Entregando comida, passando fome: a realidade dos entregadores de apps

Parte da nova ‘economia gig’, os entregadores de aplicativos fazem um dia de mobilização para pedir aumento do valor das corridas, fim de bloqueios indevidos, seguro de vida, entrega de EPIs e licença remunerada para os que se contaminam, entre outras reivindicações

Foto: Roberto Parizotti/Fotos Publicas

“É tortura passar fome carregando comida nas costas”. Galo, um dos líderes do movimento, é quem diz essa frase em um vídeo-desabafo impactante, após ter sido punido por cancelar um pedido porque o pneu da sua moto furou.

Sem vínculo empregatício, sem direitos trabalhistas, sem remuneração adequada e também sem adequada proteção social vinda do Estado, grande parte da população vive condições precárias de trabalho, entradas e saídas frequentes da condição de pobreza; além de sofrer com a ampliação das desigualdades e a redução de direitos.

A pandemia de Covid-19 chegou para escancarar os efeitos desse novo modelo econômico e trabalhista, de uma “economia gig” desregulada e de um Estado cada vez mais ausente em seu dever de garantir de direitos. É nesse cenário que se estrutura a greve nacional de entregadores por aplicativos em todo o Brasil, o #brequedosapps.

Economia GIG

Os serviços baseados em aplicativos fazem parte de uma nova estrutura de trabalho categorizada como “economia gig”. Se pensarmos que o mercado de trabalho é um espectro, de um lado estão os servidores públicos e os empregos corporativos tradicionais, com CLT; e no outro extremo, os desempregados. No meio, a grande variedade de trabalhos alternativos, agora chamados de “economia gig”. Pode incluir trabalhadores contratados, parciais, independentes e autônomos (Mulcahy, 2018).

A economia gig ainda está em seus primeiros estágios de mudança na forma como o trabalho e o capitalismo são organizados. Apenas uma geração atrás, a maioria dos trabalhadores esperava ser contratada para empregos em tempo integral e permanecer muitos anos trabalhando para a mesma organização. Para a nova geração, as perspectivas são diferentes. À frente deles, não há mais muitos cargos estáveis, eles podem esperar ficar pouco tempo em cada trabalho e provavelmente terão remuneração menor (Gould, 2014).

Uma das maiores características da economia gig no momento são os serviços baseados em aplicativos. Os mais tradicionais são os aplicativos de transporte, como Uber e Cabify, e os aplicativos de entrega de comida como Ifood, UberEats, Rappi.

Um estudo da McKinsey (2016) mostra que a entrega de alimentos por meio de aplicativos on-line atingiu em 2016 globalmente 30% do mercado total de entrega de alimentos. E eles acreditam que seguirá aplicando, chegando eventualmente a 65% ao ano. No Brasil, passou de 10% para 30% nesses meses de pandemia.

O surgimento da economia gig baseada em plataforma está situado em debates mais amplos sobre o futuro do trabalho (Healy et al., 2017). Há visões polarizadas sobre as implicações dessas novas formas de organização do trabalho para os trabalhadores e para a sociedade.

Alguns (por exemplo, Mulcahy, 2017) defendem que existe um potencial do trabalho gig de melhorar a flexibilidade do mercado de trabalho e reduzir a pobreza, enquanto os críticos (por exemplo, Stewart e Stanford, 2017) argumentam que isso irá corroer a segurança de renda, as condições de trabalho e os direitos trabalhistas. E que poderia aumentar a desigualdade, além de guiar para um cenário de polarização de renda.

Regulação

Para que as demandas dos entregadores sejam atendidas, uma primeira medida essencial é que exista transparência por parte dos aplicativos. Os dados sobre perfil de entregadores, horas trabalhadas, remunerações e benefícios devem ser públicos. Igualmente devem ser transparentes os dados financeiros dessas empresas, com destaque ao lucro auferido e aos beneficiários finais. A partir disso, serão possíveis a realização de estudos e o desenho de políticas públicas que promovam um ambiente de negócio e trabalho mais adequados.

As demandas são: aumento do valor das corridas, aumento do valor mínimo por entrega, o fim dos bloqueios e desligamentos indevidos, seguro de vida e de roubo, o fim do sistema de pontuação e auxílio pandemia – com entrega de EPIs e licença remunerada para os que se contaminam.

Compensa conhecer iniciativas em outros países que têm buscado uma regulação dos aplicativos de entrega. Nova Iorque tem trabalhado com valor mínimo por hora adequadamente calculado considerando manutenção do meio de transporte e tempo disponível ao aplicativo ainda que não em rota (Parrot, 2018). Demandas de valor por corrida, seguro roubo e regras de bloqueio e desligamento do aplicativo também podem ser construídas entre aplicativo e entregadores, com regulações mínimas para que os direitos dos trabalhadores sejam resguardados.

Proteção social

Outras demandas do #brequedosapps como seguro de vida e licença por doença poderiam ser consideradas de forma mais ampla, dentro da lógica de seguridade social. Ainda que não ocorra vínculo via CLT entre aplicativos e entregadores, seria ideal que todos fossem beneficiários do INSS, para ter acesso também a outras garantias trabalhistas, como direito a férias, aposentadoria, licença-maternidade.

Cabe lembrar também que o avanço tecnológico tende a se ampliar nesse setor e é possível que entregadores em um futuro não muito distante venha a ser substituídos por drones ou outros veículos automáticos. Antecipando esse fenômeno, é essencial que o Estado cumpra seu dever de garantir direitos humanos e reduzir desigualdades e amplie sua rede de proteção social.

O que deve ser feito com financiamento adequado, acesso e qualidade nos serviços públicos, como o SUS, as escolas universidades públicas, os transportes públicos. Além da estruturação de uma renda básica universal, que garanta uma renda de cidadania frente a esses tempos de tantas transições e incertezas.

Grazielle David é doutoranda em Desenvolvimento Econômico no IE-Unicamp

Artigo originalmente publicado no Brasil Debate

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