STF deve retomar julgamento sobre terras indígenas na quarta (8)

Encerrada a fase de sustentações orais, julgamento será reaberto quarta-feira para leitura de voto do relator

O Supremo Tribunal Federal (STF) encerrou hoje (2) a fase de sustentações orais do julgamento pode analisar o marco temporal para demarcações de terras indígenas. O julgamento será retomado na quarta-feira (8), quando será iniciada a leitura do voto do relator, ministro Edson Fachin. A análise do caso já dura três sessões. 

O julgamento está sendo acompanhado por cerca de 6 mil indígenas de 170 etnias, que estão acampados em Brasília desde a semana passada.

O STF julga o processo sobre a disputa pela posse da Terra Indígena Ibirama, em Santa Catarina. A área é habitada pelos povos Xokleng, Kaingang e Guarani, e a posse de parte é questionada pelo instituto de meio ambiente do estado. 

Durante o julgamento, os ministros poderão discutir o chamado marco temporal. Pela tese, os indígenas somente teriam direito às terras que estavam em sua posse no dia 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal, ou que estavam em disputa judicial nesta época. 

Na sessão desta quinta-feira, entidades e sindicatos de produtores rurais se manifestaram a favor do marco temporal.

Para Rudy Ferraz, representante da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), o marco garantirá segurança jurídica. “O marco temporal é uma interpretação possível no texto constitucional que traz segurança jurídica, balizas para garantir a implementação das demarcações de terras indígenas ocupadas”, afirmou. 

Na sessão de ontem (1º), entidades que atuam em defesa dos indígenas se manifestaram contra a tese. 

Em sua sustentação oral, o procurador-geral da República, Augusto Aras, se manifestou, no caso concreto, a favor da posse de terras do povo Xoklen. No entanto, Aras disse que o Supremo definiu que o marco temporal deve ser observado quando julgou o caso da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em 2009. 

“Quem logrou terra indígena antes de 5 de outubro de 1988 não as recebeu do constituinte. A ordem jurídica constitucional antecedente também assegurava a posse dos índios sobre suas terras. Da mesma forma, o constituinte não deu salvo conduto para ocupar qualquer terra no Brasil, sobretudo as que jamais ocuparam.”, afirmou o procurador. 

O processo tem a chamada repercussão geral. Isso significa que a decisão que for tomada servirá de baliza para outros casos semelhantes que forem decididos em todo o Judiciário. 

Fabio Rodrigues-Pozzebom/AgênciaBrasil

Manifestações

Ao todo, o relator do recurso, ministro Edson Fachin, autorizou a participação de 35 oradores de associações, organizações e entidades que, embora não estejam diretamente envolvidas na causa, têm representatividade em relação ao tema e podem contribuir para o julgamento.

Pela Comunidade Indígena do Povo Xakriabá (MG), Lethicia Reis de Guimarães relatou que o território Xakriabá foi reconhecido pela Coroa Portuguesa em 1728, e apenas um terço foi demarcado. Em razão de diversos processos de expulsão, nem todas as terras estavam ocupadas na promulgação da Constituição de 1988. Ela argumentou que, caso o marco temporal seja reconhecido, cerca de 10% da comunidade corre o risco de ser retirada de seu território.

Representando três comunidades indígenas do Maranhão (Apãnjekra Canela, Memortumré Canela e Akroá-Gamella), Lucimar Ferreira Carvalho disse que esses povos enfrentam diversos problemas para que se aplique o marco temporal. Eles envolvem desde a redução de seu território original, em razão do avanço da ocupação irregular para a agricultura e a pecuária, até a revisão de processos de demarcação com base na Portaria 01/2017 da Advocacia-Geral da União (AGU).

Em nome da Rede Eclesial Pan-Amazônica (Repam–Brasil), Chantelle da Silva Teixeira afirmou que, para garantir a segurança jurídica e o cumprimento das normas constitucionais, a União deve realizar a demarcação das terras indígenas da Amazônia com base na ocupação tradicional, de forma a proteger o patrimônio coletivo e evitar a devastação da floresta. Segundo ela, o legislador constituinte, ao tratar dos direitos dos indígenas, não fixou data certa (marco temporal) para definir a ocupação.

Futuro em jogo

O representante da Articulação Dos Povos Indígenas Do Brasil (Apib), Luiz Henrique Eloy Amado, afirmou que a Constituição Federal foi categórica ao reconhecer o direito originário dos indígenas às terras tradicionalmente ocupadas.

No mesmo sentido, Samara Carvalho Santos, do Movimento Unido dos Povos e Organizações Indígenas da Bahia (Mipoiba), lembrou que o julgamento do recurso, além de definir uma tese que norteará as demarcações das terras indígenas, também decidirá o futuro das vidas desses povos. “Impor sobre nós o ônus de estarmos ocupando nossas terras em 5 de outubro de 1988 é desconsiderar um passado tão recente em que nem sequer tínhamos o direito de escolher nossos próprios destinos”, afirmou.

Diversidade étnica e cultural

O advogado Paulo Machado Guimarães, em nome da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) e do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (CFOAB), ressaltou que os direitos e as garantias constitucionais expressam o respeito à diversidade étnica e cultural.

Para o orador da Defensoria Pública da União (DPU), Bruno Arruda, a tese do marco temporal não é a melhor solução jurídica para o caso brasileiro, pois a relação entre o indígena e a terra não é individualista, e o direito originário sobre as terras é um direito comunitário. Ele também lembrou que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) considera a tese do marco temporal contrária às normas e aos padrões internacionais de direitos humanos.

Justiça social

Segundo Deborah Duprat, representante da Associação Juízes para a Democracia (AJD), a Constituição Federal de 1988 reconheceu aos indígenas direitos plenos, mas, para isso, eles precisam de seus territórios. A seu ver, a presença externa na área indígena deve ser excepcional, e o precedente do STF precisa ser superado, em nome da igualdade e da justiça social.

Pelo Instituto Socioambiental (ISA), Juliana de Paula Batista afirmou que as terras indígenas são fundamentais não apenas para os mais de 300 povos que nelas habitam, mas para toda a humanidade, pois são as áreas mais ambientalmente conservadas do país. “Cerca de 98% da área total das terras indígenas está preservada, e há cerca de 51 milhões de hectares de terras públicas sem destinação só na Amazônia Legal”, afirmou. Essa extensão, segundo ela, seria suficiente para resolver todo e qualquer impasse relativo à expansão do agronegócio e garantir segurança jurídica na realocação das pessoas que estão nas terras indígenas.

Ocupação ilegal x tradicional

Em nome da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), Cezar Britto ressaltou a necessidade de se dar a interpretação originária ao artigo 231 da Constituição para impedir a ocupação ilegal de terras indígenas. Ele destacou que, ao resolver a questão de Raposa Serra do Sol, o Supremo afirmou que as terras que foram objeto de esbulho não estão sujeitas ao marco temporal.

Ivo Cípio Aureliano, representando o Conselho Indígena de Roraima, afirmou que a decisão sobre a TI Raposa Serra do Sol foi fundamental para todos os povos indígenas do país, mas os parâmetros fixados na ocasião dizem respeito apenas àquela situação, sem efeito vinculante sobre os demais processos demarcatórios.

Pela Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), Cristiane Soares de Soares disse que a posse indígena de seus territórios tem natureza jurídica diversa da posse civil, pois decorre diretamente da Constituição Federal, que exige apenas a ocupação tradicional, ou seja, que esteja atrelada aos usos, costumes e práticas culturais de cada povo.

Genocídio

O representante da Fundação Luterana de Diaconia (FLD), Dailor Sartori Junior, mostrou preocupação com a possibilidade de que a concepção de limites temporais cartesianos aumente o risco de crimes de atrocidade. Ele lembrou que, para a caracterização do crime de genocídio, não é necessária a ocorrência de massacres, por se tratar de um processo de muitas etapas. Algumas delas, a seu ver, já ocorrem no Brasil, como discursos desumanizantes, omissões estatais sistemáticas e marco jurídico de proteção insuficiente.

Pela Conectas Direitos Humanos, Julia Mello Neiva observou que a comunidade internacional está atenta ao debate e alerta que a tese do marco temporal ignora o violento histórico de expulsão de povos de suas terras ancestrais. Para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, a aplicação de marcos temporais perpetua a violência crescente e a prática de atos racistas contra os indígenas.

Vínculo com a terra

Luisa Musatti Cytrynowicz, da Comissão Guarani Yvyrupa (CGY), ressaltou que o direito dos povos indígenas às suas terras é um direito fundamental, pois a existência desses povos depende do vínculo com suas terras. Com fundamento no princípio constitucional de não retrocesso social, ela defendeu que não se pode admitir alterações normativas que provoquem retroação dos processos de demarcação em curso.

Aluísio Ladeira Azanha defendeu o entendimento do Centro de Trabalho Indigenista (CTI) de que a Constituição Federal adotou a ocupação tradicional como critério certo para o reconhecimento dos direitos territoriais dos povos indígenas. Para ele, negar tais direitos é negar também a própria existência física e cultural dos povos indígenas, tendo em vista a absoluta interdependência que têm com seus territórios.

Conflitos territoriais

Em seguida, o procurador Daniel Pinheiro Viegas afirmou que o Estado do Amazonas é contrário à tese do marco temporal, com base no acompanhamento de processos empíricos e na pesquisa científica. Ele ressaltou que o estado, através do Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia, passou a compreender melhor as várias direções dos conflitos territoriais, muitos dos quais foram solucionados judicialmente graças à não aplicação da tese.

A representante do Indigenistas Associados (INA), entidade associativa dos servidores da Funai, Camila Gomes de Lima, afirmou que o processo de demarcação de terras envolve bases técnicas sólidas, levantamento de documentos e estudos abrangendo histórico de expulsões, massacres, confinamentos, remoções e outras modalidades de violência fundiária. Para a advogada, a tese do marco temporal pretende substituir os critérios técnicos e as investigações antropológicas por um critério arbitrário que não faz sentido na perspectiva dos povos indígenas.

Conservação da biodiversidade

Em nome do Greenpeace Brasil, Alessandra Farias Pereira defendeu o papel das demarcações para a sobrevivência física e cultural dos povos nativos, para a contenção do desmatamento e para as estratégias de mitigação e adaptação das mudanças climáticas. Segundo Alessandra, a Convenção da Diversidade Biológica, do qual o Brasil é signatário, considera a criação de áreas protegidas uma das melhores ferramentas de conservação da biodiversidade e, no Brasil, essas áreas estão sob gestão especial, englobando as unidades de conservação, as terras indígenas e os territórios quilombolas.

Cláusula pétrea

Em nome do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), Paloma Gomes considera que existe hoje uma tentativa de invalidar o que foi definido pelo legislador constituinte e pela sociedade brasileira em 1988. Segundo ela, a Constituição definiu que o direito à posse do território indígena originário, por ser anterior a qualquer outro, se sobrepõe a qualquer título de propriedade, e esses direitos são cláusulas pétreas, imprescritíveis, inalienáveis e imutáveis.

No mesmo sentido, Anderson de Souza Santos, que falou em nome do Conselho Aty Guasu Guarani Kaiowa, de Mato Grosso do Sul, defendeu que a tese do marco temporário seja declarada inconstitucional e que os artigos 231 e 232 da Constituição Federal sejam fixados como cláusulas pétreas. Ele afirmou que a falta de território faz aumentar a violência contra os povos indígenas.

Com informações do STF

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