Como a ditadura tentou constranger Pelé a voltar para a Seleção

Jogador bateu de frente com diversos políticos do regime militar, enfrentou poderosos dirigentes esportivos como João Havelange e ainda teve de lidar com racismo de parte da opinião pública

Pelé disse “love” e foi aplaudido pelos torcedores que participaram de sua despedida oficial dos gramados, nos Estados Unidos, em 1977. Mas anos antes, ao ser pressionado a voltar a jogar pela Seleção Brasileira – da qual havia se aposentado em 1971 –, o melhor jogador do mundo disse “não”, reiteradas vezes. E, em vez de aplausos, houve críticas e mais constrangimento

Manter a decisão de não vestir mais a camisa amarelinha exigiu firmeza. Pelé bateu de frente com diversos políticos do regime militar (1964-1985), enfrentou poderosos dirigentes esportivos como João Havelange e ainda teve de lidar com racismo de parte da opinião pública.

A aposentadoria da Seleção aconteceu após a conquista do tricampeonato mundial em 1970, no México. Pelé tinha 30 anos na época e vivia um dos melhores momentos na carreira. Sua intenção era continuar jogando pelo Santos, com quem tinha contrato até 1974 – mas também queria se arriscar como empresário, ganhar dinheiro com a imagem de melhor jogador do mundo.

“Era um capital simbólico que ele tinha como campeão. Mas a pressão foi muito forte”, diz o historiador José Paulo Florenzano, que publicou pesquisa sobre o assunto com base nos jornais da época. “Imagina o maior jogador de futebol se despedir da Seleção Brasileira no auge sem qualquer homenagem do governo? Foi isso que aconteceu.”

Era um período em que a nefasta ditadura brasileira tentava associar as grandes apresentações da seleção, especialmente na Copa de 1970, à imagem do governo. Remontam a esse período versos célebres como “vamos todos juntos / pra frente, Brasil / salve a seleção”. Mas para Pelé, o assunto estava encerrado e ninguém o faria voltar atrás.

“Pelé ficou surpreso e ameaçou um sorriso quando soube que alguns setores do governo consideraram a sua saída da seleção um ato de indisciplina esportiva”, registrou, em 7 de julho de 1971, o Estadão. “No início, Pelé simplesmente não acreditou que fosse possível. Ele havia acabado de chegar a Bragança para continuar filmando A Marcha.”

Havia outras prioridades em sua mente, conforme a matéria mostra. O governo não aceitava e, por isso, não quis prestar nenhuma homenagem ao jogador nas partidas de despedida. Em 8 de julho de 1971, o ministro Jarbas Passarinho disse ao Estadão que “só em sua despedida definitiva é que governo e o povo lhe prestarão a consagração que o encerramento de sua atividade justificará”.

João Havelange, então presidente da CBD (a antiga CBF), tentava ganhar prestígio no mundo esportivo em busca do cargo de presidente da Fifa. Para tentar manter Pelé na seleção, ele tentou invocar um decreto-lei de número 5.199, que lhe outorgava o direito de “requisitar qualquer jogador” sujeito a “ser suspenso e sofrer outras punições legais, dentro da legislação” em caso de recusa.

“O Pelé peitou o Havelange nessa ocasião e em outras”, atesta Florenzano. “Ele chegou às últimas consequências dizendo que, se fosse pressionado, encerrava a carreira no futebol. O Estadão foi o principal jornal que saiu em defesa da decisão de Pelé.”

No dia 10 de julho, véspera do primeiro jogo de despedida, o jornal publicou o editorial “Episódio esportivo passa a ser político”, com críticas ao regime. “O inábil e irritado recuo do governo, cancelando as homenagens oficiais na despedida de Pelé da Seleção Brasileira, imprimiu um colorido político a um episódio que deveria esgotar-se no plano esportivo”, apontou o jornal. “E criou para o esquema publicitário governamental uma situação que não pode deixar de ser reconhecida como altamente desconfortável.”

Houve dois jogos de despedida. O primeiro foi em 11 de julho de 1971, no Morumbi, em São Paulo, contra a Áustria. Com mais de 110 mil torcedores gritando “fica”, Pelé marcou o gol do Brasil no empate por 1 a 1 – seu último gol pela seleção. Sete dias depois, no o duelo com a Iugoslávia no Maracanã – que terminou em empate por 2 a 2 –, outros 140 mil torcedores clamaram “fica”.

A pressão não parou por aí. “Pelé não aceitou, ontem à tarde em Brasília, o último e mais importante apelo de quantos lhe foram feitos para voltar à seleção brasileira e participar da Mini-Copa: do presidente Garrastazu Médici, que o apresentou ‘na condição de representante da torcida brasileira’, durante audiência concedida no Palácio do Planalto”, destacou o Estadão, em janeiro de 1972

O novo “não” foi o golpe também em Havelange, que tentava organizar um torneio com as principais seleções do mundo em 1972. Era parte de sua campanha para assumir a presidência da Fifa, que viria a se bem-sucedida. Mas o torneio não foi. Além de Pelé, Alemanha, Itália e Inglaterra também não quiseram participar.

A pressão em cima do Rei do Futebol continuava sem dar trégua. Parte da opinião pública tomou as dores do governo militar e passou a tentar apresentar Pelé como uma pessoa gananciosa, que havia deixado a seleção brasileira para ganhar dinheiro. Pelé, obviamente, era bastante requisitado para comerciais e filmes.

O jornal Cidade de Santos chegou a publicar uma série de charges contra Pelé, assinadas por J.C. Lôbo. Nas mais preconceituosas, o atleta era apresentado, por exemplo, como vendedor de refrigerante no estádio. “Foram muitas charges e comentários racistas. O Pelé querer contribuir para a sociedade como empresário, no fundo a interpretação é essa: o lugar do Pelé é no campo jogando bola, uma maneira de designar o lugar do negro na sociedade”, opina Florenzano.

Em fevereiro de 1974, com a Copa do Mundo se aproximando, Pelé enviou carta ao editor de Esportes do Estadão, Luís Carlos Ramos, para reafirmar que não voltaria a vestir a camisa do Brasil. “Finalmente alguém conseguiu sintetizar em um só artigo toda a minha consciente decisão de não mais jogar pela seleção brasileira e os problemas que com ela estão criando, tentando através de motivações absurdas jogar a opinião pública contra a minha pessoa”, escreveu Pelé.

Dois dias depois, Pelé recebeu uma carta de João Havelange pedindo mais uma vez que repensasse. “Minha esperança cresce ao recordar suas provas de amor, como cidadão e tricampeão mundial de futebol, aos anseios em que palpita a presença do Brasil”, escreveu o mandatário. Pelé rebateu com agradecimentos: “É chegado o momento de mostrar aos brasileiros que posso ser útil ao País em outros campos de atividades, com a mesma dedicação, honestidade e motivação com que sempre defendi a nossa Seleção. Contando com a compreensão de V.Sas., cordialmente”.

Os militares ainda não se deram por satisfeito. Em abril, Pelé foi recebido por dois ministros em Brasília e precisou manter mais uma vez a decisão. Segundo o Estadão, o Rei do Futebol chegou a comentar com amigos que cogitava antecipar sua aposentadoria em abril, e não em outubro, como previa.

Quando notaram que não teria como fazê-lo participar da Copa da Alemanha, em 1974, Pelé se tornou para muitos um inimigo do Brasil. Durante os jogos do Mundial, motivados também pelas fracas atuações da equipe nacional, familiares do jogador chegaram a ser ameaçados.

Enquanto Pelé estava na Europa, onde assistia à Copa do Mundo, uma nova ameaça contra ele começou a surgir em comentários pelas ruas de Santos: caso o Brasil perdesse os primeiros jogos e saísse do campeonato, a sua casa no canal 6, bairro da Ponta da Praia, seria apedrejada.

As novas revelações contradizem – ou ao menos atenuam – as acusações de que Pelé serviu de forma indistinta à ditadura brasileira. Em 2014, a ESPN mostrou que o jogador voltou ao México, logo após o tricampeonato mundial, com “a honrosa missão de representar o ilustre governo” na inauguração da Plaza Brasil, em Guadalajara, entre os dias 2 e 5 de novembro de 1970. É o que mostra uma carta do próprio Pelé ao “muito digno Presidente” Emílio Garrastazu Médici.

A carta integra o arquivo pessoal do general-presidente dos anos mais violentos da ditadura no país. Doado em 2004 ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) por Roberto Médici, filho do ditador, o “Acervo Médici” só foi aberto a pesquisadores dez anos depois. Pelo caráter da viagem, Pelé recebeu às vésperas do embarque um passaporte diplomático com a distinção: “O titular viaja em missão oficial”.

Além disso, poucos dias antes da viagem ao México, Pelé esteve numa dependência do temido Dops (Delegacia de Ordem Política e Social, responsável pelos interrogatórios e ações de combate – invariavelmente à margem da lei – do regime militar) em São Paulo. Em reunião no gabinete do diretor, ele se prontificou a tornar pública sua defesa do governo e a se pronunciar ser contrário ao “comunismo”. A visita foi no dia 21 de outubro de 1970, como mostrou relatório do Dops obtido pelo documentário Memórias do Chumbo – O Futebol nos Tempos do Condor, exibido na ESPN Brasil.

Por que, então, a resistência de Pelé a vestir novamente a camisa da Seleção Brasileira? Ao que tudo indica, não há indícios concretos de que a negativa tenha motivação político-ideológica. Mas peitar a ditadura, os cartolas e a imprensa mostra que o maior atleta brasileiro tampouco estava ao bem-prazer dos poderosos – nem mesmo dos ditadores.

Com informações da ESPN e do Estadão

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