Bolívia retoma caminho combativo do seu povo

Posse do novo presidente representa luta histórica pela soberania do país e por democracia para o povo.

A posse do novo presidente da Bolívia, Luis Arce, ocorrida neste domingo (8), representa uma vitória das forças democráticas e progressistas de grande impacto. Com bem disse Arce, o seu governo “inicia um novo tempo”. “A Bolívia inicia um novo tempo. Agradecemos às mulheres e aos homens bolivianos que de todo o país nos acompanham na ascensão ao comando presidencial”, escreveu ele no Twitter.

É a recuperação da democracia, exatamente um ano após o motim policial em 8 de novembro de 2019, lembrou. “Vencemos a batalha apenas com a consciência do povo, sem violência”, afirmou. Nesse período, a Bolívia foi tomada por um governo de extrema direita, semeador de ódio e praticante da violência contra o povo.

O exemplo mais enfático dessa política foram as ameaças ao ex-presidente Evo Morales, a principal vítima do golpe da extrema direita, que se exilou primeiro no México e depois na Argentina. Agora, como a vitória da democracia, Morales deve voltar ao país na segunda-feira (9), ainda em meio a uma campanha midiática que insiste em dizer que ele renunciou pressionado por uma mobilização social. Infelizmente, devido à perseguição criminosa da extrema direita, o ex-presidente não pôde acompanhar a posse de Arce.

Mas vários chefes de estado foram ao país para acompanhar a cerimônia, como o presidente da Argentina, Alberto Fernández; o chanceler da Venezuela, Jorge Arreaza; o ministro das Relações Exteriores do Irã, Mohammad Yavad Zarif; o rei espanhol Felipe VI, acompanhado do vice-presidente e líder do Podemos, Pablo Iglesias; uma delegação dos Estados Unidos chefiada pelo subsecretário da Fazenda para Assuntos Internacionais, Brent Mclntosh; Iván Duque, presidente da Colômbia; Mario Abdo Benítez, presidente do Paraguai; o ex-presidente do Panamá, Martín Torrijos;  Wálter Martos, chefe do Conselho de Ministros do Peru; e Francisco Carlos Bustillo e Andrés Allamand, chanceleres do Uruguai e do Chile, respectivamente.

A posse foi precedida de cerimônias ancestrais. Um grupo de “amautas” ou sábios espirituais indígenas aimarás preparou um altar com oferendas para a “Pachamama”, ou Mãe Terra, na Plaza Murillo de La Paz, onde está localizado o Palácio do Governo e a sede do Legislativo boliviano. O ritual de gratidão à “Pachamama” foi para pedir à divindade andina que dê força ao novo governante, segundo a Telesur.

Na última quinta (5), Arce sofreu um atentado em La Paz. Uma dinamite explodiu à frente da sede do comitê de campanha do partido, segundo o porta-voz do Movimento ao Socialismo (MAS), Sebastián Michel. Arce estava no comitê quando uma banana de dinamite foi arremessada na porta do imóvel. Não houve feridos ou danos ao imóvel.

Esse fato comprova que a extrema direita segue ativa na Bolívia. A rigor, sempre esteve. O país tem um longo e combativo histórico de enfrentamento com as forças políticas inimigas do povo. Nos governos Morales, não foram poucas as vezes em que essas forças, apoiadas por movimentos externos, tentaram atacar as políticas de abertura democrática para o povo e de soberania nacional.

Um caso emblemático envolveu diretamente o Brasil. Em questão estavam as áreas de petróleo e petroquímica, riquezas abundantes na Bolívia. A tempestade diluviana que a mídia e os setores direitistas brasileiras despejaram sobre o governo Morales foi impressionante. O que foi denominado “crise boliviana” tinha a ver com o emaranhado de interesses tecido na era neoliberal e escondia o histórico jogo bruto contra a Bolívia.

O levante se deu quando o governo anunciou um plano de recuperação das refinarias pelo Estado. Era a nova Lei de Hidrocarbonetos do país, segundo a qual a Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos (YPFB) – a Petrobras boliviana – deveria retornar à condução da cadeia de produção internacional. Essa função havia sido proibida por uma lei do ex-presidente neoliberal Gonzalo Sánchez de Lozada, que permitiu o contrabando de combustíveis e exportações a preços baixos, inclusive mais baixos que no mercado local.

Foi um ato de violência contra a Bolívia. Sánchez de Lozada, um grande empresário de minério, representava uma linha de atuação boliviana estreitamente ligada à história do imperialismo no setor. A indústria do petróleo, que nasceu no final do século XIX, é fonte constante de riqueza e por isso se tornou desde cedo essencialmente monopolista. A Bolívia é exemplo da história da paz e da guerra, das correlações de forças que se modificam, das soberanias nacionais que desaparecem, se restauram ou se conquistam.

Já no começo da década de 1950, o governo do presidente Victor Paz Estensoro nacionalizou 163 minas de estanho debaixo de protestos do governo norte-americano do general Einsenhower e da fúria do senador McCarthy. Naquela época, os liberais — assim como hoje no Brasil — diziam que era equivocado chamar de nacionalização o que seria estatização.

Essa mesma argumentação foi usada por Sánchez de Lozada para atacar a YPFB, segundo ele uma propriedade do Estado que estava sob controle de “políticos” – a mesma conversa mole que se ouve muito no Brasil sob o governo do presidente Jair Bolsonaro e de seu ministro da Economia, Paulo Guedes –, a famosa “caixa-preta” da Petrobras que motivou sucessivos ataques à empresa e o jogo sujo da Operação Lava Jato.

Os ataques dos entreguistas brasileiros é histórico. Depois da Primeira Guerra Mundial os monopólios estrangeiros começaram a disputar a posse das reservas petrolíferas bolivianas. E nesse jogo, tanto governos da Bolívia quanto do Brasil foram usados para defender seus interesses. O mais dramático episódio dessa história é a chamada “Guerra do Chaco”, tramada pela Standard Oil. No seu final, o Brasil assinou os “Tratados de 1938” pelos quais nosso país ganhou uma “área de estudo” para pesquisar petróleo.

O Brasil havia construído a estrada de ferro Corumbá-Santa Cruz de la Sierra e recebeu a “área de estudo” como pagamento. Depois de idas e vindas, no dia 5 de janeiro de 1955 o presidente Café Filho, na inauguração da ferrovia, recebeu de Paz Estensoro, que retornara à Presidência da Bolívia devidamente mancomunado com a Standard Oil, um “Memorial” pelo qual ficaria eliminado o conceito de garantia geográfica e, em consequência, a área de reservas estabelecidas pelos “Tratados de 1938” e convênios complementares. A área até então reservada ao Brasil passaria à YPFB, que por sua vez a repassaria à Standard Oil. Paz Estensoro também disse que ele pagaria a ferrovia Corumbá-Santa Cruz. Seria a hora de o Brasil, por meio da Petrobrás, iniciar as perfurações na “área de estudo”.

Mas no Ministério da Fazenda estava o liberal radical Eugênio Gudin, chamado pelo vice-presidente Café Filho, que assumiu a Presidência após o suicídio de Getúlio Vargas em 1954. Gudin se recusou a liberar os recursos necessários já aprovados pelo Congresso e destinados ao reinício das atividades do Conselho Nacional do Petróleo na região subandina boliviana.

A mídia, que no Brasil combatia ferozmente o monopólio estatal do petróleo, saudou a atitude de Gudin como um gesto de “coragem e bom senso”. Na Bolívia ocorreu o mesmo. Festejavam, assim, o entreguismo brasileiro-boliviano, na pessoa de Gudin. O episódio é tido com mais um lance em que se evidenciou a mão do imperialismo agindo para perturbar a boa vizinhança dos povos do Brasil e da Bolívia. O alvo era a Petrobrás, que surgia como desmentido aos que só acreditavam nas maravilhas da iniciativa privada – como era o caso de Gudin, um liberal “ortodoxo” que fez escola no Brasil.

Os monopólios sabiam que a Petrobras era a solução certa para o problema do petróleo brasileiro e que do seu êxito surgiria a base econômico-financeira que proporcionaria as condições ao Brasil, como de fato aconteceu ao longo de sua história, para cumprir integralmente os tratados com a Bolívia. Foi nesse contexto que surgiu a mais torpe campanha contra a Petrobras – retomada com vigor pelo bolsonarismo, uma conspiração também contra o povo boliviano, nobre e altivo por natureza.

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