Corte Interamericana de Direitos Humanos condena Brasil por aplicação indevida de imunidade parlamentar

Na sentença, Tribunal considerou que o país é responsável pela violação dos direitos e das garantias judiciais, proteção judicial e igualdade perante a lei no caso de feminicídio de Márcia Barbosa de Souza.

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A Corte Interamericana de Direitos Humanos considerou, em sentença divulgada nesta quarta-feira (24), o Estado brasileiro responsável internacionalmente pela violação dos direitos e das garantias judiciais, proteção judicial e igualdade perante a lei pela aplicação indevida de imunidade parlamentar em benefício do principal responsável pelo homicídio de Márcia Barbosa de Souza.

A sentença foi proferida em razão da “falta da devida agilidade na realização das investigações sobre o referido delito; o caráter discriminatório em razão de gênero das referidas investigações, e por violação do prazo razoável, assim como violação do direito à integridade pessoal, em prejuízo dos familiares de Márcia Barbosa”.

Márcia Barbosa era uma estudante afrodescendente de vinte anos de idade, que vivia em situação de pobreza. Na noite de 17 de junho de 1998, Márcia e o então deputado estadual na Paraíba Aércio Pereira de Lima se encontraram no Motel Trevo. No dia seguinte, uma testemunha observou que uma pessoa retirava o corpo de Márcia de um automóvel para um terreno baldio próximo à cidade de João Pessoa.

Em 19 de junho de 1998, iniciou-se formalmente a investigação policial a respeito da referida morte. Pela imunidade parlamentar que gozava o então deputado estadual, principal suspeito, solicitou-se em duas ocasiões distintas à Assembleia Legislativa da Paraíba autorizações para iniciar a ação penal contra ele, as quais foram rechaçadas.

Posteriormente, em virtude de alterações constitucionais e a perda do foro do então deputado estadual, o processo penal contra Pereira iniciou-se, em 14 de março de 2003. Ele foi condenado em 26 de setembro de 2007 a 16 anos de prisão pelos delitos de homicídio e ocultação do cadáver de Márcia Barbosa de Souza. Pereira recorreu da sentença, mas antes que o recurso fosse examinado, ele morreu.

Esta é a primeira sentença em que a Corte IDH analisa a imunidade parlamentar no marco do direito de acesso à justiça e à obrigação reforçada de investigar com a devida diligência a morte violenta de uma mulher.  

Em sua sentença, a Corte ressaltou que a imunidade parlamentar foi idealizada como uma garantia da independência do órgão legislativo em seu conjunto e de seus membros, e que não pode ser concebida como um privilégio pessoal do parlamentar. Debaixo de nenhuma circunstância, poderia transformar-se em um mecanismo de impunidade, questão que, caso acontecesse, causaria uma erosão do Estado de direito, seria contrária à igualdade diante da lei e faria ilusório o acesso à justiça das pessoas afetadas.

O tribunal concluiu que a forma como estava regulada a imunidade parlamentar brasileira e a da Paraíba, para a data dos fatos, era contrária aos direitos ao acesso à Justiça. A Corte concluiu que a negativa de suspensão da imunidade parlamentar do então deputado Aércio Pereira de Lima por parte do órgão legislativo foi um ato arbitrário, transformando-se essa negativa em no mecanismo que propiciou a impunidade do homicídio de Márcia Barbosa de Souza, tornando ilusório o acesso efetivo à justiça de seus familiares.

Na sentença, a Corte também concluiu que a investigação e o processo penal pelos fatos relacionados com o homicídio de Márcia Barbosa de Souza tiveram um caráter discriminatório por razão de gênero e não foram conduzidos com uma perspectiva de gênero.

Em particular, a Corte ressaltou que, durante toda a investigação e o processo penal, o comportamento e a sexualidade de Márcia Barbosa passaram a ser um tema de especial atenção, provocando a construção de uma imagem como geradora ou merecedora do ocorrido e desviando o foco das investigações através dos estereótipos relacionados com aspectos de sua vida pessoal.

A Corte indicou que os prejuízos pessoais e os estereótipos de gênero afetaram a objetividade dos funcionários públicos encarregados de investigar as denúncias que se lhes foram apresentadas, influenciando em sua percepção para determinar se ocorreu ou não um ato de violência, em sua avaliação da credibilidade das testemunhas e da própria vítima. Os estereótipos “distorceram as perspectivas e deram lugar a decisões baseadas em crenças preconcebidas e mitos, em lugar de fatos”, o que por sua vez pode dar lugar à negação de justiça, incluída a revitimização das denunciantes.  

Diante de todo o exposto, a Corte concluiu que o Brasil violou os direitos e as garantias judiciais, a igualdade perante a lei, a proteção judicial e a integridade pessoal, em prejuízo da mãe e do pai de Márcia Barbosa.

A Corte determinou ao Brasil a adoção de diversas medidas de reparação.

Fonte: Portal da Corte Interamericana de Direitos Humanos