Tereza Costa Rêgo, a Joana que partiu
Tereza era a camarada Joana, que vem conosco, nessa labuta libertária e pelo socialismo, desde os tempos da ditadura militar até os dias de hoje, décadas
Publicado 27/07/2020 12:04 | Editado 27/07/2020 12:10
No final da tarde de domingo, em meio a essa pandemia avassaladora, chega a notícia de que Tereza Costa Rêgo, a festejada artista plástica de Pernambuco, partira. Quem comunicou o fato foi Luciana Santos, vice-governadora de Pernambuco e presidenta nacional do PCdoB. Ao dar a informação, Luciana acrescentou que “os vermelhos perderam alguns tons de intensidade, neste domingo tão triste”.
Tereza era a camarada Joana, que vem conosco, nessa labuta libertária e pelo socialismo, desde os tempos da ditadura militar até os dias de hoje, décadas. Seu talento artístico invulgar, ela o pôs em sintonia com a movimentação revolucionária da qual participou anos a fio. Vibrava com a arte, vibrava com as vitórias da resistência à ditadura, vibrava com os avanços que via do socialismo.
O tempo passa inexorável e transforma em lembranças lances de alta intensidade.
E assim é que recordo a acolhida que tive em Paris quando lá cheguei em 1976, de passagem para a Albânia e para a China. Fiquei hospedado, semanas, em casa de Diógenes de Arruda Câmara, o Arrudão, a quem é dedicado “Os subterrâneos da liberdade” de Jorge Amado. Joana era a companheira do Arruda.
De logo um fato marcante, desses que não se esquece. Toco no apartamento cujo endereço levava. Abre a porta uma mulher. Brasileira, pelo jeito. Bonita. Estava só. Chorando.
Soubera da minha chegada e já me esperava, manda-me entrar. Fico sabendo que há poucos minutos recebera a notícia da morte de um seu irmão, lá no Recife.
Arruda chegou pouco depois. Passamos a conviver os três naquele apartamento. Dias depois a Joana me conta que acabara de saber da morte do irmão quando a campainha tocou e era eu. Naquele momento adverso em que a mente dilacerada vagueia à procura de algo, eu chegara para compensar a falta do irmão. E ficamos nos tratando como irmão e irmã até que o tempo desfizesse essas imagens.
Na Albânia e na China tudo era objeto de observações meticulosas. Fábricas e escolas, logradouros. E havia viagens, reuniões. Os programas eram puxados. Eu, relativamente jovem e cheio de entusiasmo não cansava por nada, Arruda, resistência de um touro, estava sempre disposto. E a Joana nos acompanhava em todos os cantos. Quando parava era para pintar, para presentear albaneses e chineses com quem nos relacionávamos.
Na viagem de regresso, de novo Paris. Eu demonstrava a minha admiração sincera pela arte da Joana e pela arte em geral, sobre a qual Joana sempre falava. Um dia fui ao Louvre. Vi a Vitória de Samotrácia logo na entrada, vi uma porção de coisa, vi a Mona Lisa. Em casa, quando soube, a Joana achou ótimo eu ter ido ao Louvre e perguntou-me se eu tinha observado tal coisa, e tal outra, e mais outra. Percebo que tinha entendido pouco do que vi. A Joana fez-me então um convite magnífico, programar uma demorada visita ao Louvre com ela me explicando o que estava em exposição. Incrível. Vi um outro Louvre, interessantíssimo.
Voltei ao Brasil ainda clandestino, pela Argentina, onde estava o Dinéas Aguiar. E aí os acontecimentos vão se sucedendo, Chacina da Lapa, prisão, tortura, cadeia, anistia, liberdade, chegada de alguns que estavam no exterior, Renato Rabelo, Conchita, Arruda, Joana. Prepara-se a chegada de Amazonas, João Amazonas, o principal reorganizador do nosso Partido.
Em São Paulo, no aeroporto de Congonhas, numa tarde chega o João. O Partido tinha preparado uma recepção, lá estavam o Renato, o Arruda, dirigentes do Partido local, Joana, eu. O plano era recepcionar rapidamente o João no aeroporto e nos dirigirmos ao Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo, onde haveria um ato de boas-vindas. Todos animados, o Arruda eufórico. Saímos para o Sindicato. Arruda vinha no mesmo carro que o João.
Chego nas imediações do Sindicato antes dos outros, pois saíra na frente. A Joana também chegara. Alguém, tenso, me chama e diz que Arruda morrera dentro do carro, naquela hora. Que choque. E em seguida um acerto, eu, por ser o mais chegado a Joana, deveria dar-lhe a notícia.
Comecei a falar-lhe, procurando um caminho sinuoso para abordar a questão. Ela percebeu minha dificuldade. Lembro-me bem: pegou-me nas mãos, olhou-me nos olhos e disparou: diga-me, Arruda morreu? Confirmei e acompanhei-a até o hospital e a sala onde estava o corpo do Arruda. E aí, também me lembro bem. Quando ia abrir a porta que dava acesso à sala onde estava o Arruda, a Joana toma a minha frente, fita-me com firmeza e diz: “Não quero que ninguém entre comigo, fique aqui”. Entrou sozinha e encostou a porta.
Passaram-se longos minutos. Fui ficando tenso. Resolvi abrir vagarosamente a porta e entrei. Na sala só estava o corpo do Arruda deitado em uma espécie de laje com a Joana do lado.
Anos depois, vejo um painel enorme, impressionante: Arruda estirado em uma espécie de laje e uma mulher prostrada ao seu lado, desolada. “O senhor morto” é o nome desse quadro pintado pela Tereza Costa Rego, em Olinda.