Debate público não pode estar restrito a plataformas digitais privadas

Para especialistas, regulação contra abusos das plataformas digitais sobre dados dos usuários pode evitar controle político sobre o debate democrático.

O Observatório da Democracia realizou um ciclo de debates para discutir o atual cenário de luta ideológica no Brasil e a urgência em se enfrentar num nível mais elevado o desafio de combater o pensamento ultraliberal e de viés autoritário que cresce no mundo.

A iniciativa partiu do diálogo realizado com os organizadores do livro Reconstruir a Democracia: União de amplas forças políticas e sociais para a luta ideológica, editado pela Anita Garibaldi e a Expressão Popular. Lançado no início de julho, o livro organizado por Aldo Arantes, coordenador nacional da ADJC (Associação Nacional de Advogados e Advogadas pela Democracia, Justiça e Cidadania) reúne autores das mais variadas áreas do conhecimento para traçar um plano de luta ideológica contendo diagnóstico, programa e tática para o combate ao bolsonarismo.

As fundações partidárias que compõem o Observatório da Democracia consideram que esse tema é estratégico na luta para a derrota da ultradireita que tomou conta das estruturas de poder no Brasil.

O seminário “Guerra Cultural e Luta Ideológica” – caminhos para reconstruir a democracia, aprofundou temas como o papel das plataformas de redes sociais na desestruturação da esfera pública e no impulsionamento das forças de extrema direita, o Law Fare, a psicologia social e a neurociência, a necessidade de uma frente ampla de luta ideológica, entre outros.

A primeira mesa, ocorrida no dia 30 de agosto, teve como tema as Guerras Híbridas, a Guerra Cultural e as Plataformas de redes sociais, com intervenções do advogado Lúcio Flávio Dias, da jornalista Renata Mielli, do biólogo Leandro Loguércio, da juíza trabalhista aposentada Antonia Mara Loguércio, do professor Guilherme da Hora e do Zé Gustavo, da Fundação Rede Sustentabilidade, com mediação de Henrique Matthiessen, da Fundação Leonel Brizola.

A privatização do debate público

A jornalista Renata Mielli, pesquisadora da Escola de Ciências da Comunicação da ECA-USP, pontua que o problema das plataformas digitais não está em como se usa, mas está na própria estrutura arquitetônica delas.

Com observa ela, desde a crise capitalista de 2008, o mundo vem vivendo um momento de reconfiguração em que a democracia se tornou algo dispensável, pois dificulta a recomposição da taxa de lucro do capital.

Alguns autores falam, descrevem este momento econômico como um capitalismo de plataformas, conforme essas estruturas sócio-digitais conectam consumidores e fornecedores, em que o centro de tudo é a captura de dados dos usuários. Isto se faz prendendo as pessoas em sua dinâmica de funcionamento, em que o engajamento do usuário se dá fornecendo dados e produzindo conteúdos, que são monetizados pelas plataformas.

O direcionamento de mensagens, que antes era feito por meio de pesquisas de opinião para grupos segmentados, passou a ser direcionado por indivíduos (nanotargeting). A abordagem individual é feita, não mais por perfis socioeconômicos, mas psicológicos, sem qualquer controle e transparência. Renata lembra o escândalo da captura de dados privativos pela Cambridge Analytica, que revelou a dimensão dessa prática e seus níveis de manipulação.

Assim, os monopólios dessas plataformas disseminam uma retórica de neutralidade e objetividade dos algoritmos, que são alimentados por vieses culturais, ideológicos, sociais, econômicos e históricos, por exemplo. Foi a partir dessa arquitetura matemática, que estrategistas políticos como Steve Bannon, – que assessorou Donald Trump e outras lideranças de extrema direita -, passaram a controlar a circulação de informações políticas entre segmentos sociais.

Esse engajamento superficial do usuário com a informação nas redes sociais gera uma ruptura com os paradigmas mínimos da razão argumentativa, em que o debate público não é mais fundamentado na diversidade de ideias e argumentos racionais, mas apenas na confirmação de certezas individuais. Presas em bolhas, as pessoas não têm mais acesso, e nem querem ter, ao contraditório, dando margem ao surgimento de fundamentalismos.

Para ela, é preciso romper com essa lógica, estabelecendo regulação dessas plataformas privadas, por meio de mecanismos de moderação de conteúdo, obrigações de transparência para atuação das plataformas, por debate de jurisdição e quebra de monopólios, mas, principalmente, que façam uma regulação muito rígida sobre uso de dados pessoais para fins de direcionamento político.

“Não podemos aceitar que o debate público ocorra apenas dentro dessas plataformas sob suas condições privadas de regulação”, afirmou.

Para melhorar a posição do campo político progressista nessa guerra cultural, ela insiste que o centro é o enfrentamento ao sistema capitalista. Não há mistério sobre como enfrentar a perplexidade criada pelo ambiente digital de desinformação. Os problemas das pessoas são concretos, como a concentração econômica, a exclusão da produção e do consumo, que só crescem exponencialmente, e devem ser objeto de denúncia. Na opinião dela, o trabalhador deixa, sequer, de ser exército de reserva na ordem do capital, para se tornar lumpesinato.

A pesquisadora de comunicação também observa a dimensão da crise da democracia representativa no mundo. Foram anos de criminalização da política pelas mídias no Brasil, que apresentam seus resultados no desencanto do eleitor. Esse ambiente ideológico da comunicação conseguiu, até mesmo, fazer com que a democratização da participação popular seja considerada um estorvo que só traz custos ao estado.

Durante o debate, Renata concordou que, no surgimento da internet, havia um ufanismo ingênuo de que as redes sociais eram espaços descentralizados, sem intervenção de estados e empresas, que desconsiderava a influência do modo de produção nas relações sociais e da própria construção ideológica. “A tecnologia foi apropriada pelo capital para ganhos de lucratividade como também para o ambiente da sedimentação de uma visão ideológica”, avalia ela.

Ela lembrou que a tecnologia sempre foi ambivalente, ao possibilitar avanços e retrocessos, conforme o uso da sociedade. Para Renata, é preciso aproveitar as brechas de seu funcionamento para encontrar alternativas. “Não tem bala de prata contra fake news, mas um conjunto de fatores que precisam ser enfrentados”.

Numa referência à mídia corporativa tradicional, mesmo a comunicação “de um para muitos”, de acordo com a jornalista, nunca foi regulamentada e desmonopolizada. É uma mídia hegemônica e de discurso único, em sua opinião. Por outro lado, a internet deu novo formato e arquitetura à desinformação e às fake News, “de uma forma inimaginável, que rompe o debate público ao fechar as pessoas em bolhas”.

“O ambiente das plataformas digitais não é favorável para nossos objetivos estratégicos, pois não busca aprimorar o debate público, mas apenas aferir lucro. Precisamos enfrentar essas empresas em seu caráter monopolista. Precisamos melhorar nossa intervenção, mas vê-las como espaço de disputa política, ao discutir regulação de conteúdos e quebra de monopólios. Elas precisam seguir as regras brasileiras pensadas para aprimorar a democracia”, recomendou.

Renata faz uma reflexão sobre as alternativas da esquerda. Se, num momento anterior, os movimentos pela democratização da comunicação falavam de fortalecer a comunicação pública e comunitária, “na internet estamos apenas fortalecendo espaços privados”. Para ela, é importante perceber a internet como algo muito maior, voltar para a internet aberta e construir novas plataformas.

Shopping center de informações

Zé Gustavo lembrou da ingenuidade celebratória de setores da esquerda, ao receber, no início dos anos 2000, a novidade da internet e das plataformas digitais como uma possibilidade de troca de informação mais livre e democrática, que a mídia corporativa de que dispúnhamos.

“Diante da expectativa otimista de uma ágora pública, sem mediação da grande mídia, – que no máximo eram objetivas, mas nunca neutras -, nos deparamos, nos 2010,, com um shopping center, onde o dono determina onde o usuário pode ou não ir”, comparou. A lógica do shopping center como espaço público serve para a compreensão das plataformas digitais, em que os usuários não recebem as informações que querem acessar, mas as que querem que eles recebam.

Na definição dele, o objetivo da informação circulante nessas plataformas é influenciar a compra de um produto. Não é possibilitar que o usuário faça uma reflexão crítica, mas apenas confirme suas opiniões preconcebidas. “Não é  uma lógica de reflexão e emancipação, apenas uma lógica capitalista”, resume.

Foi nesse ambiente privado e limitador que as fake news se espraiaram, confirmando vieses conservadores e preconceituosos. No entanto, as redes sociais potencializaram algo que não é novo, mas sempre existiu, com mais possibilidades de ser combatidas.

O impacto informacional das plataformas digitais é tão transformador da capacidade de acumulação capitalista, que das seis maiores empresas do mundo, – as mais valiosas -, cinco são big techs. “Quem tem poder econômico, quer ter poder político. Se não travarmos o desenvolvimento dessas empresas, viveremos numa era em que somos manipulados como sociedade, sem ter consciência disso”.

Os algoritmos que regem a distribuição dos dados nessas plataformas, segundo Zé Gustavo, têm viés de preconceito. Para ele, a Lei Geral de Proteção de Dados ainda é insuficiente para regular os abusos. Em sua opinião, é preciso haver tributação adequada dessas empresas, mecanismos de distribuição de renda e regulação, mecanismos que só governos podem fazer.

 “A internet não vai recuar, mas precisamos nos preparar como sociedade para um avanço exponencial”, admitiu. Se não enfrentarmos a falta de transparência dessas empresas, ele diz que vai ser difícil disputar eleição.

Zé Gustavo menciona o fato de 90% das pessoas acharem que a internet é o Facebook. Ele defende que é preciso mostrar os riscos a que estas pessoas estão expostas e criar uma consciência crítica sobre essas plataformas. Ele considera que a simples difusão de informação apurada e relevante, e as agência de verificação de fake News têm um alcance baixo diante da sedução desse tipo de informação inventada. “É preciso potencializar os espaços democráticos que já existem nas redes, difundindo seu conteúdo a partir do uso dos algoritmos”, sinaliza ele.

Desvelar a manipulação para resistir

Lúcio Flávio citou as campanhas do Brexit e de Donald Trump para apontar a ideologia retrógrada que norteia essas estratégias. Steve Bannon recorreu ao Tradicionalismo, ideologia de fundo neofascista, que pode se apropriar do uso dos algoritmos de redes sociais para expressar discursos de desinformação, teorias da conspiração e ódio, e assim garantir um eleitorado contra a participação do Reino Unido na Comunidade Europeia.

Segundo ele, a frente de resistência criada nos EUA conseguiu desmascarar essas táticas e derrotar Donald Trump. Dias aponta que essa experiência pode contribuir para a análise de táticas para o combate ao bolsonarismo no Brasil. Ele menciona como se formaram as campanhas que reúnam o ambiente dos profissionais de saúde em defesa do SUS (Sistema Único de Saúde), educadores e estudantes em defesa do ensino público, artistas contra o obscurantismo, advogados e juristas em defesa do estado de direito etc. Para ele, essas frentes precisam desaguar num objetivo comum que é o Fora Bolsonaro.

Por outro lado, o livro tem o objetivo de desvelar as táticas de manipulação da opinião pública e construção de consensos para atacar aquilo que um dos líderes do Brexit expôs num momento de “sincericídio”, de que a manipulação não pode ser percebida, senão será neutralizada.

Para ele, é importante olhar para a experiência da Bolívia no enfrentamento a essas estratégias, com eficácia, derrotando o golpe e recolocando no poder as forças populares, mesmo sendo uma realidade até mais difícil que a brasileira, em alguns aspectos.

O ex-vice presidente deposto, Álvaro Linera, fez um balanço, em que pontuou que os bolivianos conseguiram uma unidade ampla por meio da federação partidária, que é o MAS. Eles criaram suas redes e conseguiram se inserir na população mais pobre, criando lideranças para o contraponto à desinformação e ao discurso de ódio. “É preciso buscar um terreno comum na realidade, e não atacar as pessoas e seus valores, mas argumentar”, recomendou o advogado.

O caos informacional como estratégia imperialista

Antonia fez a abordagem do papel das plataformas digitais a partir da análise das chamadas “guerras híbridas”, que forjam golpes brandos e rígidos por meio de uma luta cultural como centro do raciocínio militar imperialista.

Mara observa, a partir de Marx, como a hegemonia cultural é importante para a dominação de classe. Desta forma, o ambiente especulativo em que as elites econômicas deixam de se interessar pelo sistema produtivo e o desenvolvimento econômico para viver do sistema financeiro e seus lucros fictícios, depende da hegemonia cultural para garantir a manutenção de seu domínio e a inércia e apatia política.

Ela também remete ao debate sobre imperialismo em Lênin, para apontar a importância que os EUA dão ao controle sobre o alinhamento de nações a sua unipolaridade imperialista. Países que fogem a essa cartilha estão sujeitos aos custos da guerra convencional ou das guerras híbridas não convencionais, ou dos golpes rígidos e revoluções coloridas dos golpes brandos.

Ela resgatou a leitura do intelectual russo Andrew Korybko, ao discutir as medidas preventivas a esses novos tipos de golpes desestabilizadores de governos. Para isso, ele constata como os EUA combinam arsenal bélico com estratégias de desestabilização e desorientação pela informação por meio de conglomerados de mídia, universidades, ongs, think tanks e centros de formação.

“A ideia é criar o caos administrado sem utilização das forças armadas, que podem entrar no final para dar sustentação ao golpe rígido. O foco é na população, na infraestrutura institucional, na base sistêmica da sociedade influenciada pela mídia internacional”, diz a juiza aposentada.

Ela cita as obras de Edward Bernais, Propaganda, de 1928, e Fabricação de Consensos, de 1947, que já apontavam para as estratégias meticulosas de fabricação de notícias artificiais e aparentemente desarticuladas, com aparência de espontâneas. Estratégias que se estruturam de forma atualizada e complexa, desde a CIA, se expressando com todo vigor por meio das revoluções coloridas.

O conceito de golpe brando é atribuído a Gene Sharp, que, em sua obra Da Ditadura à Democracia, é considerada o manifesto das revoluções coloridas. “O Maquiavel das revoluções não violentas, adaptou a estratégia militar norte-americana em ideologia. Como denunciam Korybko e Domenico Losurdo, essas revoluções têm de tudo, menos não-violência. É o caso dos protestos na China, em 1989”.

Nas guerras culturais os civis são preponderantes. Mas, como ressalta Antônia, o manual de Sharp prevê sanções econômicas e embargos, que provocam mais mortes que todas as destruições em massa em toda a história, com a perspectiva de entrada em ação do aparato militar.

Korybko sugere maneiras mais gerais das nações se defenderem, entre outras mais específicas. A advogada cita as táticas de manter uma rede ampla de ideias que consiga desenvolver conceitos como patriotismo e nação, para resistir ao imperialismo. A possibilidade de nacionalizar as plataformas digitais, como fazem Rússia e China, é difícil no Brasil, mas fundamental.

“Precisamos saber utilizar a internet a nosso favor, já que a nacionalização em países periféricos é difícil. É preciso usar os algoritmos a nosso favor e chegar às pessoas que sofrem com a crise de inflação e insegurança alimentar, mas que sequer acessam a internet (embora acessem a Rede Globo, que participou do esquema golpista estimulando o lawfare)”, concluiu ela.

Estratégia que alcança sentimentos

Leandro defende a tese de que a personalização dos conteúdos nas plataformas digitais tem um poderoso fator biológico e genético. Elas seguem uma conformação de estrutura que alcança o indivíduo em suas peculiaridades fisiológicas.

Elas estimulam a abertura do usuário às experiências novas, o nível de organização mental e diária a todo os eventos, maior ou menos sociabilidade e extroversão, maior cooperatividade (individualidade e coletividade), e o próprio temperamento. “Elas modulam as expectativas dos usuários, pois determinadas pessoas são mais vulneráveis. Essa é uma camada de compreensão dessas estruturas que precisa ser considerada nas análises”, diz o biólogo.

Para ele, já está ocorrendo uma reação natural da sociedade. Nazismo e fascismo se construíram em cima de propaganda e narrativas mentirosas que foram desmontadas após muito esforço. “Esta realidade já está mostrando a fragilidade dessa Matrix, porque a realidade tem mais força”, analisa.

Para ele, é preciso realizar ações de educação massivas nas plataformas para trazer as realidades, contrapondo as notícias falsas. “À estratégia de impulsionamento de mentiras, que são mais compartilháveis por causarem espanto nas pessoas, precisamos falar das verdades, causando esse efeito de espanto, que já vejo acontecer e disputar a atenção”, recomendou.

Da Fundação Maurício Grabois

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