USP ataca estratégia de Bolsonaro de imunidade coletiva por contágio

Ao comentar a nota técnica da Congregação da Faculdade de Saúde Pública, Claudia Moreno diz que se observa no País uma política de Estado que promove o espalhamento do vírus e o agravamento da pandemia

Um mês após diagnóstico de covid, Bolsonaro promove aglomeração em aeroporto do Piauí, com a máscara abaixo do queixo. Foto: Alan Santos / PR_30.07.2020

No último dia 29, a Congregação da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP divulgou uma nota técnica que aponta que a expectativa de imunidade coletiva por contágio causa a morte de centenas de milhares de brasileiros e ameaça o Sistema Único de Saúde (SUS) no curto, médio e no longo prazo, enquanto este responde a uma enorme demanda no segundo ano da pandemia no País.

Quando foi divulgado o relatório em que, desde março de 2020, o Centro de Pesquisas e Estudos de Direito Sanitário (CEPEDISA) da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP e a Conectas Direitos Humanos, organização de justiça da América Latina, se dedicaram a coletar e analisar as normas federais e estaduais relativas à estratégia para o enfrentamento da pandemia do novo coronavírus, foi feita uma afirmação categórica que deu sentido ao comportamento aparentemente absurdo do presidente Jair Bolsonaro:

“Nossa pesquisa revelou a existência de uma estratégia institucional de propagação do vírus, promovida pelo Governo brasileiro sob a liderança da Presidência da República”. O oposto do que um governo deveria fazer para proteger sua população da propagação de uma doença contagiosa tinha como meta a imunização coletiva por contágio, segundo o estudo.

Agora, a professora Claudia Moreno, do Departamento de Saúde, Ciclos de Vida e Sociedade da FSP da USP, responsável pela nota técnica, explicou que continuamos observando no País uma política de Estado que promove o espalhamento do vírus e o agravamento da pandemia. Isso estaria ocorrendo a partir de medidas que incentivaram a expectativa de imunidade coletiva por contágio – também chamada de imunidade de rebanho.

No entanto, a professora explica que a compreensão científica de imunidade de rebanho só pode ser alcançada a partir da vacinação de 70% a 90% da população. Diante de uma doença grave como a covid-19, com sua alta letalidade revelada desde o início, esta não seria a estratégia adequada de resposta à pandemia, como não seria em relação a outras epidemias.

Claudia destaca que a política que promove a expectativa dessa imunidade está associada a uma propaganda contra a saúde pública realizada pelo próprio governo, através de discursos que minimizam a gravidade da doença e atitudes como a promoção de aglomerações em eventos políticos. Além disso, o desencontro entre os discursos políticos, segundo a professora, gera um trânsito de informações falsas e discursos distorcidos, confundindo a população e levando ao descrédito informações técnicas e científicas.

A pesquisadora ainda aponta iniciativas graves de atentado contra a saúde pública, como o veto à lei que obriga o uso de máscaras. “Existem vários atos que foram organizados pelo governo que demonstram esses atentados contra a saúde pública. A propaganda contra a saúde pública dizendo que a doença não é grave, exemplificando com aglomerações e falando em lives sobre o assunto, isto é um crime contra a saúde pública”, afirmou.

Claudia mostra como as diferenças e confrontos entre o governo federal e autoridades locais sobre o que a população deve fazer acaba gerando confusão na compreensão da população sobre a pandemia que não sabe em quem acreditar.

“Principalmente, isso gera um trânsito de informações falsas. Além de tudo, como o discurso não é o mesmo, ele passa a ser distorcido. A informação verdadeira se perde no meio das falsas e as informações técnicas e científicas acabam desacreditadas”, disse ela, enfatizando que, muitas vezes, as informações cientistas apontam para medidas impopulares. É o caso de recomendações como não promover aglomerações, usar máscaras, não ir a festas, à praias etc. As pessoas vão preferir o argumento que defende que elas possam se reunir com a família e se divertir.

Falsa oposição

A nota técnica da FSP também discute que não existe uma dicotomia entre proteção da economia e proteção da saúde, mas esta é uma falsa oposição que precisa ser desfeita. Claudia destaca que uma política coerente cuidaria da saúde da população e daria um subsídio àqueles que não poderiam trabalhar por conta do isolamento social.

Ela conta que relatórios do Banco Mundial já aponta que os danos à saúde pública com adoecimento de milhares de pessoas, que estão ocorrendo em países como o Brasil, são mais prejudiciais à economia, pois prolongam a pandemia e o trauma emocional da população que vai demorar a voltar a atividade econômica e ao consumo.

“Essas coisas têm que ser feitas em conjunto, por isso é importante a discussão da crise sanitária a partir de políticas de saúde pública e não apenas por médicos e economistas”, afirma a professora, que também chama a atenção para a “necessidade urgente” de uma coordenação nacional adequada.

“Não adianta ter um comitê de crise composto de políticos e sem sanitaristas, como acontece no Brasil”, enfatiza. Claudia explica que um comitê de crise formado por especialistas em saúde pública, envolve pessoas com formação interdisciplinar e, sobretudo, formação sanitária. São economistas, médicos, enfermeiros, nutricionistas, etc, que pensam saúde em termos de condições de vida, de trabalho, bem-estar, moradia, e não apenas medicina.

A Congregação da FSP também aponta que o SUS, que já não era adequadamente financiado, está evitando que a catástrofe sanitária seja ainda maior, mesmo sem ter recebido recursos financeiros suplementares em 2020. Ou seja, um sistema de saúde público precarizado e sobrecarregado, não recebe nenhum recurso adicional no pior ano de sua história, quando lida com uma pandemia sem precedentes de milhões de doentes. “Essa sobrecarga e subfinanciamento tem consequências no médio e longo prazos”.

Segundo Claudia, o SUS tem capilaridade para agilizar o processo fundamental de vacinação, desde que tenhamos as doses necessárias. As variantes do vírus, no entanto, demandam uma vacinação rápida e abrangente para evitar surgimento dessas mutações.

Ela também destaca a importância da utilização de máscaras, do isolamento físico e da higienização das mãos, principalmente enquanto não se alcança uma quantidade ideal de vacinados e não se tem conhecimento suficiente a respeito das variantes surgidas a partir de mutações do vírus.

Acompanhe neste link a íntegra da nota técnica da Faculdade de Saúde Pública da USP.

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Edição de entrevista à Rádio USP