A raiz comum do fascismo: o ódio

Muito se tem falado em fascismo, protofascismo, neofascismo, nazifascismo para tentar definir a ideologia do governo Bolsonaro e de seus apoiadores. Na verdade, pouco importa o prefixo correto. Importa saber o que esses conceitos têm em comum. Após refletir sobre algumas lições da História, cheguei a uma conclusão nada surpreendente, porém didática. O que unifica as diferentes manifestações do fascismo é o ódio. Ódio pelo diferente, pelo estranho, pelo desconhecido, enfim, ódio pelo outro. Sentimento que pode se exprimir através do preconceito, da intolerância e da violência. Não por acaso, os alvos preferenciais do fascista são homossexuais, imigrantes, negros, feministas, socialistas, comunistas, pobres, índios, muçulmanos, judeus, ateus etc.

O capítulo quarto do livro Era dos extremos (1995), de Eric Hobsbawn, no qual me inspirei para escrever este texto, analisa a ascensão do fascismo nas décadas de 1920 e 1930. O renomado historiador declara em certo momento: “Os fascistas eram os revolucionários da contrarrevolução”. Os movimentos liderados por Mussolini e Hitler, na primeira metade do século XX, forneceram uma bandeira comum pela qual conservadores passivos e reacionários de vários países puderam lutar lado a lado, com orgulho militante.

Isso ajuda a explicar a natureza populista do fascismo. Ele se comunica com crenças, preconceitos e medos primitivos, enraizados em todas as classes sociais. O fascismo apela à religião, à família tradicional, à vida simples, a um passado de ouro, em que governo governa, rico enriquece e pobre trabalha. Nisto, indivíduos sem instrução e ricos mal educados podem dar as mãos de vez em quando: o medo da mudança, conformismo, ignorância, racismo, machismo, homofobia, xenofobia etc. Ao longo da história, não são poucos os exemplos de povos que entregaram sua liberdade a ditadores e governos autoritários que prometiam ordem, segurança e volta ao passado.

Curiosamente, o fascismo tem alcance popular, mas seu programa é elitista. A aliança conservadora, que aproxima ricos e pobres, preserva a hierarquia social capitalista. A quem interessa essa divisão quase binária das classes, senão às elites e à alta classe média? E se a classe média decadente e os pobres se rebelassem? Do medo antigo que os ricos têm da rebelião popular, de se verem obrigados a repartir riquezas, perder status, irrompe o ódio de classe. Não à toa, o fascismo é rigorosamente anticomunista. A imprensa corporativa de massa, como parte essencial do capitalismo, liberal ou fascista, desempenhou à risca seu papel histórico de manter a população alienada, manipulada, colocando na boca do trabalhador o discurso do patrão, o discurso anticomunista, conforme a conveniência da época.

A partir da Revolução Russa de 1917, o temor de que os trabalhadores pudessem tomar o poder em várias partes do mundo fez com que capitalistas, conservadores e reacionários abandonassem as vantagens da democracia liberal em troca da proteção de regimes autoritários e fascistas. Os governos liberais, desacreditados pela incapacidade política de lidar com os efeitos socioeconômicos da 1ª Guerra Mundial e da Grande Crise de 1929, tiveram que escolher: 1) ou apoiavam a reforma do capitalismo, através das políticas de bem-estar social, nos moldes da social-democracia; 2) ou aderiam ao fascismo, que poderia garantir a sobrevivência do capitalismo pela força; 3) ou assumiam passivamente o risco de serem esmagados pelo avanço da revolução popular socialista. O liberalismo, como doutrina política e econômica, foi pulverizado na primeira metade do século XX.

E o governo Bolsonaro, no Brasil do século XXI, onde se encaixa nisso tudo? O bolsonarismo, como expressão de uma mentalidade geral, é fascista? Sim, atrapalhado, mas fascista. As ideias e opiniões básicas do atual presidente e de seu rebanho possuem algo em comum com todos os tipos de fascismo: novamente, o ódio.

Felizmente, a incapacidade gritante de Jair Bolsonaro para liderar ou governar qualquer coisa, mesmo um condomínio, quanto mais as Forças Armadas; a inconsistência dos valores defendidos; os sucessivos recuos e vacilações políticas, sinais claros de insegurança; estas e outras debilidades somadas impedem a imposição a sério de uma ditadura militar fascista no Brasil. Vale notar que os poderes moderadores da república, Legislativo e Judiciário, assumiram, mesmo que de forma aparentemente arbitrária, o controle de grande parte das funções do Estado durante a crise do coronavírus no país. E o Ministério da Saúde militarizado permanece de mãos atadas.

O fascismo bolsonarista se caracteriza por conjunto frágil de valores que formam a mentalidade em comum de seus seguidores. A lista é grande, cito alguns exemplos. De um lado, o bolsonarista padrão reivindica liberdades individuais quase ilimitadas; de outro, deseja fervorosamente a volta de uma ditadura militar, regime antiliberal por excelência. De um lado, se diz guardião da moral e dos valores da família tradicional cristã; de outro, cultua um notório colecionador de filhos e casamentos, seu líder e espelho Jair Bolsonaro. De um lado, se diz intransigente com qualquer tipo de corrupção; de outro, defende com unhas e dentes um presidente envolvido com milicianos, grupos de extermínio e desvio de recursos públicos durante mandatos parlamentares de sua família. Inclusive, basta correr os olhos pela internet e pelos jornais para perceber o pouco apreço que o bolsonarista padrão tem pela moralidade e pelas leis.

Quase nada é autêntico no bolsonarismo, a não ser o ódio. O fanatismo cristão é falso, pois nada é mais contrário aos ensinamentos de Cristo do que o culto à violência e às armas. O patriotismo é falso, pois nada é menos patriótico do que idolatrar uma nação estrangeira imperialista, em prejuízo do próprio povo, que morre aos milhares por causa de uma pandemia devastadora, solenemente ignorada pelo presidente. Aliás, a indiferença patológica de Bolsonaro pelos brasileiros ainda precisa ser estudada. Até o liberalismo econômico, bandeira frequente do bolsonarismo para tentar se desvencilhar do rótulo fascista, é falso. Só vai até onde a oligarquia de militares, empresários e latifundiários permite, e um ministro da Economia ultraliberal nada pode contra isso.

O desprezo pelo conhecimento, pela cultura, pela ciência são sintomas da falta de densidade intelectual do bolsonarismo. A única ciência que lhe interessa é aquela que respalda suas ideias, geralmente formada por teóricos renegados, sem relevância para o mundo científico nacional ou internacional. O fascismo liderado por Bolsonaro se ampara na utopia de uma sociedade branca, hetero, cristã, submissa, ignorante, chauvinista. Quem estiver fora do padrão não merece o selo de “cidadão de bem” e terá que enfrentar a exclusão social por toda a vida. Ou seja, o Brasil sonhado pelo bolsonarismo e por parte das elites é impossível. Numa terra heterogênea e miscigenada que nem o Brasil, esses delírios parecem piada. Mas não são, os sectários fundariam um país próprio se pudessem.

Então, diante dessa farsa, não devemos nos preocupar? Devemos sim, e muito. A condução desastrada e ideológica do governo já produziu danos demais para o povo brasileiro em menos de dois anos. Reforma da previdência, privatizações, armamento desenfreado, desmonte de políticas públicas, paralisia na Educação, extinção de conselhos, dezenas de milhares de mortos pelo coronavírus, entre tantos outros prejuízos diretos ou indiretos. Décadas de progresso, desde a Constituição de 1988, se dissolvem no intervalo de poucos dias. E o governo promete ainda mais.

Além disso, tão ou mais preocupante que o avanço do fascismo no Brasil é o avanço dele no mundo. Em diversos países, o ódio fascista saiu do armário e conquistou governos pelo voto popular. A sociedade atual vive um acúmulo de crises que, infelizmente, favorece a proliferação de movimentos reacionários extremistas mundo afora. Se continuarmos subestimando o perigo que ele representa, correremos o risco de testemunhar um novo capítulo de horror na história. Socialistas, comunistas, anarquistas, democratas, trabalhistas, liberais, movimentos sociais e demais correntes antifascistas, todos precisam combater o inimigo comum imediato, com a palavra, com o voto, com a cultura, antes que o fascismo conquiste as massas. Depois disso, poderemos voltar a medir forças na arena política da democracia constitucional, com seus inúmeros defeitos e qualidades. Ou, quem sabe, partir para uma nova onda histórica de revoluções sociais.

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