Catedral de ossos ou húmus da cultura brasileira?

Para os que acreditam no legado artístico e literário do movimento, sem o evento fundador da nossa modernidade artística estaríamos hoje em uma penúria irremediável. Mas para os que franzem as sobrancelhas para as estripulias dos jovens de 22, se legado houve, foi apenas relativo seu valor estético, embora amplo seu apelo ideológico

Palácio dos Bandeirantes, em São Paulo, iluminado com projeções de obras de arte em comemoração aos 100 anos da Semana de Arte Moderna. | Foto: Wikipedia

Progresso significa movimento em direção desejada, e nós não temos todos os mesmos desejos para nossa espécie.

(C. S. Lewis)

Qual a razão de comemorarmos a Semana de 22? Todo estudante de História recebe, em seu primeiro semestre de graduação, a lição de que datas comemorativas não são lembranças desprovidas de interesses ideológicos. Toda comemoração é celebração de uma vitória, simbólica ou real. Ela pode ser o reconhecimento do legado deixado por uma geração anterior; a depender das circunstâncias, pode também reivindicar algum tipo de reparação pelas injustiças sofridas por um grupo social no passado. Uma efeméride pode ser uma ferida aberta no corpo social.

No caso em questão, não nos parece que os jovens de 22 tenham sido vítimas de perseguição, ou que deveriam ser reabilitados por injustiças sofridas. O que comemoramos, então, nesse centenário? Certamente, a institucionalização vitoriosa de um legado na vida cultural e acadêmica dos nossos brasis.

Na segunda metade do século XX, o cânone modernista alimentou editoras e teses acadêmicas, e retroalimentou o poder simbólico de uma das principais universidades brasileiras, se não a mais importante. O modernismo paulista é um projeto de uma elite intelectual, vinculada à formação de uma classe média repleta de contradições e boas intenções. Evocando Carlos Drummond de Andrade, poderíamos dizer: A Semana é só uma data em um calendário, mas como dói.

Terá sido o convescote dos modernistas aquele apregoado divisor de águas da cultura brasileira? Para os que acreditam no legado artístico e literário do movimento, sem o evento fundador da nossa modernidade artística estaríamos hoje em uma penúria irremediável. Mas para os que franzem as sobrancelhas para as estripulias dos jovens de 22, se legado houve, foi apenas relativo seu valor estético, embora amplo seu apelo ideológico: um acontecimento local que foi contrabandeado para o conjunto da cultura brasileira como algo de grandeza nacional.

A julgar pelas vaias e aplausos que a comemoração do centenário tem despertado, pode-se dizer que a Semana de 22 foi exitosa, mobilizando energia e espaço de instituições públicas e da imprensa. Mas uma compreensão ampla depende da análise das crenças que enervaram a reflexão sobre a literatura no Brasil nos últimos cem anos. Um aspecto a ter presente é a importância que ela desempenhava na vida social na primeira metade do século XX. As expectativas depositadas em nossos escritores, poetas e romancistas eram ambiciosas: como dublês de pensadores, cientistas sociais e filósofos, nossos literatos tinham a missão de fazer uma sondagem da realidade social e produzir uma interpretação do Brasil. A experimentação estética esteve sempre refém, em alguma medida, desse papel hermenêutico imputado ao texto literário. Mesmo um parnasiano como Olavo Bilac não deixou de compor um soneto sobre Ouro Preto, belíssimo, aliás, onde a compreensão do passado era presidida pelo esmero do vernáculo.

Grande parte das intervenções críticas e das criações artísticas dos modernistas foi orientada por esse desejo quase atávico de interpretar o Brasil. Veja-se, por exemplo, os livros Pau Brasil (1925), de Oswald de Andrade, História do Brasil (1932), de Murilo Mendes. Mesmo Cecília Meireles, que não se filia ao modernismo de 22, publicou, bem depois, o Romanceiro da Inconfidência (1953). Seja como intepretação paródica ou simbólica do passado histórico, nossos poetas não abdicaram dessa espécie de missão.

Esse caráter missionário dispôs em lados opostos os herdeiros de um modernismo brasileiro que rapidamente se institucionalizou em nossa vida cultural. Não por acaso, a reivindicação no presente de um modernismo progressista, que não flertou com o reacionarismo e conservadorismo, seria a principal baliza para distinguir o autêntico do falso modernista. Autênticos seriam Oswald e Mario de Andrade, em que pesem suas contradições biográficas, seus compromissos políticos e sua produção literária irregular. Falsos modernistas seriam Menotti del Picchia, Cassiano Ricardo e Plínio Salgado.

Menotti del Picchia, Cassiano Ricardo e Plínio Salgado
Menotti del Picchia, Cassiano Ricardo e Plínio Salgado

Se na gênese do nosso modernismo há uma fonte de água pura e outra salobra, todo gesto comemorativo da façanha dos jovens no Teatro Municipal celebrará de forma tensa a memória do evento e terá que se haver com esse incômodo. Pois se os autênticos modernistas não flertaram com o autoritarismo de extração fascista, nem por isso apagaram os rastros de um convívio conivente com as elites brasileiras. Evidentemente, esse compromisso ideológico é insuficiente para invalidar a importância histórica do movimento, pois restaria discutir se as obras literárias produzidas resistem à acumulação teórica e crítica dos estudos literários. De preferência, testando perspectivas que desafiem as rotinas interpretativas institucionalizadas na Academia. É o caso, por exemplo, do projeto uspiano na área de humanidades, em particular nas Letras. A bem-sucedida operação historiográfica de construção do objeto “literatura modernista”, ou a transubstanciação de modernismo paulista em modernismo brasileiro, com a consequente vigência de um cânone duradouro, merece ser compreendida sem as paixões ou rivalidades institucionais e geracionais. Mas a crítica a tal modelo não é recente.

O projeto ideológico do modernismo brasileiro tem seu auge e declínio, coincidentemente, com a redemocratização do país. Entre os anos 1980 e 1990 uma série expressiva de estudos acadêmicos se lançava no desmonte da narrativa fundadora do cânone modernista. Alguns resmungos se fazem ouvir em congressos acadêmicos e cadernos culturais, por exemplo quando se se revisitam aqueles autores classificados de pré-modernistas. É justamente nesse momento que o autor deste artigo inicia seus estudos sobre um dos escritores malditos da Semana de 22: Coelho Neto, o príncipe dos prosadores brasileiros.

O projeto ideológico do modernismo brasileiro tem seu auge e declínio no período da redemocratização do país, entre os anos 1980 e 1990
O projeto ideológico do modernismo brasileiro tem seu auge e declínio no período da redemocratização do país, entre os anos 1980 e 1990

O autor de Turbilhão (1906), romance primoroso e, na opinião do crítico Wilson Martins, uma das obras-primas da nossa literatura, tornara-se uma espécie de leproso literário. Já nos anos de 1980, uma série de ensaios e artigos acadêmicos mostrava que o labéu grudado nas obras do romancista, “complicação literária sem nenhuma complexidade interior”, era injusto, fruto, em parte, da narrativa em torno a glorificação do modernismo paulista.

Ao lermos com um pouco de atenção a fortuna crítica da obra de Coelho Neto, ficará claro que a Semana de 22 não foi um divisor de águas e tampouco ofereceu novas balizas críticas para a avaliação da cultura brasileira. Veríssimo, Nestor Vítor, Adolfo Caminha e outros tantos homens das letras do final do século XIX já haviam formulado as bases de avaliação da produção artística desse período. Em suma, em um país que vive a reboque das modas teóricas e artísticas, já havia na primeira década do século XX uma discreta acumulação crítica.

Qual é a nossa opinião no fim das contas? A Semana de 22 serviu de esteio ideológico para a projeção cultural e política de um dos Estados mais ricos da federação, o mais industrializado de toda forma, e que se mostraria ao longo do século XX o mais moderno, mas também, em alguns aspectos, o mais conservador. Desvincular estética e ideologia dos jovens de 22 de seu papel na construção de uma mitologia paulista é ignorar, como vimos, a força que a literatura detinha na primeira metade do século XX.

O Grupo dos Cinco. Da esquerda para direita: Anita Malfatti, Mário de Andrade, Menotti del Picchia, Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral. Crédito: Wikipedia
O Grupo dos Cinco. Da esquerda para direita: Anita Malfatti, Mário de Andrade, Menotti del Picchia, Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral. Crédito:  | Foto: Wikipedia

Para o bem ou para o mal, os jovens de 22 passaram a fazer parte de uma das versões da história da cultura brasileira, e é justamente essa entronização que está em jogo na celebração do centenário da Semana: o sentido dessa história e desse suposto legado. Que não acreditemos mais nesse gesto de ruptura ou que saibamos hoje que a ruptura era epidérmica – o patrocínio da festança antropofágica veio da elite cafeeira -, é algo que temos de enfrentar na vida acadêmica com frieza. A comemoração desse centenário é um eco desse soluço triste pelo fim de uma grande promessa.

Para alguns, a crítica atual ao legado modernista perde-se na petite histoire. O que esses devotos da crença modernista não querem compreender é que não há mais grand récit, apenas o duro varejo das miudezas cotidianas. Sem a revolução do proletariado, as ilusões do Estado nação ou o papel emancipador e de ruptura da arte, o tempo histórico esvaziou-se das escatologias dessacralizadas. Rompeu-se o fio condutor que levaria a um ponto de vista da totalidade do processo social, cultural e econômico. A Semana tornou-se um culto acadêmico com hagiógrafos, exegetas e hereges. Costurar uma linha de sucessão entre as intervenções modernistas das primeiras décadas do século XX e outros momentos da cultura brasileira (concretismo, tropicália etc.) é ignorar que quem conta um conto, aumenta um ponto.

Não se encontram referências ao legado de 22 no teatro de Nelson Rodrigues, nos romances de 30, em Guimarães Rosa, Lúcio Cardoso, Cornélio Pena ou em poetas como Dora Ferreira da Silva, Orides Fontela, Bruno Tolentino. Que referências antropofágicas teríamos nas canções de Tião Carreiro e Pardinho? Ao que se sabe Racionais Mc’s não citaram Oswald de Andrade ou Mário em suas canções: não revisitaram as polêmicas inócuas do português brasileiro ou tampouco discutiram o sentido formal da poesia. Canções como “Diário de um detento”, “Fórmula mágica da paz” e “Vida loka, parte 1” fazem a cultura brasileira pulsar para além dos condomínios acadêmicos. Flertam de forma paradoxal com a indústria cultural e contêm verdadeiramente todos os milhões de erros da língua portuguesa. É a superação da antítese entre biscoito fino e massa vulgar, pressuposta por Oswald de Andrade, uma antítese que despertou o apetite de gerações de estudiosos progressistas ao longo do século XX. É a massa produzindo seu próprio alimento sem a assessoria do cozinheiro modernista e do escriba de plantão. Comida boa? Quem poderá julgar?

Cabe perguntar, por fim, com todo o respeito às celebrações do momento: qual seria o elemento mais perigoso empunhado pelos antigos e novos modernistas? A dessacralização de qualquer valor absoluto do passado, a violência criativa e destruidora dos ídolos mumificados. Nesse sentido, deveríamos fazer com “os mestres modernistas” o que Mário de Andrade fez com “os mestres do passado”. Não os levar a sério, fazer um pouco de troça de seus poemas piadas sem graça. Postular um pluralismo crítico de índole radical, sem historiografias teleológicas ou salamaleques dialéticos.

Marcos Lopes é professor da Área de Literatura Portuguesa e Brasileira, no Departamento de Teoria Literária do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL/Unicamp). É pesquisador de temas relacionados à secularização, espiritualidade e poesia. É um dos coordenadores do Centro de Estudos Literários, Teorias do Fenômeno Religioso e Artes (CELTA).

Do Jornal da Unicamp

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