Agora, defender-se do vírus… E depois?
O brasileiro que combateu a fome no Brasil e no mundo, reflete sobre a desigualdade e a fome em tempos de pandemia.
Publicado 29/05/2020 23:14 | Editado 29/05/2020 23:16

Na verdade, sabemos muito pouco dessa pandemia e menos ainda dos seus impactos, com exceção de que temos de ficar em casa com medo de morrer. Nem isso infelizmente é consensual…
Frente a situações de incertezas, o importante não é ter sempre respostas do tipo “eu acho”, mas fazer as perguntas certas. Assim temos chance de chegar às respostas certas…
Por isso vou iniciar com as perguntas que me parecem são as mais relevantes nesse momento.
Primeira: estamos a caminho de mais uma recessão ou de uma depressão? Recessão é um conceito associado a uma fase do ciclo econômico de uma economia capitalista causada por elementos internos ao próprio sistema. E é considerada uma etapa necessária e previsível do crescimento econômico para “limpar” as atividades ineficientes e preparar uma nova fase de ascensão mais produtiva. Já a palavra depressão indica quedas repentinas e abruptas da atividade produtiva causadas por elementos exógenos ao sistema econômico e, portanto, imprevisíveis, como guerras e desastres naturais.
Pode parecer uma questão semântica, mas o ponto relevante é se podemos esperar que, da pandemia atual, siga uma fase de recuperação que parta das próprias forças internas do sistema produtivo atual, como ocorre nos ciclos econômicos, ou temos que pensar numa solução externa –vale dizer política–para ativar a recuperação com um “Plan Marshall”, termo indiscriminadamente usado nos dias de hoje para se referir ao programa de recursos públicos (não apenas para investimentos!) que foi aplicado pelos Estados Unidos na Europa para sair da sua última grande depressão econômica causada pela II Grande Guerra.
Se estamos de acordo que essa parece ser a resposta mais sensata no momento–ou seja, que caberá aos Governos uma ação decisiva em liderar a recuperação social e econômica injetando recursos públicos na economia–a pergunta que se segue é quanto tempo temos que considerar para que isso se efetive, ou seja, qual o time line? Atenção, não me refiro à saída do isolamento social que já começa atabalhoadamente em algumas partes. Refiro-me ao tempo que teremos que considerar após a saída do confinamento–que é a medida emergencial que tem se mostrado mais eficiente nesse momento–até o que se possa chegar ao “novo normal” como se tem nominado a vida no pós-pandemia.
Os mais otimistas falam em mais um ano a contar da saída do confinamento, outros até que se tenha uma vacina que possa imunizar pelo menos os grupos de maior risco como exemplo os idosos e obesos, o que não se conseguiria antes de dois anos.
Assim, por mais otimista (ou realista) que sejamos, o impacto dessa pandemia vai ser longo, ate o final de 2022 pelo menos. E aí vem a terceira pergunta que não quer calar: E como seria esse “novo normal” a partir de 2023? Ou seja, quais seriam as “novas” regras econômicas e sociais básicas a seguir? Continuaríamos fazendo o mesmo de antes da pandemia ou os ensinamentos de haver passado a fase emergencial que ora enfrentamos seriam suficientemente fortes para delinear um “novo contrato social”.
Não me refiro aos sinais aparentes que vemos hoje como um maior cuidado com a higiene, usar máscaras, etc.. Nem as mudanças que já estavam em curso e que se aceleraram na emergência, como um maior uso das tecnologias da informação e das relações virtuais que antes eram praticamente restritas ao mundo financeiro e experimental, além de um conjunto restrito de aplicativos setoriais.
Não resta a menor dúvida que esse the great reset ou seja, o grande reinício terá na realidade digital a base de nossas vidas on line e não apenas os elementos antes já conhecidos como a robótica e a automação e seus milhões de desempregados, para não falar dos fake news, perda da privacidade e outras coisas “não positivas” associadas ao uso tecnologia da informação, por total ausência de um controle social e público atualmente.
Como muito bem destacam F. Gaetani e V. Almeida (Saídas digitais para a crise, Valor Econômico 21/04/20), “o avanço rumo à realidade digital se acelerou de forma tão abrupta que o mercado explodiu.
Abriram-se tantas oportunidades de trabalho que ficou difícil catalogar todas as novas profissões emergentes.
Junto com a mudança veio um choque na produtividade individual das pessoas que, paradoxalmente em suas casas, aprenderam rapidamente a funcionarem num patamar de eficiência impensável nas transições rumo a vida digital”.
Um exemplo disso é o que chamam de Task shifting isto é, “a delegação de tarefas de médicos, advogados, gestores e outros profissionais seniores pra colaboradores deixou de ser objeto de resistência corporativa para se transformar na forma natural de lidar com uma demanda virtual explosiva.
Verificaremos extraordinários ganhos de produtividade em áreas dominadas por cartéis corporativos que simplesmente foram atropelados pela pandemia”.
E concluem que “As soluções digitais estão mostrando que o enfrentamento das desigualdades pode ser menos caro, doloroso e conflitiva do que se imaginava. A pergunta é se queremos ser sociedades mais desiguais ou não. No Brasil a iniquidade é naturalizada e legalizada sob os mais variados mecanismos. A crise abriu uma janela para revisarmos nossas estruturas e mecanismos de redistribuição de renda e oportunidades. O SUS, a escola pública, as redes de assistência, o acesso a serviços básicos estão todos sendo revolucionados por aplicativos que barateiam e universalizam sua oferta. A tecnologia, não a política, tem gerado estas possibilidades.
Mas é a política que pode consolidar estes avanços sociais. Ou não.”
Devo confessar que não estou otimista como os colegas citados, para crer que dadas as atuais estruturas políticas existentes, possamos fazer desse great reset mais que um mero restart, onde se ajeitam pequenas coisas que haviam se tornado disfuncionais já antes da pandemia. Até porque, antes mesmo de sairmos dela, já se veem sinais claros de arrependimento na implementação de algumas das soluções rapidamente aceitas no momento de pânico como uma questão de urgência, como o amparo à renda dos mais pobres e o fortalecimento dos sistemas públicos de saúde. Mas, passado o medo, já reaparecem na arena da política (com “p” minúsculo) as mesmas perguntas cínicas de sempre: “até quando?”, “quem vai pagar a conta?”, já antecipando a resposta da volta à austeridade de gastos públicos nas áreas sociais. Sempre foi assim no mundo da nossa política com “p”minúsculo: no momento agudo da crise se produz um amplo consenso que termina antes mesmo de sairmos dela.
Mas gostaria de aproveitar essa oportunidade para compartir com os leitores aquelas prioridades que julgo fundamentais para definir um “novo contrato
social” na área do domínio específico da alimentação e nutrição.
Permitam-me ressaltar apenas dois pontos que julgo centrais.
Primeiro, a pandemia do corona vírus mostrou o custo elevado de mortes associadas a má nutrição, no espectro que vai da fome à obesidade.
A medida que aumenta o número de mortos vão se consolidando as estatísticas de que além dos idosos, são os obesos e os pobres os que mais morrem. E como nas sociedades afluentes, o sobrepeso já se tornou “normal” (e não é visto como um grave problema de saúde pública, especialmente quando associado a outras enfermidades não transmissíveis como diabetes, hipertensão e problemas cardíacos diversos), o efeito do corona vírus tem sido muito mais devastador do que se conseguiu prever inicialmente.
Nova Iorque que o diga! Evidências empíricas sugerem que no “novo normal” poderemos ver o número de famintos voltar à casa do 1 bilhão de pessoas, mais os 2 bilhões de malnutridos já existentes hoje por diferentes tipos de deficiências minerais e vitamínicas.
Teríamos de conviver com mais de um terço da população mundial privada de uma alimentação saudável num mundo que produz mais do que o suficiente para todos e ainda joga fora quase um terço dos alimentos que produz, aumentando desnecessariamente o impacto ambiental da produção de comida.
Uma desigualdade visível dessa grandeza dificilmente proporcionaria um “novo normal” sustentável do ponto de vista das relações políticas, sociais e econômicas.
Não podemos aceitar conviver com a fome e as diferentes formas de má nutrição que decorrem da pobreza, da miséria e da má distribuição da renda do mundo em que vivemos sob pena de repetir no futuro o mais do mesmo que estamos vivendo hoje num contexto de uma “realidade virtual”.
E que podemos fazer para impedir isso?
Certamente não é apenas “mais do mesmo”, ou seja, aumentar ainda mais a produção de alimentos acreditando que “naturalmente via mercado”, que fará baixar ainda mais os preços , eles chegarão à boca dos famintos. E muito menos podemos crer que esses alimentos a mais produzidos com maior aplicações da informática e das biotecnologias sejam “naturalmente mais nutritivos” sem que haja uma regulação pública maior de nível global na produção, consumo e distribuição de alimentos. É preciso acionar os elementos da política como forma de representação das maiorias para impor um novo contrato social às minorias que insistem em manter seus privilégios e abocanhar a maior parte do progresso econômico e social em benefício próprio.O novo normal para ser sustentável precisa de um “plano Marshal” que recupere o nosso atraso nas políticas de saúde pública, educação e segurança alimentar! Como fazer isso? Bem… E aqui vem o segundo e fundamental ponto que quero ressaltar. Se há um ensinamento que levamos dessa pandemia é que a globalização é muito mais que poder mandar dinheiro via celular, viajar pra qualquer lugar ou comprar coisas produzidas em outras partes do mundo, especialmente na China. A pandemia também nesse aspecto apenas acelerou uma tendência que já se via entre os mais aquinhoados para se refugiar temporariamente: levantar muros, colocar grades nas janelas e trancar-se em casa dizendo que está em home office! Mas nem o isolamento social dos ricos e menos ricos foi suficiente senão para retardar o ritmo da contaminação! A grande “conectividade do vírus” mostrou que, para o bem e para o mal, fazemos todos parte de um mesmo planeta Terra e não há (ainda?) uma Terra B em que alguns poucos possam se refugiar indefinidamente.
Em resumo, a pandemia mostrou que não há uma solução definitiva a nível local e individual se não houver uma solução global também. Em outras palavras, pandemia expôs a fragilidade das nossas instituições e organizações internacionais que operam num sistema que depende do consenso entre todos os países; e da aceitação voluntária das suas recomendações por parte de cada um dos membros afiliados. Vimos em plena crise, presidentes e primeiro ministros desafiarem as recomendações da Organização Mundial da Saúde nos temas de seu mandato e expertise. Pior ainda: vimos o governo do país mais rico da Terra cortar os poucos recursos que ajudavam a entidade a combater a pandemia nos países mais pobres.
Vimos também as organizações internacionais encarregadas de combater a fome e a má nutrição no mundo, como a FAO, IFAD e PMA, entregarem ao Conselho de Seguranca da ONU (CSU) um informe alertando para o perigo dos países em conflito enfrentem “uma fome de proporções bíblicas”, sem que o CSU conseguisse tomar nenhuma iniciava para restabelecer a paz nesse momento de crise mundial agudizada pela pandemia! Vale lembrar que a FAO foi a primeira organização internacional criada depois da II Guerra com a esperança de que uma vez alcançada a paz, poderíamos erradicar a fome da Terra.
Não há menor dúvida que o “novo normal” não pode se amparar em instituições internacionais frágeis que dependem das contribuições voluntárias dos países membros. A pandemia expôs a fragilidade mesmo da organização de países mais avançada que temos –a União Europeia, que se mostrou incapaz de coordenar uma reação sincronizada entre seus próprios membros.
Não tenho competência no assunto para apresentar sugestões próprias, assim que termino endossando a proposta do eminente jurista italiano professor Luigi Ferrajoli:
“Uma Constituição global mais forte que os mercados” segundo entrevista publicada no “L’ Osservatore Romano” em 18 de abril 2020:
“A ONU é hoje o único ordenamento internacional em que são membros praticamente todos os Estados da Terra. Trata-se de democratizá-la, de reforçá-la e principalmente de lhe modificar a estrutura.
(…) Aquilo que é necessário é principalmente a implementação –que obviamente exige uma decisão política a ser tomada pelos governos nacionais –de adequarem funções e instituições de garantia para a saúde, para a subsistência, para a educação de base, para a vida no planeta, ou seja, para os direitos fundamentais já estabelecidos em tantas declarações de direitos humanos, que se trata simplesmente de levá-las a sério. Nessa perspectiva, uma Constituição da Terra deveria introduzir uma propriedade planetária dos bens comuns como a atmosfera, a água potável os glaciares e o patrimônio florestal.
Deve também prever uma tributação global capaz de financiar a Organização Mundial da Saúde, a FAO e outras autoridades de garantia”.
(versão completa pode ser lida em português no meu blog grazianodasilva.com)
Em outros tempos políticos o Brasil já capitaneou essa ideia de estabelecer taxas muito pequenas, tipo taxa Tobin sobre as transações financeiras ou sobre as passagens aéreas para turismo, para financiar projetos de interesse global. Mas eram outros tempos em que a esperança havia vencido democraticamente o medo na Política (com “P” maiúsculo) e iniciado uma década em que o Brasil foi capaz de erradicar a fome!
* Professor Titular (aposentado) Instituto de Economia da UNICAMP. Ex -ministro da Segurança Alimentar e Combate à Fome do primeiro Governo Lula e ex-Diretor Geral da Organização para a Alimentação e Agricultura das Nações Unidas (FAO ONU)
Publicado na revista Segurança Alimentar e Nutricional, publicação científica eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Alimentação (Nepa) da Unicamp.