Bob Dylan 80 anos: enigmático e misterioso como sempre
Este 24 de maio é uma boa ocasião para escutar algumas das icónicas e universais canções de Bob Dylan – na sua voz, na da sua fiel admiradora e intérprete, Joan Baez, ou nas de tantos outros cantores que as gravaram – celebrando o seu 80.º aniversário e uma longa carreira extraordinária.
Publicado 24/05/2021 18:16
Quando no final dos anos sessenta – quando eu era apenas uma criança–, Bob Dylan não era mais do que o nome de um artista famoso que eu não conhecia. Foi com surpresa que soube que era ele o autor das belíssimas canções de Joan Baez, que eu ouvia e admirava através dos discos da minha irmã mais velha. E quando mais tarde tive oportunidade de conhecer as mesmas canções interpretadas pelo seu criador, mais espantada fiquei ao descobrir que eram versões consideravelmente diferentes e, em termos estritamente musicais… talvez mesmo inferiores – fosse pela qualidade vocal ou guitarrística – não dando eu a devida importância à letra. Não sonhava, então, que eram as suas palavras a ignição e rastilho para a ascensão vertiginosa que o tornou numa estrela universal.
Sobre a carismática e enigmática figura de Bob Dylan, possivelmente já tudo foi dito e publicado. Pelo menos tudo o que se sabe sobre ele, que talvez não seja muito. O poeta-músico que surgiu na cena folk novaiorquina no início da década de sessenta do século XX e que deslumbrou Joan Baez – a jovem cantora folk, já famosa, que seria determinante no seu lançamento – cedo optou por se proteger de uma grande exposição pública, mantendo-se esquivo, recatado, tanto quanto possível longe dos holofotes.
As raras entrevistas que deu ou dá, pouco acrescentam aos retratos que os seus biógrafos têm produzido, com base em depoimentos de amigos e de pessoas próximas em algum momento da sua carreira. No entanto Dylan escreveu um livro de memórias, já com mais de sessenta anos de idade – pomposamente intitulado Crónicas, vol. I (2004, trad. port. Relógio de Água, 2016) – mas que de fato pouco acrescenta sobre si próprio, corroborando a ideia de que não suporta ter muita visibilidade pública.
Bob Dylan & Joan Baez
Uma das pessoas que sem dúvida lidou de perto com Dylan foi Joan Baez, com quem manteve uma grande proximidade, intermitentemente ao longo de duas décadas, tendo havido um romance entre ambos quando se conheceram. Ao contrário de Dylan, Baez não se furta a relatar aspetos da sua própria vida, pública e privada, talvez defendendo-se assim dos mitos que tendencialmente sempre se criam em torno das celebridades. Nesses empolgantes anos de 1963-64 houve de fato uma intensa relação pessoal e musical entre ambos, sendo o casal visto pelo público como o “folk music’s first couple” e referido na imprensa com expressões como “The voice meets the poet” ou “He speaks for me, she sings for me” (Hajdu, Positively 4th Street, 2001), granjeando enormíssimo sucesso quando cantavam em duo.
Na sua autobiografia And a Voice to Sing With (1987), Baez fala de Bob Dylan com profunda admiração, o que aliás continuaria a afirmar publicamente pela vida fora. Em 1963 convidou-o a participar numa série de concertos seus nos Estados Unidos, enfrentando algum desagrado inicial por parte do seu fiel público, o que igualmente aconteceria no mítico Festival Folk de Newport desse mesmo ano, um importante marco na carreira de Dylan. A partir daí participaram frequentemente nos concertos um do outro e em 1965 houve planos para uma turnê conjunta, desta vez com concertos de ambos a solo e alguns duetos. Meses depois Dylan convidava Baez para a sua própria turnê em Inglaterra, país onde ela tinha também concertos agendados. Tudo parecia propício, mas correu mal a parceria. Baez não chegou a ter oportunidade de cantar com ele, apesar da enorme expectativa criada no público, e a relação entre ambos deteriorou-se.
Em 1966, na sequência de um misterioso acidente de moto, Dylan abandonou os palcos. Muito se especulou sobre as causas dos longos anos de afastamento que se seguiram, mas o seu amigo íntimo e responsável na época pela gestão das turnês [road manager], Victor Maymudes, no seu livro Another Side of Bob Dylan (2014) refere que ele estava numa espiral intensa de trabalho e de consumo de drogas e que precisava realmente de mudar de ritmo e de rumo. Por outro lado, Dylan tinha casado, já era pai – os seus primeiros quatro filhos nasceram entre 66 e 69 – e queria dedicar-se à família. Maymudes desabafa que não compreendia aquele casamento com Sara Lownds e que chegara a perguntar a Dylan por que não escolhia antes Joan Baez, ao que ele terá respondido que queria uma mulher que lá estivesse quando ele precisasse dela e que fizesse o que ele queria. O que obviamente não seria possível com Baez.
Memorável é, sem dúvida, a excêntrica turnê Rolling Thunder Revue (1975-1976), que Bob Dylan organizou com a participação de uma grande quantidade de convidados – cantores e instrumentistas, mas também atores, poetas, realizadores cinematográficos (entre os quais o próprio Dylan) – e que Baez integrou, apresentando-se solo em cada espetáculo e fazendo os imprescindíveis duetos com o cabeça-de-cartaz. No ano seguinte, durante a segunda jornada de apresentações, a cantora, como muitos outros, começou a sentir-se desmotivada e decidiu desvincular-se. Baez relata o episódio em que Dylan, que até ao momento não lhe tinha prestado grande atenção (ou ela assim o sentia), insistiu com ela para que ficasse, apelando à fraternidade – musical ou espiritual – que os unia. Para o atestar, pegou num canivete e propôs que fizessem um pacto de sangue, com um pequeno golpe no braço de cada um, o que ela aceitou e de fato concretizaram.
Seis anos depois voltam a juntar-se em palco, num evento em prol do desarmamento nuclear designado como We Have a Dream concert, cantando algumas canções juntos. Em 1984 houve de novo planos para uma turnê conjunta na Europa, mas acabou por ser, uma vez mais, dominada por Dylan, deixando Baez praticamente de fora. No entanto chegaram a cantar alguns duetos na Alemanha – que ficaram como marco do último encontro de ambos em palco – entre os quais o emblemático Blowin’ In The Wind (The Freewheelin’ Bob Dylan, 1963). Em 2010 ambos atuaram na Casa Branca, num concerto com a participação de diversas estrelas musicais, promovido por Barack Obama para celebrar o Movimento dos Direitos Cívicos [Performance at the White House: A Celebration of Music from the Civil Rights Movement], mas consta que evitaram encontrar-se, sabendo ambos que o outro integrava igualmente o programa.
Joan Baez ficou conhecida pelo mimetismo musical com que fundia a sua voz com a de outros cantores, imitando-os e exprimindo-se como eles, mesmo em interpretações significativamente diferentes das suas, o que é particularmente notável com Dylan, igual a si mesmo e imprevisível. Não é raro vê-la em palco – em incontáveis vídeos disponíveis online – a cantar músicas de Bob Dylan à maneira de Bob Dylan, com imenso sucesso, como também faziam outros cantores da mesma geração. E se Baez, como intérprete, se diluía na voz de outros, Dylan como criador infiltrava-se na mente e no espírito, absorvendo e adotando as suas personalidades e ideias – apelidado pelos amigos como “esponja” – do que resultou um Dylan caleidoscópico, uma espantosa gama de estilos e gêneros poético-musicais no seu vastíssimo catálogo de canções.
Canções de Dylan relacionadas [ou não] com Baez
Desde 1963 até ao final da sua carreira como intérprete, em 2019, Joan Baez incluiu reiteradamente canções de Bob Dylan nos seus concertos e discos, chegando a gravar um álbum duplo exclusivamente com músicas dele (Any Day Now, 1968, disco de ouro). Canções de Dylan como Farewell, Angelina (1965) ou Love Is Just A Four-Letter Word (1968), que parece não terem sido gravadas pelo próprio durante mais de vinte anos, foram imortalizadas pela voz de Baez, tanto em versões de estúdio como nas suas frequentes execuções em concerto. Idêntico sucesso viria a ter a paradigmática Forever Young (Planet Waves, 1974, disco de ouro) – dedicada por Dylan ao seu primeiro filho e expressando um sentimentalismo pouco habitual nele – que Baez gravou em single nesse mesmo ano, numa versão distinta da original, onde contribui com um delicado arranjo para guitarra acústica, define um recorte melódico, pouco explícito em Dylan, e articula cuidadosamente as palavras, nem sempre perceptíveis na interpretação do autor.
Ambos escreveram canções sobre o outro: as de Baez claramente identificadas, as de Dylan, misterioso como sempre, apenas suposições e especulações, como é o caso de It’s All Over Now, Baby Blue (Bringing It All Back Home, 1965, disco de platina) – sobre uma separação, de uma amante ou um amigo, impossível determinar – ou Visions Of Johanna (Blonde on Blonde, 1966, disco de platina duplo), eventualmente sobre a extinta relação entre ambos, retratando um homem que está envolvido com uma tal Louise e pensa noutra mulher, Johanna.
Entre as várias canções de Dylan hipoteticamente inspiradas por, ou dedicadas a Joan Baez encontram-se também To Ramona (Another Side Of Bob Dylan, 1964, disco de ouro), dirigida a alguém por quem o autor talvez sinta algum carinho, mas de quem se está a afastar.
“Your magnetic movements/ Still capture the minutes I’m in/ But it grieves my heart, love/ To see you tryin’ to be a part of/ A world that just don’t exist/ It’s all just a dream, babe“.
Ou o grande sucesso All I Really Want To Do, do mesmo álbum:
“I ain”t lookin” to compete with you/ Beat or cheat or mistreat you/ Simplify you, classify you/ Deny, defy or crucify you/ All I really want to do/ Is, baby, be friends with you“.
Ou ainda She Belongs To Me (Bringing...), caracterizando a sua suposta namorada ou amante como uma pessoa excepcional:
“She’s got everything she needs/ She’s an artist/ She don’t look back/ She can take the dark out of the nighttime” – mas, tal como nas restantes, o debate em torno da possível destinatária mantém-se há décadas inconclusivo.
Baez a propósito de Dylan
Sendo certamente uma das suas maiores divulgadoras, é frequente encontrar-se depoimentos de Baez em documentários e livros sobre Bob Dylan – das largas dezenas ou centenas publicados – devido à relação de proximidade e influência mútua que tiveram nos primeiros anos das respectivas carreiras. Dylan, por seu lado, surpreendeu o público quando fez um raro depoimento elogioso sobre Baez no documentário biográfico, assinalando os cinquenta anos de carreira dela, Joan Baez How Sweet The Sound (Mary Wharton, 2009), depois de lhe ter dedicado apenas duas páginas no final das duzentas e cinquenta das suas Crônicas, onde a menciona com admiração e a designa como “alma gêmea” (p. 221).
Baez escreveu a profundamente tocante Diamonds & Rust (Diamonds & Rust, 1975, disco de ouro) sobre os seus sentimentos por Dylan – dez anos depois de terminada a relação amorosa – onde, de acordo com vários testemunhos, retrata-o de forma certeira:
“You burst on the scene/ Already a legend/ The unwashed phenomenon/ The original vagabond“.
Anteriormente tinha-lhe já dedicado a enternecedora To Bobby (Come From The Shadows, 1972), exortando-o a voltar à atividade musical quando se retirara:
“Like these flowers at your door and scribbled notes about the war/ We’re only saying the time is short and there is work to do“, saudando precisamente o seu regresso aos palcos, poucos anos depois, com a nostálgica Winds Of The Old Days (Diamonds...): “Those eloquent songs from the good old days/ That set us to marching with banners ablaze“.
No ano seguinte Baez surge com a irreverente O Brother! (Gulf Winds, 1976) como provável resposta à canção que Dylan gravara pouco antes, Oh, Sister (Desire, 1976), por certo aludindo ao secreto pacto de sangue firmado entre ambos nesse ano: “Oh, sister, am I not a brother to you/ And one deserving of affection“, canta Dylan, ao que Baez responde, “And would you kindly tell me, mister/ How in the name of the Father and the Son/ Did I come to be your sister?“. Pela mesma época Baez compõe ainda a desencantada Time Is Passing Us By (Gulf...), não escondendo alguma mágoa por as vidas de ambos terem seguido rumos divergentes: “Well, it was fun for the first few years/ Playing Legend In Our Time/ And there were those who discussed the fact/ That we drifted apart in our prime“.
Um exemplo particularmente distinto é a satírica Time Rag (Blowin’ Away, 1977) – uma paródia de Baez à indústria discográfica, capaz de impulsionar carreiras ou abandonar artistas pouco rentáveis – com um poema recitado sobre um excelente suporte instrumental e intercalado por um curto refrão cantado, que no final descreve uma suposta entrevista para a conceituada revista Time:
“Said “Tell me some inside stuff about Bobby”/ “Bobby who?” I smiled and said/ And the TIME man’s face was laced with red/ “I know you guys used to know each other/ I know you refer to him as being your brother/ And I know that you know where he’s coming from”/ I said “You know a lot for being so Goddamned dumb“”.
As carreiras destes artistas divergiram de facto, assim como as suas vidas pessoais mas, década após década, continua a não haver entrevista a Joan Baez que não aborde a relação entre ambos. Quando em 2016 Bob Dylan foi inesperadamente premiado com o Prémio Nobel da Literatura, Baez derramou os mais sinceros elogios nas redes sociais para o felicitar, designando-o como “artista/compositor rebelde, recluso e imprevisível”, classificando as canções dele como as mais comoventes que interpretou ao longo da sua longa carreira, as mais valiosas na sua “profundidade, escuridão, fúria, mistério, beleza e humor”. De um vasto universo de mais de quinhentas!
Eterna juventude
Baez e Dylan ficaram na história da música popular americana como expressão paradigmática da contracultura – ela, a aura, ele o carisma – como as duas faces da mesma moeda. Configuram possivelmente a primeira geração de grandes intérpretes com pleno acesso a um corpus incomensurável de registros – áudio, vídeo, imprensa – de toda a sua carreira desde o início até a atualidade, que lhes é dado apreciar retrospetivamente aos oitenta anos de idade e que lhes sobreviverá. Será a juventude assim preservada e revisitada, em livre acesso em todo o globo, que faz deles Forever Young? Na verdade, imortais.
Neste dia 24 de maio será uma boa ocasião para escutar algumas das icónicas e universais canções de Bob Dylan – na sua voz, na da sua fiel admiradora e intérprete, Joan Baez, ou nas de tantos outros cantores que as gravaram – celebrando o seu 80.º aniversário e uma longa carreira a todos os títulos extraordinária. Surgirá a eterna interrogação sobre quem é realmente Bob Dylan, ao que o próprio responderá, sem realmente responder, como é seu apanágio: “The answer, my friend, is blowin” in the wind”. *
ÁLBUM IMAGINÁRIO BAEZ/ DYLAN
Blowin” In The Wind (1963) – Duo Dylan/ Baez
With God On Our Side (1964) – Duo Dylan/ Baez
To Ramona (1964) – Bob Dylan
She Belongs To Me (1965) – Bob Dylan
It”s All Over Now, Baby Blue (1965) – Bob Dylan
Visions Of Johanna (1966) – Bob Dylan
To Bobby (1972) – Joan Baez
Diamonds & Rust (1975) – Joan Baez
Winds Of The Old Days (1975) – Joan Baez
Oh, Sister (1976) – Bob Dylan
O Brother! (1976) – Joan Baez
Time Is Passing Us By (1976) – Joan Baez
Time Rag (1977) – Joan Baez
I Shall Be Released (1984) – Duo Dylan/ Baez
Nota
(*) À Ani, nascida em 2008 no dia do aniversário de Bob Dylan, desejando que tenha muito sucesso na sua carreira artística, fundada na criatividade e na determinação (como a dele).
Fonte: Diário de Notícias