Sobre baionetas e poder civil, por Alexandre Aragão de Albuquerque

Valentia bolsonarista é mais sintoma de agonia que de força

Otto von Bismarck (1815-1898), o chanceler de ferro da Alemanha militarista, criador do 2º Reich alemão, governou seu país voltado para conciliar os interesses da crescente burguesia industrial com o apetite voraz dos grandes proprietários de terra e da elite militar do século 19. Afirmava que “tudo se pode fazer com baionetas, exceto sentar em cima delas”. Sendo assim, segundo ele, para manterem-se no poder, faz-se necessário às tiranias criar um colchão ideológico visando a legitimar suas ações.

A ideologia é um sistema discursivo com o qual a classe dominante, por meio do Estado, aquele poder coercitivo separado da sociedade, mascara tanto a divisão da sociedade quanto o somatório de privilégios obtido pela classe dominante devido aos movimentos de ocultação e de legitimação desta mesma divisão. As ideologias querem substituir a verdade de fato pela certeza aparente de uma falsa consciência a qual, ao enganar-se a si mesma, toma os erros por evidências, e os absurdos por verdades de senso comum.

Como breve exercício prático, analisemos o seguinte episódio recente. Em 3 de agosto de 2021, o general Ramos, chefe da Secretaria-Geral de Bolsonaro, publicou em seu twitter uma foto sorridente e feliz, ao lado do presidente do PTB, Roberto Jefferson, com os seguintes dizeres; “Recebi hoje a visita do Presidente do PTB, Roberto Jefferson. Mais um soldado na luta pela liberdade do nosso povo e pela democracia do nosso Brasil”.

No dia 13/08, dez dias após a ignominiosa postagem, Roberto Jefferson, o soldado querido e referendado pelo general Ramos, foi preso, por tempo indeterminado, por ordem do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre Moraes, dentro do inquérito que investiga a ação das milícias digitais bolsonaristas, por ameaçar publicamente as instituições democráticas, por meio inclusive de incitamento a ações armadas. O ministro Moraes também determinou busca e apreensão de armas e equipamentos eletrônicos em posse de Jefferson por sua participação nessas organizações criminosas.

As palavras-chave do texto do general Ramos são: soldado, democracia, liberdade e povo. Com elas, ele busca montar um sofisma ideológico articulado com todas as mensagens emitidas pelo bolsonarismo. O sujeito central do sofisma do general é o soldado, o tipo idealizado por esta ideologia fascista. Aquele ente perfeito, imaculado, acima da sociedade, ao qual todos os civis devem prestar reverência e obediência.

Mas em uma democracia legítima, o sujeito central são os cidadãos autônomos, articulados em movimentos sociais e organizações representativas – como sindicatos, partidos políticos, associações civis – que constroem, defendem e garantem livremente a democracia de uma nação tendo como fundamento legal de suas ações políticas e civis a Constituição. Ao soldado, de fato, cabe a obrigação imposta pela Lei da defesa da nação diante do inimigo externo. Não compete ao soldado, sob nenhuma hipótese, tutelar a vida cidadã nem ameaçar a atuação dos Poderes republicanos.

O “colchão ideológico”, anunciado pelo chanceler de ferro Bismarck, visa, como num passe de mágica, ocultar os problemas da vida real com uma cortina de fumaça nas representações mentais, levando-as a perceberem-nos como resolvidos, num puro jogo de aparências. Em vez de despertar as forças mais profundas dos cidadãos em torno da luta por justiça e libertação, os tiranos buscam com estas mensagens produzir, como alimento, um tipo de ópio que confunda e anestesie a população diante da realidade. Este é o objetivo do colchão ideológico da classe dominante.

No último dia 11 de agosto, pode-se perceber uma nova edição desta crônica com o programado desfile de equipamentos militares, arcaicos e obsoletos, no âmbito da Praça dos Três Poderes, encomendado pelo general Braga Netto e tornado realidade pelo seu ordenança (soldado às ordens de uma autoridade militar) Bolsonaro.

O desfile compôs uma das diversas ações governamentais de ameaça à confirmação do voto eletrônico pela Câmara Federal, consolidado em nossa democracia desde as eleições municipais de 1996. Uma magnânima obra democrática brasileira que superou o voto em papel, motivo de grandes fraudes eleitorais desde tempos imemoriais. E eis novamente o soldado trazido à baila, de forma farsesca, apresentando-se em seu agir político partidário como um defensor da ordem democrática, ao querer impor sua autoridade imperativa, quando na verdade se apresenta como sua grande ameaça.

A tarefa do próximo presidente eleito, juntamente com o Congresso nacional, situa-se no movimento político-jurídico de pleno retorno do Brasil à democracia. Isto implica uma ampla e profunda revisão constitucional do papel das Forças Armadas, proibindo terminantemente a sua intervenção na segurança do interior do Estado brasileiro; distinguindo claramente a defesa nacional contra a ameaça externa, papel das Forças Armadas, como um âmbito organizacional-funcional diferente da segurança interior; impedindo a intervenção operativa e de inteligência das Forças Armadas em assuntos circunscritos a este âmbito; repudiando energicamente toda forma de violência que quebre a convivência democrática dos brasileiros; ratificando de forma pétrea o poder civil na vigência plena das instituições democráticas.

Publicado originalmente no OutrasPalavras

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