas de segregação entre os ‘corpos imunes’ e os ‘corpos virais'”. O viralismo se tornará o novo teatro de fracionamento de populações, agora identificadas como espécies distintas”.

Parece mesmo o neo-medievalismo, uma reencenação digital do fabuloso afresco Triunfo da Morte, em Palermo. 

Poetas, não políticos

É útil contrastar tal desgraça e tristeza com a perspectiva de um geógrafo. Christian Grataloup, que se destaca na geo-história, insiste no destino comum da humanidade (aqui ele está ecoando Xi Jinping e o conceito chinês de “comunidade de destino compartilhado”): “Há um sentimento de identidade sem precedentes. O mundo não é simplesmente um sistema espacial econômico e demográfico, ele se torna um território. Desde os Grandes Descobrimentos, o que era global foi encolhendo, resolvendo muitas contradições; agora devemos aprender a construí-lo novamente, dar-lhe mais consistência à medida que corremos o risco de deixá-lo apodrecer sob as tensões internacionais”.        

Não é a crise da Covid-19 que vai levar a outro mundo – mas a reação da sociedade à crise. Não haverá uma noite mágica – repleta de apresentações de pop stars da “comunidade internacional” – quando “a vitória” será anunciada ao antigo Planet Lockdown.

O que realmente importa é um longo e árduo combate político para nos levar para o próximo nível. Conservadores extremos e tecno-liberais já tomaram a iniciativa – desde a recusa de quaisquer impostos sobre os ricos para socorrer as vítimas da Nova Grande Depressão até a obsessão da dívida que impede mais ainda, o gasto público necessário.  

Neste quadro, proponho ir um passo além da biopolítica de Foucault. Gilles Deleuze pode ser o conceitualizador de uma nova e radical liberdade. Aqui está uma deliciosa série britânica que pode ser apreciada como se fosse uma abordagem séria de Monty Python a Deleuze.

Foucault destacou-se na descrição de como o significado e os quadros da verdade social mudam ao longo do tempo, constituindo novas realidades condicionadas pelo poder e pelo conhecimento.

Deleuze, por outro lado, concentrou-se em como as coisas mudam. Movimento. Nada é estável. Nada é eterno. Ele conceituou o fluxo – de uma maneira muito heracliteana.

Novas espécies (mesmo o novo Ubermensch criado por IA) evoluem em relação ao seu ambiente. É usando Deleuze que podemos investigar como os espaços entre as coisas criam possibilidades para o The Shock of the New (O Choque do Novo).

Mais do que nunca, agora sabemos como tudo está conectado (obrigado, Spinoza). O mundo (digital) é tão complicado, conectado e misterioso que isso abre um número infinito de possibilidades.

Já nos anos 70, Deleuze dizia que o novo mapa – o potencial inato da novidade – deveria ser chamado de “o virtual”. Quanto mais a matéria viva se torna mais complexa, mais ela transforma esse virtual em ação espontânea e movimentos imprevistos.

Deleuze pôs um dilema que agora nos confronta a todos em termos ainda mais duros. A escolha é entre “o poeta, que fala em nome de um poder criador, capaz de derrubar todas as ordens e representações para afirmar a diferença no estado de permanente revolução que caracteriza o eterno retorno: e a do político, que se preocupa sobretudo em negar o que “difere”, de modo a conservar ou prolongar uma ordem histórica estabelecida, ou de estabelecer uma ordem histórica que já mostra no mundo as formas de sua representação”.    

O tempo exige agir como poetas em vez de políticos.

A metodologia pode ser oferecida pelo formidável A Thousand Plateaus (Mil Platôs) de Deleuze e Guattari – significativamente subtitulado “Capitalismo e Esquizofrenia”, onde o traçado é não-linear. Estamos falando de filosofia, psicologia, política ligada por idéias correndo em diferentes velocidades, um movimento vertiginoso sem parar, linhas de articulação, em diferentes estratos, dirigidas em linhas de vôo, movimentos de desterritorialização.

O conceito de “linhas de vôo” é essencial para esta nova paisagem virtual, pois o virtual é conformado por linhas de vôo entre diferenças, em um processo contínuo de mudança e liberdade.

Todo esse frenesi, porém, deve ter raízes – como nas raízes de uma árvore (do conhecimento). E isso nos leva à metáfora central de Deleuze; o rizoma, que não é apenas uma raiz, mas uma massa de raízes que brota em novas direções.

Deleuze mostrou como o rizoma conecta agregados de códigos linguísticos, relações de poder, as artes – e, crucialmente, a biologia. O hiperlink é um rizoma. Ele costumava representar um símbolo da deliciosa ausência de ordem na internet, até que ficou degradado quando o Google começou a impor seus algoritmos. Os links, por definição, devem sempre nos levar a destinos inesperados.

Os rizomas são as antíteses desses traços padrão da “democracia” liberal ocidental – o parlamento e o senado. Em contraste, trilhas – como na trilha de Ho Chi Minh – são rizomas. Não há um plano diretor. Múltiplas vias de entrada e múltiplas possibilidades. Sem começo e sem fim. Como descreveu Deleuze, “o rizoma opera por variação, expansão, conquista, captura, ramificação”. 

Isso pode funcionar como o plano para uma nova forma de engajamento político – uma vez que o projeto sistêmico desmorona. Ele encarna uma metodologia, uma ideologia, uma epistemologia e é também uma metáfora. O rizoma é inerentemente progressivo, enquanto as tradições são estáticas. Como metáfora, o rizoma pode substituir nossa concepção de história como linear e singular, oferecendo diferentes histórias que se movem em diferentes velocidades. O slogan TINA (” Não há alternativa”) está morto: há múltiplas alternativas.

E isso nos traz de volta a David Harvey inspirado em Marx. Para embarcar num caminho novo e emancipatório, primeiro temos que nos emancipar para ver que um novo imaginário é possível, ao lado de uma nova realidade de sistemas complexos.

Então, vamos relaxar – e desterritorializar. Se aprendermos a fazer isso, o advento do  Novo Techno Homem em servidão voluntária, controlado à distância por um estado de segurança omnipotente e omnisciente, não será um dado adquirido.  

Deleuze: um grande escritor é sempre como um estrangeiro no idioma pelo qual se expressa, mesmo que seja a sua língua materna. Ele não mistura outra língua com sua própria língua; ele esculpe uma língua estrangeira não pré-existente dentro de sua própria língua. “Ele faz a própria língua gritar, gaguejar, murmurar. Um pensamento deve disparar rizomaticamente – em várias direções.

Estou resfriado. O vírus é um rizoma.

Lembra quando Trump disse que este era um “vírus estrangeiro”?

Todos os vírus são estrangeiros – por definição.

Mas Trump, é claro, nunca leu “Almoço Nu”, do Mestre William Burroughs.

Burroughs: “A palavra é um vírus.”

Fonte: Asias Times, via Dossier Sul

Tradução: Dossier Sul

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