Lei contra terrorismo na França aumenta segregação de muçulmanos
A medida restringe ensino em casa, possibilita inspeções do governo em instituições religiosas, proíbe uso de símbolos religiosos, como o hijab ou o crucifixo em instituições públicas, e impede a emissão dos “certificados de virgindade”
Publicado 22/03/2021 19:17
Sob intensos debates sociais, a Assembleia Nacional francesa aprovou Projeto de Lei que atualiza o modelo nacional de laicidade, supostamente para reafirmar os princípios da República contra o fundamentalismo religioso. A aprovação foi motivada pelos últimos ataques jihadistas registrados na França, como a decapitação do professor secundarista Samuel Paty. Apesar de não citar o Islamismo, a nova lei atinge diretamente os adeptos da religião.
A França possui um longo histórico de tensão com os muçulmanos devido à colonização dos países magrebinos, o que tem se intensificado por conta dos últimos ataques terroristas, como explica a professora Arlene Clemesha, do Departamento de Letras Orientais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.
“Os eventos recentes são vários. Se colocar em ordem cronológica, passa por uma série de eventos criminosos de atentados, terrorismo e, no meio disso tudo, houve a adesão de jovens da França ao Estado Islâmico na Síria. Dentro da França mesmo estima-se cerca de 300 mortos em atentados. De fato, isso é parte do que vem dando força a aprovação desse tipo de lei.”
Para a professora, há um debate muito mal conduzido em torno da questão. Em suas instituições oficiais, a França não aceita que haja um preconceito contra os muçulmanos, na opinião dela. “[A França permanece] Sem aceitar a sua parcela de má condução histórica do problema. São cem, duzentos anos, que se somam em torno desse problema todo”.
Paulo Daniel Farah, professor do mesmo departamento, coordenador do grupo Diálogos Interculturais, do Instituto de Estudos Avançados da USP, e coordenador do Grupo de Apoio à pesquisa Brasil/África, ele explica a importância do jihadismo na cultura islâmica. Segundo ele, jihad significa o esforço que o muçulmano deve fazer para se aperfeiçoar por meio do estudo e da atividade intelectual, também pode se referir à defesa da honra da família e da comunidade em várias frentes: espiritual, política econômica e militar.
“O radicalismo que impera em certos movimentos islâmicos, no entanto, produz uma leitura beligerante dessas fontes, ou seja, uma leitura que busca legitimar a violência e o terrorismo”.
Segregação Islâmica
Entre as disposições do projeto de lei está a maior restrição ao ensino em casa, os pais devem pedir autorização e explicar o porquê da escolha. Segundo o governo, a ideia é impedir que as crianças fiquem expostas aos ideais islâmicos radicais. Além disso, o projeto também inclui cláusulas que possibilitam inspeções do governo em instituições religiosas para garantir que sigam os preceitos republicanos, sob a possibilidade de encerramento de atividades. Somam-se às medidas a proibição de uso de símbolos religiosos como o hijab ou o crucifixo em instituições públicas, assim como a proibição dos “certificados de virgindade”, emitidos por médicos para garantir a honra de mulheres muçulmanas antes do casamento.
Para a professora Arlene, as medidas devem ampliar a segregação dos islâmicos na França e não combatem o jihadismo em sua raiz, porque extremistas geralmente não são oriundos de núcleos seguidores dos preceitos religiosos, como mesquitas ou famílias, mas sim das prisões e organizações criminosas.
“É o aprofundamento da segregação já existente, um aprofundamento da caracterização dos muçulmanos da França, que não são um grupo muito grande, como o inimigo interno. Essa lei não cria isso, mas deve aprofundar esse distanciamento da população em relação a essa comunidade”, explica ela.
Deve-se entender que mesquitas, geralmente, não são locais de radicalização. Ela acrescenta que, embora haja imãs fundamentalistas autodeclarados, são grupos marginais, e não das principais mesquitas. “Muito radicalismo acontece nas prisões. E tem não muçulmanos sem a menor ideia do que são os preceitos, a prática, o significado, as inspirações muçulmanas e que são radicalizados através de criminosos que adotam a roupagem islâmica radical.”
De outra forma, ela enfatiza que não quer isentar esses imãs de responsabilidade, pois eles existem e muitas vezes recebem apoio internacional saudita para sua atuação.
Para o professor Daniel Farah, o controverso projeto de lei simboliza um possível acirramento dos conflitos entre muçulmanos e não muçulmanos na França, que poderia até acentuar atentados. “É muito provável que haja conflitos, conflitos diversos na implementação dessa lei, porque já tem havido nos últimos anos, e, agora, a probabilidade é que esses conflitos se acirrem”.
O direitismo hegemônico no governo da França, aproveita para dividir a sociedade contra a esquerda, também. “Nessa divisão que acontece atualmente na França, tem havido cada vez mais vozes contra o que parte do governo chama de islamismo esquerdista, ou de esquerdismo islâmico. Há críticas não apenas dos grupos muçulmanos, mas também de professores universitários, estudantes da comunidade acadêmica que acreditam que não há base científica para se falar nessa divisão”.
Edição de entrevista à Rádio USP