As implicações da pandemia para a educação, segundo Dermeval Saviani

Deveríamos cuidar de desenvolver políticas de inclusão digital e atividades de leitura e escrita para todos os alunos, independentemente da série em que estariam matriculados, caso não sobreviesse a pandemia.

O filósofo e pedagogo Dermeval Saviani em entrevista ao jornalista Cezar Xavier.

O advento da pandemia do coronavírus provocou a necessidade do isolamento social com a recomendação de permanência em casa, em regime de quarentena. Em consequência, no início do ano letivo deste ano, as escolas foram fechadas e as aulas suspensas. Surgiu a proposta do ensino remoto para suprir a ausência das aulas presenciais. 

Esta expressão “ensino remoto” vem sendo usada como alternativa à educação à distância. Isso, porque a EAD já tem existência regulamentada, coexistindo com a educação presencial como uma modalidade distinta, oferecida regularmente. Diferentemente, o ensino remoto é posto como um substituto do ensino presencial, excepcionalmente neste período da pandemia, em que a educação presencial se encontra interditada. 

Como se vê, por definição, o ensino remoto não pode ser admitido como equivalente ao ensino presencial, sendo admitido apenas como exceção. E se diferencia da educação à distância, porque também não preenche os requisitos definidos para essa modalidade, conforme regulamentação em vigor. 

No entanto, mesmo para funcionar como substituto transitório do ensino presencial, determinadas condições precisariam ser preenchidas. Tais como: 

a) o acesso de todos os alunos ao ambiente virtual propiciado pela aparelhagem representada por computadores celulares e similares;

b) considerando que alunos e professores devam estar confinados nas respectivas residências, estas deverão estar todas equipadas com acesso à internet;

c) é preciso que todos os estudantes preencham os requisitos mínimos para acompanharem com proveito o ensino remoto, ou seja, é preciso que todos estejam não apenas alfabetizados no sentido estrito, mas também em sentido funcional. Mais do que isso, não sejam analfabetos digitais.

Ora, está evidenciado o que vem sendo afirmado de diversas maneiras. Que essas condições não são preenchidas para a grande maioria dos alunos, e, mesmo, para boa parte dos professores. 

Mesmo considerando todos esses limites, diversas redes de ensino estaduais e municipais, assim como diversas instituições públicas de ensino superior vêm lançando mão do ensino remoto para cumprir o calendário escolar. 

Grande parte das instituições privadas estão aproveitando a pandemia para ampliar o recurso a procedimentos próprios da educação à distancia e promovendo demissões em larga escala. Foi o caso da Uninove, que, em 22 de junho, demitiu 300 professores por meio de um simples comunicado na internet, de forma totalmente impessoal e grosseira, como foi classificado o ato. 

Então, de fato, prevê-se que o início do período pós-pandemia trará consigo pressões para generalização da educação à distância, como se fosse equivalente ao ensino presencial. 

Aprofunda-se assim, a tendência do processo de conversão da educação em mercadoria, na esteira da privatização que implica sempre a busca da redução dos custos, visando o aumento dos lucros.

Deve-se ter presente que, pela sua própria natureza, a educação não pode não ser presencial. Com efeito, como uma atividade da ordem da produção não material, – na modalidade em que o produto não é separável do ato de produção -, a educação se constitui necessariamente como uma relação interpessoal, implicando, portanto, a presença simultânea dos dois agentes da atividade educativa, o professor com seus alunos.

Ademais, sabe-se que uma das principais funções da educação é a socialização das crianças e jovens. Como operar essa socialização por meio do ensino remoto ou à distância? Este é também um argumento forte contra o ensino dito doméstico.

Na verdade, a tecnologia, desde a origem do ser humano, não é outra coisa senão extensão dos braços humanos, visando facilitar seu trabalho. Hoje, com o advento da automação, toda a humanidade poderia viver confortavelmente com cerca de três horas de trabalho diário, liberando o tempo disponível para o cultivo do espírito, abrindo-se para as formas estéticas, ou seja, para a apreciação das coisas e das pessoas pelo que elas são em si mesmas, sem outro objetivo senão o de relacionar-se com elas.

O avanço da tecnologia vem para propiciar a liberação, e, portanto, a possibilidade de que nos encontremos mais entre as pessoas e não para separar e isolar cada uma no seu computador. 

Agora, o que impede a generalização desse estágio de aumento do tempo livre para usufruto do lazer e do cultivo do espirito é a apropriação privada dos meios de produção e dos produtos do trabalho. Fazendo com que, de meios de libertação dos indivíduos humanos do trabalho pesado, e meio de redução do tempo de trabalho socialmente necessário, a tecnologia se converta em instrumento de submissão da força de trabalho a um tempo sem limite, conduzindo-a à exaustão. 

Foi isso que aconteceu na revolução industrial com a introdução da maquinaria, que levou os trabalhadores a destruir as máquinas. Mas, as máquinas viriam a facilitar seu trabalho, portanto não eram suas inimigas. Seus inimigos eram os donos das máquinas, que se serviam delas para impor um ritmo alucinante à atividade dos trabalhadores. É essa situação que se manifesta agora, com as novas tecnologias expressantes no fenômeno que vem sendo chamado de uberização do trabalho. 

Enfim, o mais sensato, agora, seria simplesmente cancelar o calendário letivo de 2020. Não adianta querer recuperar isso, recuperar aquilo. É um período de pandemia, de exceção, de isolamento, e, portanto, não é o período regular de atividades educativas. 

Deveríamos cuidar de desenvolver políticas de inclusão digital e atividades de leitura e escrita para todos os alunos, independentemente da série em que estariam matriculados, caso não sobreviesse a pandemia. Como, aliás, já foi proposto pela nossa colega Maria de Fátima Felix Rosar, do Maranhão, em uma live realizada recentemente, no dia 9 de julho. 

Caberia, então, prover as residências, em primeiro lugar, das condições de sobrevivência, mantendo a merenda escolar que seria entregue nas casas dos alunos, com os governos assegurando programas de renda para manutenção das famílias, acesso a água tratada nas residências e produtos de higiene.

Em segundo lugar, prover o acesso à internet ao maior número possível de residências, e fazer uma seleção de livros que seriam indicados para leitura digital nas casas em que isso estivesse disponível, e distribuídos na forma impressa nos demais casos. Os professores pediriam que, após a leitura, os alunos fizessem breves redações sobre os conteúdos dos livros lidos. Assim, os alunos não deixariam de estudar, permaneceriam ativos, desenvolvendo a capacidade de leitura e escrita que é necessária e útil à aprendizagem de todas as disciplinas dos currículos escolares.

Assim, quando voltássemos às aulas regulares presenciais, – se vier a vacina, poderemos retornar em 2021, senão, esse isolamento ainda vai se estender –, os alunos retomariam a partir do ponto em que tinham parado no início de 2020, mas já mais qualificados, porque mais habilitados para a leitura e a escrita que vai utilizar em todas as disciplinas do currículo.

Este texto foi extraído da live do portal Vermelho “Rumos da educação em tempos de pandemia e bolsonarismo”, ocorrida no último dia 24 de julho, às 15 horas.

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