Só as Erínias serão benevolentes: de planos de saúde e homens a cavalo

Uma lástima que não podemos replicar com exatidão o que é ser caçado incansavelmente pelas Erínias. As vítimas sobreviventes escasseiam com o passar do tempo, a memória dos fatos vira narrativa, as câmaras de gás são relativizadas em publicações que se tornam debates judiciais sobre liberdade de expressão, das entranhas da sociedade que parecia ter colocado normas jurídicas como instrumentos para afastar atrocidades.

Em seu livro mais famoso, Jonathan Littell oferece a quem se propõe a mergulhar nas suas quase 900 páginas uma ficção tão magistral quanto perturbadora. A história do Oficial da SS Nazista Maximilien Aue, contada em primeira pessoa, é um relato de quem desfruta de uma vida confortável, na França, sendo um administrador de tecelagem, tempos depois da Segunda Guerra, longe da possibilidade de ser julgado pelos crimes cometidos durante o domínio nazista na Alemanha, porém, atormentado pelas Erínias, eufemisticamente chamadas de “As Benevolentes”, mesmo nome da obra de Littell, publicada, no Brasil, pela Companhia das Letras, em 2007.

Assim como os que temiam as Erínias e não ousavam chamá-las pelo nome para não as atrair, Aue escreve suas memórias quando, distante no tempo dos fatos, sente-se seguro em confessar seus feitos durante os tempos sombrios da sua atuação na SS. Pode-se dizer, porém, que toda cautela diante das Erínias é pouca, assim, é compreensível a atuação de quem quer evitar que elas se aproximem. Responsáveis por castigar quem comete crimes de sangue, também conhecidas como Benevolentes, atormentam a vida de Aue, que confessa tudo ao leitor. Não sem antes tentar arregimentar cúmplices, apresentando a seguinte frase a quem está diante de suas páginas:

“Sou culpado, vocês não, combinado. Mas ainda assim vocês deveriam admitir que o que eu fiz vocês também teriam feito. Talvez com menos zelo, mas talvez também menos desespero, em todo caso de uma maneira ou de outra.”

Ele quer diminuir o que ele fez, compartilhar sua culpa, diminuir sua responsabilidade e, especialmente, alcançar a simpatia das Erínias e de benevolentes leitores, que poderão, num titubear, pensar que ele teria razão. Porém, a Humanidade, desde 1948, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, tenta demonstrar que Aue está errado. A Humanidade quer que provemos que ele está errado. Pena que a angústia vivida por um perseguido por seu passado só pode ser propriamente sentida pelo dono dessa angústia. Uma lástima que não podemos replicar com exatidão o que é ser caçado incansavelmente pelas Erínias. As vítimas sobreviventes escasseiam com o passar do tempo, a memória dos fatos vira narrativa, as câmaras de gás são relativizadas em publicações que se tornam debates judiciais sobre liberdade de expressão, o Caso Franco A surge, em Frankfurt, das entranhas da sociedade que parecia ter colocado normas jurídicas como instrumentos para afastar atrocidades. Dá para dizer que o momento não é dos melhores para os defensores da Humanidade e dos Direitos Humanos.

Nos EUA, homens a cavalo tratam pessoas migrantes como animais desprovidos de dignidade, no afã de impedir que eles entrem no território do seu país, mesmo sabendo que enfrentam violências gigantescas na sua nação de residência. No mesmo mês em que uma brasileira morre ao tentar atravessar a fronteira do México com os EUA, ouvimos sobre os fatos do tratamento da Covid19 num hospital de plano de saúde em São Paulo.

No Senado Federal, a advogada Bruna Morato vai à Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), que investiga a atuação do governo durante a pandemia, e coloca em palavras a descrição de uma experiência macabra que, se realmente tiver acontecido como ela expôs, mostra que foi colocada em prática uma série de ações coordenadas para fazer a empresa de planos de saúde para idosos proteger seu nome, sua reputação e ter controle sobre seus gastos durante a pandemia, mesmo que isso custe vidas de seus clientes, mesmo que custe agir em crime contra a humanidade. Os protagonistas desses fatos dão razão a Aue. Na situação em que ele estava, teriam agido exatamente como ele agiu. Aliás, é fácil ver Aue cavalgando enquanto chicoteia migrantes. Também não é difícil vê-lo ministrando remédio ineficaz para doentes com o intuito de diminuir os custos de internação. As Erínias devem estar se preparando, porém, nunca o fazem com o intuito de serem benevolentes.

*Luís Renato Vedovato é pesquisador do Projeto de Pesquisa sobre Abordagem Consensual da Pobreza (Unicamp e Cardiff University), autor do livro “O Van Gogh Esquecido” (2020). É doutor em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo; professor da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA); pesquisador associado FAPESP do Observatório de Migrações em São Paulo; e autor do livro “Deve Haver” (2017).

Do Jornal da Unicamp