Especialistas denunciam como e porque ivermectina tratou covid

Reportagem mostra como funciona o sistema de publicações científicas na área médica, quem ganha com a ivermectina vendida para pacientes de covid, e por que estudos desacreditados sobre a ivermectina continuam servindo de justificativa para uso da droga na pandemia

Reportagem do Jornal da USP, envolvendo oito especialistas de renome internacional, denuncia o mecanismo que levou drogas como a ivermectina e a cloroquina a serem defendidas por médicos como tratamento eficaz para a covid-19. A prescrição desses medicamentos, elaborados para outros fins, se espalhou pelos grupos de família do WhatsApp tornando praticamente obrigatório até para quem não havia se infectado pelo vírus se automedicar.

Os médicos e cientistas consultados para a reportagem revelam como a pandemia alavancou periódicos supostamente científicos e médicos supostamente pesquisadores ao estrelato com seus estudos sem qualquer respeito à metodologia científica. Diante da emergência sanitária, a ansiedade do estudos sobre tratamentos para a doença gerou a agilidade na publicação, assim como na sua divulgação sem critérios.

Para piorar a situação que levou à legitimação desses tratamentos, o Governo Federal, liderado por Jair Bolsonaro, e suas práticas sistemáticas de tentar desacreditar a ciência e a universidade, favoreceu esses pseudocientistas, assim como os laboratórios que fabricam os medicamentos.

A reportagem aponta os elementos da metodologia científica que não são cumpridos em duas das publicações mais citadas pelos defensores dos medicamentos: o site ivmmeta.com e um artigo publicado na revista Cureus. Mas também aponta os interesses envolvidos na desinformação sobre a eficácia desses medicamentos. Algumas dessas revelações tornaram-se públicas com a CPI da Covid, ocorrida no Senado, em 2021.

Quem ganha com a pseudociência

José Alencar Neto – Foto: Arquivo Pessoal

Segundo José Alencar Neto, médico cardiologista no Instituto Dante Pazzanese e autor do Manual de Medicina Baseada em Evidências, há toda uma cadeia de lucratividade em torno desse tipo de artifício para vender remédio.

o clamor que se gerou na onda da pandemia em torno desses medicamentos favoreceu médicos que os prescrevem, que puderam cobrar mais caro por consultas. Também ganham “os autores dos estudos que, ao apresentar resultados positivos têm maior chance de obter bônus, patrocínios, viagens a congressos”. Por exemplo, o grupo Médicos Pela Vida – cujos integrantes assinam o artigo na Cureus e defendem os medicamentos do kit covid – teve evento patrocinado pela VitaMedic, maior fabricante de ivermectina no Brasil. “Este laboratório financiou e ainda financia os Médicos Pela Vida”, afirma Tessler.

Os autores, assim como as revistas onde publicam, também ganham citações. “A revista que é mais citada e clicada consegue mais patrocínios”, detalha Alencar Neto. Também podem lucrar as farmácias – na pandemia vimos promoções sendo feitas para a venda de ivermectina, facilmente disponíveis nos balcões. E, é claro, lucram algumas indústrias farmacêuticas, como a própria VitaMedic citada, que fez publicidade para o uso de ivermectina na covid e viu suas vendas dispararem na pandemia.

“As empresas que comercializam e distribuem cloroquina e ivermectina no país envolveram o governo em uma publicidade para vender um discurso que desacredita quem defende a ciência. Semeando a dúvida para reduzir a credibilidade dos cientistas de verdade”, critica Bruno Caramelli, médico cardiologista e professor da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP).

Além dos motivos financeiros, o físico Leandro Tessler, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e um dos fundadores do Grupo de Estudos da Desinformação em Redes Sociais, destaca os ideológicos. “No Brasil, o maior impulsionador da pseudociência na covid foi a política. Muitas dessas pessoas envolvidas ganharam prestígio entre seguidores do Jair Bolsonaro e agora vão disputar as eleições. Elas viraram interlocutoras do governo, se reúnem com o presidente, com o ministro… quer dizer, elas são ouvidas pelo governo e foram indicadas para falar por ele na CPI. O governo deveria falar com representantes de Universidades, de instituições de pesquisa com conhecimento. Mas preferiu falar com essas pessoas porque elas davam suporte à ideia que o próprio governo defendia: minimizar a pandemia e propagar a ideia de que estava tudo bem”.

O antiparasitário usado contra vírus

A ivermectina é o antiparasitário que combate um verme, além de ter largo uso na pecuária bovina. A droga deu ao seu inventor um prêmio Nobel em 2015.

A história deste composto na pandemia começa quando um trabalho feito em laboratório mostrou que, in vitro (em cultura de células) e em altas doses, ele podia impedir a replicação do sars-cov-2, além de aumentar a resposta imunológica, relembra o médico Caramelli. “O próximo passo foi testar em humanos, mas nenhum estudo clínico bem desenhado mostrou eficácia da ivermectina na covid”, diz o médico, que também é um combatente ativo da pseudociência na pandemia.

“Quando começaram a aparecer artigos positivos sobre ivermectina e covid, eles vinham de locais com pouca tradição naquela área de pesquisa, e publicados em revistas de baixo rigor na revisão. Mas como já estava claro que cloroquina não servia para a covid, partiu-se para a ivermectina como um novo ‘salvador’“, diz o professor Tessler, da Unicamp.

Assim, começou a haver mais estudos sobre ivermectina, em alguns casos com mais rigor. “Inclusive isso é algo que eu acho que jamais deveria ter sido financiado, projetos maiores baseados unicamente naquele estudo in vitro”, opina Tessler.

A ivermectina tem potencial de ser bastante tóxica, então é usada com precaução. “Ela pode ser tóxica para o fígado”, afirma Caramelli. “O estudo in vitro já usou doses cavalares, que nem seriam toleradas por seres humanos, mas a partir dele houve grandes projetos, e eles não encontraram resultado positivo. Todo estudo que encontrava algum resultado tinha feito um trabalho enviesado. Há uma série de armadilhas metodológicas nas quais eles caíram”, diz Tessler.

O site ivmmeta.com é mais gritante: o site é anônimo, não faz parte de nenhum periódico científico, além de violar as regras mais básicas da metodologia científica – inclusive com distorção estatística grotesca para quem entende um pouco do assunto. A conclusão forjada, mas propagada inclusive por médicos em vídeos na internet, é de que a chance da ivermectina não funcionar contra a covid é de uma em um trilhão.

Já o segundo caso envolve artigo publicado em uma revista que vem sendo fortemente questionada pelo processo de revisão frágil: os próprios autores indicam os revisores, e o tempo de revisão de poucos dias foge totalmente ao que é considerado por especialistas o mínimo necessário para fazer uma verificação atenta. Os autores também ocultaram conflitos de interesse, como trabalhar para o laboratório que produz ivermectina no Brasil. Mais que a falta de credibilidade, há uma série de inconsistências graves no próprio artigo – e nos dados, como paciente com 119 anos e outro que consta como tendo tomado 6 mil comprimidos da droga – que, mais uma vez, levam ao resultado favorável para a ivermectina na covid, ao contrário do que estudos sérios apontaram.

Bruno Caramelli – Foto: Arquivo pessoal
Leandro Tessler – Foto: Arquivo Pessoal

Um trabalho muito acessado e compartilhado foi este artigo divulgado no site da revista Cureus, que apresenta problemas de diversas ordens. Em primeiro lugar, os autores do artigo não declararam conflitos de interesse, como, por exemplo, que trabalhavam como consultores do laboratório produtor de ivermectina. Isso é considerado uma infração ética e costuma resultar na retirada do artigo do ar. Porém, após receber diversos alertas, a Cureus optou apenas por incluir uma correção.

Tessler também chama a atenção para as instituições de pesquisa dos autores. “Os dois primeiros autores são de ‘Institutos’ que na verdade são os consultórios deles. Outro autor é da Prefeitura de Itajaí, e outro, do Centro de Avaliação Genômica de Ribeirão Preto, que não são instituições de pesquisa. E os de instituição de pesquisa há alguns entre os últimos autores. Mas se você vai atrás da produção científica deles, não tem nada a ver com o assunto do artigo. Esse é o primeiro mau sinal deste artigo.”

A revista onde o estudo foi publicado também vem sendo muito questionada no seu processo de revisão. Na Cureus, isso é automático. “Você indica quem vai revisar o seu artigo e fica uma história entre amigos. Ninguém faz um filtro. Enquanto em revistas sérias o plantel de revisores é de pessoas reconhecidas como experts na área, na Cureus é quem for indicado.”

A revista, diz Tessler, afirma que não cabe a ela verificar se os autores são honestos, e que as instituições são as responsáveis pela honestidade dos seus afiliados. “Então, por exemplo, o Instituto Corpometria, que é o consultório do primeiro autor, é quem tem que garantir que ele é honesto. Se não, ele deve ser demitido por ele mesmo. Não por acaso, na Cureus é onde se concentram as publicações sobre ivermectina, cloroquina, e proxalutamida para covid. Todos trabalhos mal feitos.”

Outro ponto apontado por Caramelli é o prazo de revisão curto, que é até propagandeado pela revista como uma vantagem sua. “Olhando o histórico deste artigo da ivermectina, vemos que a revisão por pares começou no dia 4 e foi concluída no dia 13 de janeiro. E o trabalho foi publicado dia 15 de janeiro. Não dá para fazer isso em nove dias. Qualquer revista boa que pede para você revisar um artig, te dá pelo menos três semanas de prazo. Este artigo foi revisado em tempo recorde. Não teve nada para ser corrigido, nem erro de inglês? Nem voltou para os autores?”, indaga o professor da USP.

Esse sistema frágil de revisão se reflete nos erros metodológicos encontrados nos artigos. O artigo da ivermectina, diz Alencar Neto, é extremamente confuso. Não fica claro se é um estudo prospectivo ou retrospectivo, se a avaliação é baseada no passado ou no presente.

Ele também não deixa claro os desfechos que serão pesquisados com cálculo de amostra de pacientes. “Outra coisa: onde estão os termos de consentimento dessas 200 mil pessoas? Não vi nada sobre isso”.

O estudo diz que comparou quem não recebeu ivermectina pela Prefeitura de Itajaí versus quem recebeu, e qual é a mortalidade dos dois grupos.  E encontra como resultado que o grupo que recebeu pela prefeitura teve uma mortalidade menor. “Mas como saber se todo mundo que recebeu ivermectina pela prefeitura tomou? E se quem não recebeu, não tomou por outras vias? Você acha que uma pessoa que não recebeu não pode ir à farmácia e comprar?”, questiona Alencar Neto, explicando que isso é chamado de crossover, e até pode acontecer nos estudos, mas é preciso registrar, já que, quanto maior o crossover, menor vai ser a confiança no resultado final. “Tudo isso não fica claro, e me indica uma falha dos autores e também da revista que aceitou o artigo.”

Outro ponto apontado por Alencar Neto é que, nos dados que os próprios autores colocaram para apreciação pública depois, havia paciente registrado com 119 anos – sendo que a brasileira mais idosa havia morrido com 116 anos. Outro aparece como tendo tomado 6 mil comprimidos de ivermectina.

“Isso pode ser tanto uma fraude quanto um erro. Eu não quero fazer um juízo de valor, mas se estes dados não são corrigidos ou retirados, a análise que foi feita depois fica toda comprometida. A análise está comprometida por isso e pelo grande crossover que pode ter existido e a gente não sabe. E a gente provavelmente nunca vai ter esse número porque foi uma pesquisa observacional e a metodologia deles é incapaz de perceber isso. Como falei, seria uma pesquisa que, no máximo, poderia gerar uma hipótese, mas tem todos esses problemas.”

Tessler também chama atenção para o fato dos grupos não terem sido aleatorizados, ou seja, a pesquisa compara o grupo que voluntariamente pegou ivermectina na prefeitura com um suposto grupo que não pegou (suposto pois não há controle nenhum). “Isso leva a graves vieses e correlação entre variáveis. Por exemplo, o grupo que buscou os comprimidos pode ter condições socioeconômicas muito diferentes dos demais, preocupações com saúde e higiene, que podem ser a real causa de melhor desfecho e que não são controladas.”

Além disso, ele diz que há problemas com a população considerada, ora só da cidade, ora das cidades ao redor. “É um estudo metodologicamente muito mal feito que não resistiria a uma revisão por pares minimamente rigorosa. Por isso só consegue ser publicado na Cureus”, declara.

Dados divulgados, não em um periódico científico, mas em um site de autoria anônima, também foram largamente usados como justificativa por quem defendia o uso da ivermectina contra a covid. O site IvmMeta argumenta ter realizado uma metanálise com dezenas de estudos sobre ivermectina, chegando à conclusão que é quase impossível a droga não funcionar contra a covid.

A metanálise é uma comparação entre estudos. Alencar Neto diz que, para a metanálise ser boa, os estudos precisam ser robustos e ter populações e desfechos a serem avaliados parecidos. “O IvmMeta junta estudos sem crivo de qualidade e trata o resultado como se fosse um placar, o que é bizarro do ponto de vista metodológico, além de jogar com a ignorância das pessoas sobre esse tema”.

“Ele simplesmente lista tudo que foi publicado sobre ivermectina, não importa a qualidade. Inclui até artigo de opinião. O pesquisador que ganhou um prêmio Nobel pela ivermectina escreveu um artigo dizendo que, na opinião dele, a ivermectina deveria ser usada contra covid, e o site incluiu isso como uma evidência que a ivermectina funciona! Então ele lista os artigos dando o mesmo peso para todos, e não é assim que a gente faz uma metanálise comparativa.”

Há ainda um erro estatístico crasso, que pode ser um pouco complicado para quem não é do meio científico, mas foi apontado por todos os pesquisadores entrevistados nesta reportagem. No IvmMeta, cada trabalho que conclui que a ivermectina funciona é contado como “positivo”, e os que dizem que ela não funciona, como “negativo”, com cálculo de probabilidade.

A conclusão, ao final, é que a chance da ivermectina não funcionar contra a covid, dados esses resultados, é de uma em um trilhão. “Há diversos vídeos de médicos brasileiros dizendo isso com a boca cheia, usando este site como fonte”, lamenta o professor da Unicamp.

Chama a atenção que o site tem gráficos, tabelas, justificativas, e é bem apresentado, apesar do conteúdo enganoso. “Isso é algo que sempre vemos na pseudociência, ela tenta imitar a linguagem dos artigos científicos”, conclui Tessler.

Ecossistema das revistas científicas

A reportagem de Luiza Caires também descreveu como funciona o ecossistema das publicações científicas (clique para ler mais detalhadamente), e por que, quando bem ajustado, ele é essencial para a ciência médica.

A explica como se dão protocolos científicos como a revisão por pares, que que é feita por especialistas, assim como o autor da pesquisa, para conferir, dentro do texto, se há algum erro metodológico.

A divulgação de preprints – artigos ainda não revisados por pares, que são armazenados em repositórios on-line – aumentou durante a pandemia, já que era uma condição de catástrofe e os cientistas tinham pressa em compartilhar trabalhos e acompanhar os resultados dos colegas, explica Ana Carolina Peçanha Antonio, médica intensivista do Hospital de Clínicas de Porto Alegre e pesquisadora em Integridade em Pesquisa e Metapesquisa.

Ela diz que, na pandemia, muitas pessoas completamente alheias ao mundo das ciências biomédicas repassaram tanto artigos em preprint, quanto os publicados em revistas que antes não recebiam muita atenção, fracos ou com erros.

qualidade do periódico onde a pesquisa foi publicada também é um fator a se questionar. Existem revistas predatórias, que têm uma revisão por pares fraca ou até mesmo inexistente, estando interessadas apenas em receber o valor que o autor paga para publicar ali. “Esse problema é anterior à pandemia, e uma das coisas que o explicam é a pressão, na carreira acadêmica, para que o cientista publique artigos. Ele depende de um volume de publicações para progredir e ter financiamento”, explica Ana Carolina.

Durante a pandemia, por exemplo, revistas de renome como a The Lancet até chegaram a publicar estudos que mais tarde se descobriu serem fraudados. “Mas isso não piora a imagem da revista, já que os estudos foram retirados do ar. Não vivemos em uma redoma protegidos de fraudes”, comenta Alencar Neto. “Revistas menores e que só estão interessadas em cliques podem não fazer o mesmo”, conta.

Ana Carolina Peçanha, médica intensivista – Foto: Arquivo pessoal

fator de impacto de uma revista diz quantas vezes, em média, um artigo publicado nela é citado em outros artigos. A mais famosa da área médica, o New England Jornal of Medicine, por exemplo, tem o mais alto fator de impacto entre todas as revistas científicas, maior que 90.

“Há essa hierarquia das revistas. Em geral, quando escreve um trabalho, você sabe para onde deve mandar. Se é uma coisa muito quente, você vai querer mandar para uma revista muito quente, se não, mandará para uma revista menos prestigiosa. O que traz mais prestígio para uma revista é um processo de seleção de revisão rigoroso e o impacto que ela tem na sociedade”, diz Tessler.

Ana Carolina Peçanha diz também que as revistas menos importantes ganharam algum empoderamento na crise da covid, e até aumentaram seu fator de impacto. “A própria revista tem interesse em publicar artigos com resultados extraordinários, que sejam polêmicos, mesmo que gerem críticas, pois geram citações”, afirma a pesquisadora.

Leandro Tessler, físico e professor da Unicamp – Foto: Arquivo pessoal

Também existe uma análise subjetiva: verificar quem são os autores das pesquisas. “Eles fazem parte de instituições de pesquisa reconhecidas? Eles e suas instituições têm uma produção científica relevante naquela área? Os autores têm algum conflito de interesse que pode interferir, conscientemente ou não, no resultado que o artigo apresenta?”, indica Tessler como perguntas.

Olhando para o artigo em si, embora seja complexo para uma pessoa leiga em ciência entender as falhas metodológicas de um estudo, há alguns sinais para os quais ficar atento, que podem facilitar essa identificação.

Na pesquisa médica, vale ver se estamos diante de um estudo observacional, que tem um nível mais baixo de evidência, ou controlado, que tem nível maior. “Costumo falar, generalizando, que estudos observacionais geram hipóteses e estudos controlados podem confirmar hipóteses”, diz Alencar Neto. “Mas se estamos testando a eficácia de um medicamento, o estudo precisa ser controlado”, declara.

Depois, é preciso verificar se o estudo foi duplo cego, quando nem a pessoa que recebeu a intervenção, nem quem a avalia sabem se ela recebeu o medicamento ou o placebo.

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