“Porta giratória” das agências de saúde prejudica interesse público
Número alarmante de quase metade de ex-diretores de agências de saúde saem para trabalhar no mercado que elas regulam. Prática comum interfere em políticas e pode favorecer mercado da saúde em detrimento do interesse público
Publicado 13/05/2020 17:39 | Editado 13/05/2020 17:40
Pesquisa da Faculdade de Medicina da USP revela que 44% dos executivos que dirigiram agências reguladoras do sistema de saúde foram capturados pelo mercado, revelando uma promiscuidade entre público e privado que deveria ter melhor legislação.
“Nossa pesquisa sugere que a legislação seja revista a fim de inibir a porta giratória, como já fazem outros países”, diz Scheffer. Segundo o pesquisador, o Brasil possui leis que estabelecem condutas éticas para ocupantes de altos cargos em agências, mas de alcance limitado, por exemplo, a restrição de trabalhar para empresas que tenham interesse ligado à função exercida, a chamada “quarentena”, é válida por apenas seis meses no País, período em que o diretor de agência fica fora do mercado, mantidos seus vencimentos do cargo.
A pesquisa realizada com 36 executivos que administraram a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), nos seus 20 anos de existência, analisou o fenômeno chamado “portas giratórias”, quando diretores deixam as agências reguladoras e passam a trabalhar no mercado por elas regulado.
Segundo o professor Mário Scheffer, da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP) e primeiro autor da pesquisa, “há altos interesses econômicos envolvidos, pois apenas dois dos mercados regulados pelas agências, o de venda de medicamentos em farmácias e o de planos de saúde, movimentaram, juntos, mais de R$ 270 bilhões em 2019”.
O estudo Revolving doors and conflicts of interest in health regulatory agencies in Brazil acaba de ser publicado no BMJ Global Health e constata que a prática das “portas giratórias” chega a ser um problema. “A migração dos executivos das agências públicas para o mercado pode afetar em decisões próximas dos interesses empresariais, em detrimento de interesses coletivos e de saúde pública”, considera Scheffer.
“As duas agências regulam produtos e serviços que afetam a saúde e a vida da população e interferem no funcionamento do sistema de saúde como um todo. Aprovam coberturas e reajustes de mensalidades de planos de saúde ou liberam a comercialização de um agrotóxico, por exemplo”, aponta o professor.
Mandatos e quarentena
Segundo Scheffer, o mandato dos executivos nas agências é de dois anos, renováveis. Eles são indicados pelo presidente da República e passam por sabatina no Senado Federal. Ao longo dos 20 anos, segundo o estudo, passaram pelas duas agências um total de 36 diretores. Desses, 20 não fizeram “porta giratória”, ou seja, “continuaram no setor público, mesmo que em outro órgão da gestão pública da saúde”. Outros 16 trocaram de setor praticando a “porta giratória”, número considerado alarmante pelo pesquisador, pois “revela alto grau de captura regulatória das agências pelo mercado que elas deviam regular”.
Em seu estudo, Scheffer indica que os destinos mais comuns dos executivos após deixarem as agências foram planos e seguros de saúde (4 ex-diretores), hospitais privados (4) e indústria farmacêutica (3). Outros cinco prestam serviços de consultoria para mais de um segmento, como empresas de medicamentos, hospitais, planos de saúde, equipamentos médicos, biotecnologia, cosméticos, agrotóxicos, alimentos, bebidas e tabaco.
Indicações políticas
As agências reguladoras deveriam ter como principal característica sua independência técnica, mas as indicações de executivos acabam sendo políticas. Para Scheffer, “o fato de os diretores estudados terem recebido apoio suprapartidário e de nenhum deles ter sido reprovado pelo Senado Federal sugere que há motivações, pactos e coalizões políticas prévias, possivelmente há relação com financiamento de campanhas eleitorais por setores regulados pelas agências, além do envolvimento dos indicados com burocracias político-partidárias”.
Scheffer realizou a pesquisa por meio de uma bolsa da Fundación Carolina e Grupo Tordesillas, da Espanha, onde permaneceu por dois meses em 2019 na Universidade Miguel Hernandez, em Alicante. Além de Scheffer , são coautores dois professores espanhóis, Ildefonso Hernández Aguado e María Pastor, e um professor inglês, Giuliano Russo. O cientista do Reino Unido é parceiro na pesquisa em função de um projeto coordenado por Scheffer sobre Crise e Saúde, que tem financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) em parceria com a Queen Mary University of London e Universidade Federal do Maranhão.
Com informações do jornal da USP