Nobel da Paz sobre ações de Bolsonaro na pandemia: fracasso total

O ex-presidente da Colômbia e receptor do Prêmio Nobel da Paz, Juan Manuel Santos, disse que é “uma loucura” como o Brasil, governado pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido), está conduzindo a pandemia do novo coronavírus.

O ex-presidente da Colômbia e Prêmio Nobel da Paz, Juan Manuel Santos Foto: Acervo Pessoal

“É uma loucura. É uma liderança que em vez de estar ajudando a resolver o problema, está contribuindo para piorar o problema”, disse durante entrevista à BBC News Brasil.

Ele acha que os presidentes da região deveriam chamar Bolsonaro “à sensatez”.

Santos, visto como de centro-direita no espectro ideológico, afirmou que esse quadro brasileiro repercute no resto da região. “Nessa situação, o Brasil é um péssimo exemplo na região. Uma política que está produzindo um fracasso total, uma verdadeira tragédia para os brasileiros e para o mundo”, disse, falando da Colômbia.

Santos, que foi jornalista, militar e ex-ministro da Defesa, disse que a atitude do líder brasileiro ameaça as comunidades indígenas da Amazônia de extinção. Leticia, do lado colombiano, na fronteira com o Brasil, é o lugar mais afetado pelo coronavírus em seu país.

Ao resumir a postura de Bolsonaro como uma “loucura”, ele diz estar se referindo ao fato dele considerar uma pandemia como uma gripezinha. Dar sinal para que ninguém exerça nenhuma disciplina social, que ninguém acate as recomendações dos cientistas, dos médicos, só agrava o problema. “E agora vemos os resultados”, diz referindo-se aos números altos de doentes e mortos.

Para ele, os líderes devem dar exemplos. Os líderes têm responsabilidades com sua população. “O que vemos hoje no Brasil e nos Estados Unidos são líderes que dão maus exemplos”.

Quando perguntado sobre a forte presença de militares no governo brasileiro, ele disse que não tende a dar bons resultados.

Ele concorda que o Brasil virou uma ameaça aos vizinhos, nesta pandemia, por não ter uma política contra a covid-19. “Nós estamos muito preocupados porque essa região amazônica (onde está Leticia) não está apenas sofrendo pela pandemia, mas as comunidades indígenas, que devemos preservar, porque são os melhores guardiões de um ecossistema que é fundamental para o mundo, podem desaparecer. Estão totalmente desprotegidas”.

Essa falta de política por parte do Brasil repercute imediatamente, diz ele, como ocorre no caso colombiano. Uma das regiões com mais casos, e contágios mais rápidos, e mais mortes é exatamente a região que faz fronteira com o Brasil, na Amazônia. “Por isso, a política do Brasil influencia o resto da América Latina e a influência que está tendo é muito negativa”.

Santos disse que não conversaria com Bolsonaro sobre essa ameaça à região, pois tomou como “decisão de vida não intervir em política, em assuntos internos de um país”. “Espero que outros o façam. Quem dera meu presidente (Iván Duque) pudesse falar com Bolsonaro. Ou que outros presidentes da América Latina pudessem falar com Bolsonaro para que ele ‘entre en razón’ (tenha sensatez). Por isso, eu dizia que estamos vendo uma total falta de liderança na América Latina. Mas são os presidentes, os chefes de Estado atuais, e não os anteriores, aos quais corresponde realizar ações concretas”, sugeriu.

Santos fala em total falta de liderança unificada na região. Ele exemplifica que um dos problemas mais graves que a América Latina tem e vai ter é o financiamento, porque não tem a capacidade dos países desenvolvidos de fazer o que é necessário. Todos os países da América Latina têm limitações fiscais e estão com necessidades cada vez maiores de financiamento. “No entanto, em nenhuma instância, na arquitetura financeira mundial, a América Latina está levando uma voz concreta. Não está fazendo nenhuma proposta. Pior ainda, estão nos tirando, neste momento…”

A presidência do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento), em sua opinião, era a única representação importante da América Latina em organismos multilaterais, mas sua presidência foi perdida para um norte-americano pela articulação de Bolsonaro. “E isso com o apoio dos presidentes da América Latina. Isso não entra na minha cabeça. Acho totalmente contraproducente. É a única instância que temos para pelo menos sermos ouvidos nas discussões internacionais sobre financiamento, sobre a economia”, lamentou.

Santos se refere ao imbróglio em que o Brasil tinha um pré-candidato e a Argentina também, e o chanceler brasileiro Ernesto Araújo disse que viu “positivamente” a indicação feita pelos Estados Unidos e mudou uma tradição de 60 anos, apoiando-o. E o atual presidente do BID é o colombiano Luis Alberto Moreno.

Eu não sei o que podem ver de positivo que nos tirem algo que tínhamos há 60 anos”, criticou. Houve um acordo tácito, quando o BID foi criado, que o BID seria localizado em Washington, mas que a presidência do BID sempre seria de um latino-americano. “E o senhor Trump rompeu com essa tradição e quer impor um candidato que, além de tudo, tinha sido vetado pelo atual presidente do BID para a vice-presidência. Então, estamos, nesse sentido, numa situação muito ruim”, completou.

Santos analisou as ações de governos latino-americanos como a destruição da parca institucionalidade regional que havia. A Unasul deu lugar ao Prosul, o Brasil saiu da Celac (Comunidade de Estados Latino-Americanos) e faz aproximações gratuitas com os EUA.

Em sua opinião, o México tem um presidente (López Obrador) que não quer saber de assuntos internacionais. “Do Brasil, já sabemos a postura”. São dois países que, tradicionalmente, deveriam exercer alguma forma de liderança na região, segundo o ex-presidente. A falta desses dois países complica uma situação em que outros países não atuaram e nem houve coordenação.

“Está se destruindo a pouca institucionalidade regional que existia. E isso é muito ruim. Espero que isso gere uma reação e que todos possamos entender que somente colaborando entre nós, dialogando, cooperando entre nós, vamos poder sair adiante nessa pandemia. (…) E a América Latina unida é uma grande força. Mas precisamos que os atuais líderes entendam isso e trabalhem para unir-se. Não que cada um trabalhe para seus próprios interesses políticos porque isso enfraquece a região. E enfraquece cada país”, afirmou.

De acordo com Santos, o fenômeno Trump é responsável pela desagregação que ocorre na América Latina. Não há dialogo entre os presidentes para uma política comum contra a pandemia, por exemplo. Essa semana haverá reunião virtual do Mercosul, mas Bolsonaro e o presidente da Argentina, Alberto Fernandez, não se falam.

“O fenômeno Trump influenciou muito o resto do mundo. Trump buscou enfraquecer o multilateralismo, enfraquecer as organizações internacionais, as Nações Unidas, a Organização Mundial de Comércio, e isso repercute nas regiões. E de certa forma o que aconteceu na América Latina, por problemas políticos como divisões em torno da Venezuela e outros problemas específicos, foi que, em vez de diálogo para encontrar um denominador comum, os países decidiram assumir uma posição de isolamento. E isso no longo prazo é muito negativo”, ponderou.

O entrevistado vê com pessimismo a situação epidêmica da América Latina, conforme lideranças importantes como o ministro interino da Saúde do Brasil e o próprio presidente não dão o exemplo protocolar para o combate à covid-19.

Santos diz que considera “muito mal”, inclusive, na Colômbia, que ainda tem alguns bons indicadores, a tendência de piora. No Chile e no Peru, que começaram bem, com disciplina, segundo sua avaliação, a situação foi sendo deteriorada porque as medidas não foram complementadas com medidas necessárias, como o distanciamento social e o uso de máscaras. “O isolamento não serve, se temos ferramentas e não as usamos”.

Ele vê que a América Latina tem problemas sérios, à exceção do Uruguai e da Costa Rica. No caso colombiano, a tendência é de alta de casos. “Por isso, a liderança e a coordenação são importantes. E bons exemplos. O ministro da Saúde do Brasil não usar máscara é um mau exemplo. Está acontecendo também nos Estados Unidos, com Trump. E isso também é mau exemplo”.

“Qual é o equilíbrio conveniente entre economia e saúde? Ninguém tem a fórmula perfeita”, diz Santos sobre o dilema entre abrir a economia e enfrentar o avanço da pandemia. Mas, em sua opinião, é possível tentar enviar mensagens que gerem confiança na população. “É o que as autoridades deveriam fazer”.

Ele acredita que um dos motivos do sucesso no Uruguai é a confiança que os uruguaios têm em relação ao que seus governos, o nacional e os locais, estão dizendo na pandemia. “Quando existe confiança (nos governantes) as pessoas têm maior disciplina. Estão mais inclinadas a fazer o correto. Quando a confiança não existe, impera a indisciplina e é o que estamos vendo aqui no meu país, no Brasil, no México, no Chile, no Peru. Estamos vendo uma grande indisciplina e sem disciplina por parte da população, vai ser difícil combater a pandemia”, prevê.

Ele também critica os populismos que avançam no continente, independente da pandemia. “Espero que a pandemia acabe levando a cidadania a valorizar cada vez mais a ciência. E que o populismo perca força”, afirmou.

Junto com outros ex-presidentes, como Fernando Henrique Cardoso, do Brasil, Ricardo Lagos, do Chile, e Ernesto Zedillo, do México, Santos assinarou um documento público dizendo que alguns líderes atuam bem na pandemia e outros não. Defenderam a ciência e que o FMI esteja mais presente, com mais recursos para a região. Embora isso já tem algum tempo, ele considera que a relevância desse documento está mantida e voltaria a assiná-lo. “Precisamos ser criativos, de inovações que geram mais recursos financeiros para enfrentar a catástrofe econômica na região”.

Sobre previsões para o pós-pandemia, ele mencionou que as Nações Unidas estimam que vamos retroceder 30 anos. “O Banco Mundial diz que voltaremos a ter os índices de pobreza que tínhamos no começo do século e que vamos ter um desemprego alto durante muito tempo”.

Mas ao mesmo tempo, afirma ele, a pandemia deu visibilidade aos problemas graves de desigualdade, de falta de produtividade, de pobreza, de vulnerabilidades. “Mas podemos aproveitar a pandemia para reconstruir nossos países com melhores políticas, ou seja, políticas sociais justas e verdes. Precisamos de mais justiça social e precisamos ser muito mais conscientes de combater as mudanças climáticas, porque essa pandemia é uma pequena situação diante da tragédia das mudanças climáticas”.

Santos não acha que apenas o Brasil preocupe com os rumos de sua democracia, desde que Bolsonaro participou de um ato com manifestantes que pediam a intervenção no Supremo Tribunal Federal. O que vejo é uma tendência no mundo todo de usar a pandemia para que os governos saiam fortalecidos, mas com o custo de afetar a divisão de poderes, enfraquecendo os Supremos e até o Congresso. Isso é o contrário do que defende qualquer democrata. Acho que é preciso estar atento. E isso está acontecendo não só na América Latina, mas em vários lugares do mundo todo. Os governos gostam de ter todo o poder, ter controle de tudo e isso pode virar um costume. Claro que sabemos que existem situações excepcionais em função da pandemia e o governo precisa de mecanismos para atuar. Mas isso não pode ser uma regra e sim uma exceção”.

Santos se mostrou reticente com o fato do governo brasileiro contar com forte participação de militares. “Como democrata, não gostei nunca que militares respondam pelos governos. Os militares – e eu fui militar – devem cumprir com seu mandato constitucional. E não virar um co-governo”. Ele defende que o governo deve estar nas mãos dos civis. A essência da democracia exige que os militares cumpram seu dever e não interfiram na administração dos assuntos públicos, declara o Nobel da Paz, “porque essa fórmula, geralmente, gera consequências negativas”.

No final do ano passado foram realizados fortes protestos no Chile, na Colômbia, no Equador e em outros lugares da América Latina. Santos acredita que estas convulsões voltarão, passada a pandemia. A desigualdade social será um denominador comum dos protestos, na opinão dele. Ele se refere ao aumento da desigualdade, do desemprego, e dos pequenos empresários quebrados, após a pandemia. “Em países como o meu, até os mais velhos, confinados na marra, também saem para protestar. Então, acho que os protestos estão congelados, mas quando a pandemia passar, serão retomados”. Ele diz ser “otimista nato” e acha que essa combinação, entre governos dispostos ao diálogo e as manifestações, se houver uma boa liderança, pode canalizar para a criação de nova economia e políticas que corrijam os problemas que existem há 200 anos na América Latina.

Santos considera a eleição americana muito importante para a América Latina. Se Trump seguir na Presidência, diz ele, vai continuar havendo uma política de total desconhecimento em relação à América Latina. “Uma política improvisada que não nos deu nenhum benefício. Acho que o candidato democrata (Joe Biden) conhece a região e trabalhou pela América Latina, gosta e admira a nossa região. A relação entre Estados Unidos e América Latina melhoraria muito com uma mudança de governo nos Estados Unidos”, aposta.

Sobre a situação da Venezuela com o enfraquecimento de Juan Guaidó, ele considera que haja um estagnação. “Continuo insistindo que a única solução e a mais favorável que temos na América Latina e, principalmente na Colômbia que é o mais prejudicado com a situação venezuelana, e não por causa dos venezuelanos, óbvio, é uma solução negociada, pacífica, onde devem estar presentes os jogadores determinantes. São eles Rússia, China, Cuba, Estados Unidos e América Latina. Essa tem que ser a solução e nunca é tarde”, sugeriu.

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