Nenhum sistema de saúde e vigilância estava preparado para a pandemia

“Estamos todos passando pela mesma tempestade no mesmo mar. Mas é como se alguns estivessem em transatlânticos, outros em iates, outros em barcos a vela ou mesmo canoas”

A socióloga Nísia Trindade Lima, presidente da Fiocruz

A pandemia de covid-19 mostrou que nenhum país do mundo estava preparado à altura para enfrentar sua novidade. Mesmo com o histórico recente de enfrentamento das epidemias de HIV-Aids, H1N1, Sars, Dengue, Zika e Chicungunya, a virulência do novo coronavírus (Sars-Cov2) surpreendeu a governos dos mais diferentes espectros, expondo suas debilidades e forças. A presidente da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) Nísia Trindade Lima fez uma reflexão, em entrevista ao site Ecoa, sobre o aprendizado histórico de sua entidade, desde que surgiu, 120 anos atrás, para enfrentar a peste bubônica, a varíola e a febre amarela.

Nísia também observa como a pandemia encontrou os brasileiros no início do século XXI: “uma situação de muita informalidade no emprego, de grande desigualdade na distribuição de leitos, de subfinanciamento do SUS, entre outras coisas.” Por isso, diferente de outros países menos desiguais, no Brasil não estamos no mesmo barco. “Estamos todos passando pela mesma tempestade no mesmo mar. Mas é como se alguns estivessem em transatlânticos, outros em iates, outros em barcos a vela ou mesmo canoas”, reflete. Num país com muitas desigualdades, o vírus pode evidentemente atingir a qualquer um, mas uns podem se resguardar melhor do que outros, visto que milhões de brasileiros sequer têm acesso a água limpa e encanada e que, para muitos, evitar aglomerações soa como uma utopia.

Para a socióloga, a primeira mulher a ocupar a cadeira da presidência nos 120 anos da instituição que atua na linha de frente do combate à pandemia no país, o alastramento da covid-19 também encontra um ambiente de forte contestação do conhecimento científico. Isto também não é novo, em sua opinião, pois a ciência não traz verdades definitivas nem as traz na velocidade desejada. Para ela, é preciso reafirmar a importância científica e o alinhamento dos conhecimentos vindos de todas as áreas da ciência, pois outras pandemias virão, talvez mais cedo do que se imagina, com o aumento da circulação de pessoas e os impactos climáticos e ambientais.

Por isso, é tão necessário o fortalecimento do Sistema Único de Saúde (SUS) e o processo de desenvolvimento de uma vacina, assim como de medicamentos para tratamento dos pacientes, como bens públicos e universais, pois estas pandemias só podem ser combatidas com cooperação internacional ou os esforços nacionais serão inúteis.

O Brasil e a vacina

Nísia relata que a Fiocruz tem acompanhado o processo inédito de aceleração para descoberta de uma vacina, juntamente com outras instituições brasileiras e o Ministério da Saúde, para estabelecer parcerias e acompanhar os projetos mais promissores. A Fiocruz também está investindo em pesquisas para uma vacina nacional, são três projetos de pesquisa em andamento, mas ainda em fases pré-clínicas. “Por isso, é mais provável que uma primeira vacina venha de fora”, prevê.

Bio-Manguinhos, o Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos da FioCruz, se antecipa na observação das potenciais parcerias, suas competências tecnológicas, capacidade de produção, distribuição e logística, de modo a se preparar para quando uma vacina estiver aprovada, ela possa estar disponível à população brasileira. Ela destacou a importância da decisão da Assembleia Mundial da Saúde que determinou que imunizantes e medicamentos para covid-19 são bens públicos, como algo que permitirá a produção local da vacina.

O Complexo Industrial de Biotecnologia em Saúde (Cibs), em Santa Cruz, é o maior investimento do país em biotecnologia e que aumentará a capacidade atual de 20 milhões para 120 milhões de frascos de vacinas e biofármacos por ano. Nísia trabalha para que essa ampliação de capacidade esteja pronta para atuar assim que a vacina estiver pronta.

O legado histórico das epidemias

Ela não tem receio em falar em lições tiradas da história em relação a epidemias, embora os momentos sejam muito diferentes, assim como as realidades locais. “A cooperação entre países, ou a diplomacia em saúde, por exemplo, nasce do reconhecimento da relação entre saúde e economia há cerca de mais de um século. Isso é algo que precisamos resgatar, vírus não respeitam fronteiras”, diz ela.

A criação da Organização Pan-Americana de Saúde (Opas-OMS) é um resultado desse legado histórico, assim como a FioCruz. Algo que começou a ser montado na virada do século XIX para o XX como resposta a uma epidemia de febre amarela no continente, que afetou a economia de cidades portuárias.

Nísia compara muito a pandemia atual com aquela de gripe espanhola, porque houve muitos paralelos com a atualidade, por sua extensão e também em relação aos métodos de enfrentamento, como isolamento e quarentena. Tendo eclodido ao final da Primeira Guerra Mundial, veio se somar ao cenário de devastação nos países europeus e provocou muito mais mortes – estimadas em cerca de 35 milhões – do que a própria guerra. No Brasil, o impacto em perda de vidas, desabastecimento de gêneros alimentícios e crise econômica foi também imenso.

As diferenças de analogia estão no mundo globalizado em que vivemos hoje, com imensa circulação de pessoas e mercadorias, vivendo, ao mesmo tempo, o impacto da destruição ambiental e várias formas de vulnerabilidade. Estas vulnerabilidades não se restringem a países pobres, pois, mesmo em países ricos que viveram recentemente o processo de desindustrialização, tornaram-se dependentes da importação de vários itens fundamentais para o enfrentamento da pandemia, desde equipamentos de proteção individual e respiradores a medicamentos.

Desde a década de 1980, lembra ela, muitos cientistas, de diferentes áreas de conhecimento, vêm alertando para o mito de que o mundo superaria o problema representado pelas doenças infecciosas, a partir do desenvolvimento de novos fármacos, vacinas e melhoria das condições sanitárias. “Por um lado, verificou-se, ao contrário dos prognósticos otimistas, a emergência de novas doenças, sobretudo virais, a exemplo da epidemia do vírus HIV e do impacto da Aids em todo mundo. E também a re-emergência de antigas doenças, sob impacto da questão ambiental, entre as quais destacam-se os recentes surtos de febre amarela e a mudança geográfica de sua distribuição no Brasil”.

Alguns aprendizados que ficaram das epidemias virais recentes foi a formulação de programas mais integrados e em diálogo com movimentos sociais, a exemplo da epidemia de HIV/Aids e seu impacto na formulação de programas de desenvolvimento e acesso a novos medicamentos. A organização de redes de pesquisa, como ocorreu com a tríplice epidemia de zika, dengue e chicungunya, também. “Com a zika, por exemplo, foram formadas redes importantes, que unem cientistas de diversos campos e o compartilhamento de dados que são úteis agora. Essas experiências nos permitiram aprimorarmos nossos sistemas de vigilância”, acrescenta.

“Nenhuma resposta à pandemia surge sem um lastro da história”, explica. O sistema de vigilância do InfoGripe para Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG), que está sendo muito utilizado neste momento, por exemplo, surgiu como uma resposta à H1N1, em 2009. Todo um aprendizado acumulado que permitiu oferecer treinamento para outros laboratórios do Brasil e da América Latina e coordenar projeto em rede de sequenciamento de genoma do vírus, algo fundamental para desenvolvimento de medicamentos e vacinas. “Além disso, no caso do Brasil, inexistia um sistema nacional de saúde no início do século, tampouco políticas de proteção social. Nosso grande diferencial hoje é termos o Sistema Único de Saúde”, declara.

Negacionismo científico

A pandemia está expondo diversas feridas e colocando luz em problemas antigos. Nísia diz que esta crise sanitária mostrou que o “o rei está nu”, ao mostrar um mundo que não está preparado para garantir a saúde das pessoas, nem a saúde das economias. “Acredito que podemos sair disso com uma lição de mais solidariedade. É importante a consciência de que vivemos em um mesmo planeta e somos interdependentes, tanto uns dos outros, como do meio ambiente”, analisa. Por outro lado, ela destaca as inúmeras desigualdades que fazem com que a doença não atinja a todos da mesma maneira.

Qualquer política pública pós-pandemia precisa olhar para esses aspectos para também amortizar os efeitos econômicos e sociais da pandemia, que são complementares às questões de saúde.

Ela acredita que seja muito difícil vencer o obstáculo do negacionismo científico “de uma vez por todas”. A ciência não trabalha com verdades absolutas e certezas, diz ela. “Por isso, ainda mais em momentos como este, em que estamos lidando com uma situação nova e desconhecida, muitas vezes é difícil comunicar a incerteza”.

Os cientistas estão trabalhando para dar as respostas necessárias, mas a ciência tem seu tempo e precisa ter calma para que o rigor ético não se perca. Por outro lado, há a disseminação de notícias falsas e curas milagrosas. “A melhor forma de combater isso é investirmos na divulgação científica, na comunicação e na educação em ciências, que sempre estiveram presentes na Fiocruz”, sugere.

Ela celebra o fato dos cientistas terem muito espaço na mídia e no debate público, neste momento, embora essa comunicação com a sociedade não seja constante. Nísia explica que os cientistas não podem ficar isolados em seus institutos e laboratórios, assim como a sociedade também precisa compreender e participar do processo científico, para entender que ela trabalha com métodos que podem ser avaliados, contestados e revistos a partir de outros estudos, se as evidências assim indicarem.

O maior desafio

A maior dificuldade nesta pandemia, segundo Nísia, é lidar com um país do tamanho continental como o Brasil, com todos os problemas e desigualdades pré-existentes. “Quando a covid-19 chegou ao Brasil encontrou uma situação de muita informalidade no emprego, de grande desigualdade na distribuição de leitos, de subfinanciamento do SUS, entre outras coisas. Nenhum destes problemas é novo, mas eles agravam a crise na saúde”.

Vivemos no Brasil, na opinião dela, não uma epidemia, mas várias epidemias, de acordo com os contextos particulares. Há, também, uma população que já possuía muitas comorbidades anteriores, doenças crônicas como diabetes, hipertensão e obesidade, que são fatores de risco para o agravamento da doença. “Por isso, assistimos o rejuvenescimento da covid-19 no Brasil. A estimativa é de que cerca de um terço da população adulta possui algum fator de risco”, observou.

Outro problema que ela menciona foi a competição mundial por insumos, como equipamentos de proteção individual (EPIs), respiradores, testes e medicamentos. “Temos uma dependência tecnológica muito grande ainda na área da saúde. Atualmente, importa-se 90% de fármacos, 80% de ventiladores e equipamentos e até para produtos mais simples, como as EPIs, a dependência chega a 90%”.

Ela diz que a Fiocruz defende o que chama de Complexo Econômico-Industrial da Saúde, modelo de desenvolvimento que tenha a saúde como centro e que possa garantir a autonomia do SUS.

O papel da FioCruz

Nísia explica que o instituto não tem como papel apenas correr atrás do prejuízo nesta pandemia, mas também investir em conhecimento científico avançado e contribuir com o conhecimento adquirido em todo o mundo. O tratamento dos pacientes do recém-inaugurado hospital será fundamental para acelerar as pesquisas sobre a eficácia de medicamentos para tratamento da covid-19. O ensaio clínico “Solidarity”, da OMS, permite que ao longo do estudo e das análises, haja alteração das opções terapêuticas propostas, com inclusão ou exclusão de drogas.

O Ministério da Saúde convidou o Instituto Nacional de Infectologia da Fiocruz para coordenar esse estudo no Brasil inteiro. O país foi o primeiro latino-americano a entrar no estudo e a incluir pacientes.

Os leitos estão sendo ocupados gradualmente, a partir da avaliação diária e conjunta da direção com as secretarias municipal e estadual de saúde. Em seu pleno funcionamento, serão 195 leitos, destinados ao tratamento intensivo e semi-intensivo de pacientes graves com a covid-19.

Construído em regime emergencial, o hospital possui características específicas que o diferenciam das unidades de campanha erguidas pelo país para funcionamento temporário. Nísia conta que todos os leitos, por exemplo, contam com um sistema de isolamento com pressão negativa do ar, específico para infecções por aerossóis. No interior dos quartos, que são individuais, uma tubulação é responsável por sugar o ar contaminado que passa por um sistema de filtragem antes de ser eliminado por chaminés instaladas na parte externa da construção. Há, ainda, uma central de tratamento de esgoto própria, concebida para tratar resíduos com o novo coronavírus e garantir destino seguro do efluente gerado.

O SUS ou a barbárie

Diante do descrédito e desconfiança de parte da população no SUS, Nísia é enfática ao dizer que “a saída para isso é o fortalecimento maior do SUS”. Conforme ela define, o Brasil criou, junto com sua democracia, um sistema de saúde único e ousado, com os princípios de universalidade, integralidade e equidade. “É o maior sistema deste tipo no mundo. O Brasil é o único país com mais de 100 milhões de habitantes com assistência médica gratuita para toda a população”.

Muitas das fragilidades do sistema são decorrentes do subfinanciamento. No entanto, ela considera importante reafirmar as conquistas do SUS. “Temos pesquisas que demonstram inclusive que os usuários do SUS possuem uma imagem melhor de seus serviços do que aqueles que não o utilizam com frequência. Porque, de uma forma ou de outra, todos os brasileiros fazem uso do SUS, mesmo os usuários de planos de saúde”.

Ela ressaltou os méritos do programa de vacinação, a vigilância epidemiológica, os transplantes de órgãos, tudo feito exclusivamente via SUS. “Ele é uma fortaleza que temos e as medidas que estamos tomando agora são também para protegê-lo de um colapso. Sem o SUS é a barbárie”, parafraseou ela o médico Gonçalo Vecina. “Precisamos defendê-lo como uma conquista civilizatória, tal como determinou a Constituição promulgada em 1988. Antes dele, apenas os brasileiros com carteira de trabalho assinada tinham direito à assistência médica e à proteção previdenciária, delineando o que o cientista político Wanderley Guilherme dos Santos designou como cidadania regulada”, citou.

Antes do SUS, trabalhadores informais e rurais pagavam pelo atendimento, ou dependiam dos poucos hospitais públicos ou das Santas Casas espalhadas pelo país. “Hoje, a Atenção Básica está presente em 95% dos municípios, cobrindo 60% da população, e temos uma rede de vigilância em saúde organizada nacionalmente. Temos uma rede de bancos de leite, coordenada pela Fiocruz, responsável por reduzir a mortalidade de recém-nascidos. Nosso programa de distribuição de medicamentos contra a aids também é uma referência mundial. Todas essas são conquistas que precisam ser reafirmadas e ampliadas, com mais financiamento e continuidade nas políticas”, defendeu ela.

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