A destruição do meio ambiente e a abertura de espaços para novos vírus

Se, em outros tempos, o medo era do fim dos tempos, da ameaça nuclear, dos comunistas, hoje o medo é das catástrofes ambientais, das pandemias.

Sandwich Harbor, Namíbia
Moisés Stahl – Foto: Arquivo pessoal

Em 1992 foi realizada na cidade do Rio de Janeiro a 2ª Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, que a Organização das Nações Unidas (ONU) promoveu para, na esfera da cooperação internacional, dar atenção à questão do meio ambiente e trazer soluções dentro do chamado desenvolvimento sustentável, colocando a questão como central para o desenvolvimento humano no futuro. Com a 2ª Conferência, também chamada de Eco-92 ou Rio-92, a questão do meio ambiente entrou na esfera de discussão global, sendo sintomático o número expressivo de representantes e chefes de Estado presentes na Conferência, sobretudo quando comparamos com a 1ª Conferência realizada na cidade de Estocolmo, em 1972. Desde 1992, a crise ambiental foi colocada, porém pouco se avançou em ações práticas para conter a degradação do planeta. O que atualmente a sociedade experimenta é um recrudescimento de ações destrutivas do meio ambiente e significativas transformações no clima que está a afetar, inicialmente, as populações mais pobres. Nesse sentido, é fundamental colocar a questão ambiental como central e limite para a continuidade do tempo humano no tempo da Terra.

O tempo é a matéria dos historiadores, “os homens no tempo”, como disse o historiador francês Marc Bloch. Quando o historiador elege um tema para ser pesquisado, geralmente ele realiza um recorte histórico que situa seu assunto no tempo. Assim, Eric J. Hobsbawm escreveu sua série de livros A Era das RevoluçõesA Era do CapitalA Era dos Impérios e, por fim, a Era dos Extremos, utilizando um recorte relacionado a momentos políticos, econômicos e sociais. Nesse sentido, dos acontecimentos que vão da Revolução Francesa (1789) aos anos da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), ele chamou de “o longo século XIX”; dos acontecimentos que vão da Primeira Guerra Mundial até o que seria o fim da Guerra Fria, culminando com o desmembramento da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), em 1991, Hobsbawm chamou de “o curto século XX”. Desta forma, como definiu o historiador alemão Reinhart Koselleck, o conceito de século fica desvinculado do cálculo aditivo dos cem anos: “Com um novo século não tem início de imediato uma nova configuração do mundo. Muitos empreendimentos que há muito se tinham iniciado no século anterior só vêm a desenvolver-se mais tarde”. Em argumentação recente, a historiadora ligada à Universidade de São Paulo, Lilia Moritz Schwarcz observou que a pandemia causada pelo coronavírus marcaria o fim do século XX, ou seja, 2020 seria o início do século atual.

Se para Hobsbawm o século XX terminou em 1991 com o fim do socialismo soviético, podemos observar que 1992 marca o início do século XXI. Se Hobsbawm norteou suas periodizações enfatizando questões políticas e sociais para classificar os séculos XIX e XX, o norte, a direção para a classificação de 1992 como o início do século XXI é o da emergência das preocupações ambientais. A 2ª Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento surge como consequência de preocupações novas, lança propostas, insere os problemas ambientais na esfera de discussão das nações. Pela primeira vez uma grande quantidade de chefes de Estado e de governo, ministros e diplomatas, representantes de diferentes matizes e países, reuniram-se para discutir as consequências das emissões de poluentes na atmosfera terrestre, do desmatamento de florestas, do esgotamento dos recursos naturais, da destruição da fauna, do impacto dos efeitos gerados por essas ações na vida dos seres vivos do planeta.

Ao todo, 175 países mandaram delegações para a 2ª Conferência. Durante o encontro, realizado no Rio de Janeiro dos dias 3 a 14 de junho de 1992, o então presidente Fernando Collor transferiu a capital do Brasil para aquela cidade, que voltou a ser a capital, função que deixou de exercer desde a fundação de Brasília, no início da década de 1960. A 1ª Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente ocorreu em Estocolmo, na Suécia, em 1972. Contudo, como observa Washington Novaes, tal evento não teve o impacto de colocar a questão ambiental no cotidiano dos cidadãos, aspecto que se processou com a 2ª Conferência realizada no Rio de Janeiro, incorporando o meio ambiente no jogo democrático.

O núcleo de discussão da 2ª Conferência esteve ligado ao crescimento da poluição causada pelos países mais industrializados, e com as consequentes mudanças climáticas que poderiam afetar a vida na Terra. Era preciso conciliar o crescimento econômico e a preservação do meio ambiente. Quase trinta anos após o evento, pode-se observar que os objetivos do encontro não tiveram grande êxito até o momento, mas causaram certo eco. Hoje a causa ambiental entra na discussão pública da esfera municipal à federal, sendo gerenciada em nível global pelas mãos da ONU. Todavia, mesmo no âmbito da ONU, de acordo com José Antonio Ocampo, algumas áreas da cooperação internacional enfrentam problemas, como aquelas ligadas ao caráter incompleto das agendas internacionais e os frágeis mecanismos de supervisão e de cumprimento dos acordos internacionais, sendo tais problemas decorrentes das relações de poder que envolvem agentes privados e países poderosos.

Em outras áreas existem acordos, mas lacunas são observáveis, como a área das mudanças climáticas, ou seja, a questão do meio ambiente dentro da ONU encontra dificuldade de ser mais bem tratada porque esbarra em frentes detentoras de poder, que manifestaram desde o início das discussões suas posições contrárias às medidas de resolução dos problemas ambientais. Em muitos aspectos, a questão ambiental se subordinou ao capital, se adequou às engrenagens, assumindo características que tendem a legitimar o prolongamento da estrutura capitalista, atualizando o atraso, os mecanismos de devastação. Com efeito, dentro da realidade econômica atual a saída é difícil, sendo necessário superar as arcaicas estruturas de produção que prolongam um passado de degradação ambiental, pobreza e desigualdade social, que grassa sem cessar. Propostas foram lançadas, porém, ao girar na dinâmica da economia global, tais propostas perdem o efeito. Se, em outros tempos, o medo era do fim dos tempos, da ameaça nuclear, dos comunistas, hoje o medo é das catástrofes ambientais, das pandemias. Parafraseando Mike Davis, a catástrofe bate à nossa porta.

Em recente artigo, o professor e ex-ministro da Cultura da Argentina, José Nun, tratou do tema ambiental colocando-o como questão maior por trás da pandemia, já que a destruição do meio ambiente segue em continuidade e abrindo espaço para novos vírus. Nesse sentido, a pandemia de 2020 pode ser compreendida dentro dos limites do universo de discussão ambiental. Tal relação entre a devastação do meio ambiente e o aparecimento de novos vírus é indicada por Jared Diamond, que destacou que atualmente as novas doenças advêm de patógenos vindos de animais silvestres, por meio do contato gerado pela devastação dos hábitats naturais de animais. Com a onda crescente de desmatamento, abre-se caminhos para novos contatos com novos patógenos.

O historiador francês Pierre Rosanvallon ao tratar do método do historiador indica que “a história objetiva entender como em uma época, um país, ou um grupo social tenta construir respostas para aquilo que, com maior ou menor precisão elas percebem como um problema”. Assim, seguindo a proposta de Rosanvallon, se olharmos atentamente para a realidade é possível notar a ausência de soluções efetivas para o grave problema que é a questão do meio ambiente. No calor das discussões sobre o meio ambiente em 1992, observou o professor Umberto Cordani:

“(…) a Rio-92 representou uma inflexão na história da humanidade, com a redefinição do direcionamento do desenvolvimento humano. Novos caminhos, em busca de um novo equilíbrio, que envolva uma situação de desenvolvimento ‘sustentável’, em bases equitativas para a humanidade, devem estar no horizonte”.

Nesse sentido consideramos 1992 como o primeiro ano do século XXI porque marcou o aparecimento de alterações importantes nas relações entre os indivíduos e destes com o meio ambiente. Entretanto, os interesses econômicos do capitalismo não cederam lugar aos interesses ambientais, e os países mais desenvolvidos continuam a poluir mais que os países em desenvolvimento. Enquanto os países do centro do sistema ditam as regras da destruição, os países da periferia serão os primeiros a sofrerem com as consequências desastrosas das alterações climáticas. O fomento de um projeto de superação das estruturas econômicas arcaicas, incompatíveis com o novo futuro, urge, sobretudo no momento em a humanidade se encontra defronte às catástrofes advindas da natureza como reação da ação devastadora da humanidade sobre a Terra.

Fenômenos climáticos pouco descritos passam a se repetir com constância, incêndios incontroláveis, secas prolongadas, chuvas intensas, temperaturas acima da média, frio extremo, poluição dos recursos naturais, acúmulo de lixo, devastação de florestas e a abertura para novas categorias de vírus até então ocultos em seu hábitat passam a preencher o cotidiano do cidadão. Não há mais tempo e espaço para a humanidade se adequar à realidade das alterações climáticas. O homem construiu a sociedade utilizando o máximo dos recursos naturais, é preciso superar a etapa da destruição e chegar a uma nova etapa de desenvolvimento sustentável social e científico via transformação profunda, ou melhor, superação das estruturas arcaicas do capitalismo.

Em 1992 começou, agora o que resta é fazer deste século o século onde as soluções foram encontradas e possibilitar que o século XXII tenha um início. Isto é, não se apresenta no horizonte o fim do século XXI.

Por Moisés Stahl, doutorando em História Econômica da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP

Publicado em A Terra é redonda

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