Israel celebra acordo de paz e os palestinos perdem de novo

Ao longo de sua história, os palestinos viram seu destino ser determinado por outros, graças a decisões tomadas sem seu conhecimento, quanto mais consentimento.

Benjamin Netanyahu - Foto: Abir Sultan / AFP / Getty Images

Quem poderia ser contra um anúncio de paz entre duas nações formalmente em guerra? Quem poderia se opor ao fato de Israel interromper um movimento que teria significado perda de ainda mais território, de que os palestinos precisam para seu Estado próprio? Obtivemos a resposta na quinta-feira, quando Donald Trump, Benjamin Netanyahu e o governante de fato dos Emirados Árabes Unidos (EAU), Sheikh Mohammed bin Zayed Al Nahyan – MBZ, para seus amigos – anunciaram o que Trump chamou de “acordo de paz histórico” entre Israel e o estado do Golfo. Em troca da “normalização total” das relações, Israel disse que suspenderia sua anexação planejada de grandes partes da Cisjordânia.

Parece ótimo, certo? Houve elogios imediatos das Nações Unidas, da Grã-Bretanha e da França, do Egito, do concorrente de Trump em novembro, Joe Biden, e dos veteranos do outrora real “processo de paz”. A conversa agora é sobre uma cerimônia de assinatura na Casa Branca dentro de semanas, com mais Estados do Golfo – Bahrein e Omã são os candidatos óbvios – prontos para seguir nos próximos dias o exemplo dos EAU.

Não há como negar que todos nós precisamos de um raio de luz na escuridão de 2020, mas este deve ser abordado com cautela. Uma rápida olhada nos vencedores e perdedores pode dizer o porquê. Um beneficiário óbvio é Trump, que agora tem um troféu para exibir na disputa eleitoral.

É claro que não há muitos estadunidenses prestes a mudar de voto por causa de uma mudança diplomática no distante Golfo. Mas o acordo permite que Trump reivindique uma conquista de política externa, embora diminuída por seus vários fracassos na área, seja na Coreia do Norte ou por ter minado o acordo nuclear com o Irã. Ele sempre cobiçou o prêmio Nobel da paz que Barack Obama conquistou antes de cumprir um ano completo no cargo. E, naturalmente, Trump enviou seu conselheiro de segurança nacional para declarar que o presidente “deveria ser um precursor do Prêmio Nobel da Paz”.

O maior vencedor é Netanyahu, que também tem uma eleição no horizonte. Ele está pensando em mais um acordo – seria o quarto de Israel em pouco mais de 18 meses – e a mudança dos EAU lhe dá uma vantagem valiosa. Em julgamento por corrupção, acusado de estragar a resposta inicialmente eficaz de Israel ao coronavírus e de responsável por uma economia abalada, com a casa sitiada por manifestantes furiosos, Netanyahu agora pode desviar a atenção de tudo isso e se concentrar no terreno que ele tornou seu: “segurança nacional ”. Ele pode posar como o estadista prestes a assinar o primeiro acordo israelense com um estado árabe desde o aperto de mão com a Jordânia em 1994, o ator global que domina seus rivais. Ele teve o cuidado de informar que seu ex-oponente e parceiro de coalizão, Benny Gantz, nem sabia sobre o acordo com os Emirados Árabes antes de este se tornar notícia.

Os ganhos para Netanyahu não são meramente eleitorais. Ao concordar em desistir da anexação – que muitos observadores consideraram uma ameaça vazia, de toda forma – ele foi generosamente recompensado, embora a Cisjordânia continue ocupada e os palestinos ainda não tenham seus direitos básicos reconhecidos. Netanyahu é o homem que cutuca seu bolso e então espera um prêmio por concordar em não bater na sua cabeça. Os EAU entregaram a ele esse prêmio. Como alguém no Oriente Médio brinca: “Da próxima vez ele deve ameaçar anexar a Jordânia – assim ele conseguirá um tratado de paz com a Arábia Saudita.”

Não é brincadeira: os EAU podem muito bem estar pilotando um balão de ensaio para os sauditas, já que Riad monitora a reação global a esta etapa. Por enquanto, os Emirados estão saudando uma vitória diplomática, na esperança de colher o prestígio de ter sido “o primeiro a se mover”, como um funcionário dos EAU disse. Eles também protegeram suas apostas nos EUA para novembro: ou aumentaram Trump, e ele ficará em dívida com eles, ou fizeram uma jogada que provavelmente ganhará o favor da equipe Biden e dos partidários do processo de paz que o cercam. “MBZ acaba de fechar sua apólice de seguro”, diz um observador de longa data.

Para MBZ, uma aliança com Israel faz muito sentido. Há uma lógica estratégica óbvia que há muito tempo faz com que os Estados sunitas do Golfo estejam dispostos a se aproximar de Israel: a saber, seu medo e aversão comuns ao Irã xiita. É o que tem alimentado uma cooperação discreta com Israel, especialmente em questões de inteligência, por vários anos. No período em que o Irã perseguia ruidosamente suas ambições nucleares, os Estados do Golfo passaram a ver o inimigo de seu inimigo – Israel – como um amigo em potencial.

Mas há um cálculo mais restrito também. O fim da anexação é um alívio para governantes autoritários como MBZ: esta poderia ter desencadeado um movimento palestino por direitos iguais, cuja mensagem poderia ter se espalhado por toda a região, talvez – quem sabe – incendiando os próprios súditos do MBZ. Melhor para ele se o incêndio for apagado.

Isso leva àqueles que estão visivelmente ausentes dessa lista de vencedores: os palestinos. Ao longo de sua história, eles viram seu destino ser determinado por outros, graças a decisões tomadas sem seu conhecimento, quanto mais consentimento. E agora aconteceu de novo.

Por muitas décadas, o mundo árabe insistiu que não poderia haver normalização, nem paz com Israel sem alguma medida de justiça para os palestinos. Quando o Egito e Israel chegaram a um acordo em 1978, não foi prometido muito aos palestinos, embora houvesse algo; o acordo com a Jordânia em 1994 foi mais longe, incluindo compromissos substanciais baseados no envolvimento direto dos palestinos. Agora, os EAU abandonaram completamente os palestinos.

Com este acordo, sinalizou que Israel pode permanecer um ocupante, fechando a possibilidade de autodeterminação palestina e ainda ganhar aceitação regional. O resultado é que a própria ocupação foi normalizada, com o selo de aprovação árabe. Não é de admirar que o veterano ativista palestino Hanan Ashrawi acusou a MBZ de “trair” seu povo, enquanto o presidente palestino Mahmoud Abbas chamou o acordo do príncipe herdeiro com Israel de uma “traição à causa palestina”. Abbas convocou uma reunião de emergência dos líderes palestinos e retirou seu embaixador dos EAU, mas ambas as medidas serviram principalmente para mostrar o quão pouco ele pode fazer.

Os israelenses vão se deliciar com esta abertura, com sua promessa de embaixadas em cada capital, voos diretos entre elas e tudo o que parece simbolizar: a aceitação no Oriente Médio foi um objetivo da geração fundadora de Israel. Mas a aceitação real requer mais do que a assinatura de um ditador em um tratado. Significa fazer a paz com os povos da região, e não com os tiranos que os governam – e fazer a paz com um povo em particular, o povo fadado a compartilhar a mesma terra. Esse prêmio será muito mais difícil de alcançar, mas é o que importa.

Fonte: The Guardian/Tradução: José Carlos Ruy

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