Nise da Silveira, Heroína, sim!

Neste artigo, Teresa Vignoli, graduada em Psicologia pela UFRJ e especialista em Gestalt-terapia e em Psicologia Analítica Junguiana, fala sobre o legado de Nise da Silveira e o veto de Bolsonaro à inclusão do nome da psiquiatra no Livro do Heróis e Heroínas da Pátria

Nise da Silveira. Foto: Governo Federal/Reprodução

Heroína com H maiúsculo, Nise da Silveira teve e tem tamanha grandeza que os medíocres, com sua estreita mentalidade, não a compreendem e nunca a compreenderão 

Ainda estou pasma e indignada. Cheguei a ficar com taquicardia, logo que eu soube que aquele ser, cujo nome não merece ser mencionado, vetou a inclusão do nome da amada Nise da Silveira no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria – pertinentemente proposto pela senadora Jandira Feghali, por meio do Projeto de Lei 9262/17.

Por Teresa Vignoli*

Os argumentos para o veto são tão toscos quanto tosca é a pessoa que os colocou.

O despresidente afirmou em seu veto: 

(…) “não é possível avaliar a envergadura dos feitos da médica Nise Magalhães da Silveira e o impacto destes no desenvolvimento da Nação, a despeito de sua contribuição para a área da terapia ocupacional (…). Ademais, prioriza-se que personalidades da história do País sejam homenageadas em âmbito nacional, desde que a homenagem não seja inspirada por ideais dissonantes das projeções do Estado Democrático”.

Como não é possível avaliar os feitos da Nise e seus benefícios para o Brasil? Como????  Só a ignorância extrema e a má-fé podem ser base para essa absurda afronta! Para esse tal despresidente e seus adeptos seria mesmo impossível avaliar, dada a sua falta de conhecimento e de inteligência.

Fui estagiária no Museu de Imagens do Inconsciente, na década de 1970, sob a supervisão da Nise. Foi uma experiência que me marcou profundamente e mudou meu olhar para as pessoas em estado psicótico, mudou meu olhar para o mundo e para mim mesma. Ela foi um exemplo ímpar de amor ao próximo e de dedicação à causa da humanização do tratamento em saúde mental e à causa da defesa dos animais. Foi uma pessoa à frente do seu tempo, que abriu portas para a manifestação da criatividade dos excluídos, dos que estavam nos tristes espaços que eram os manicômios.

Seu trabalho revolucionário teve raiz em sua viva sensibilidade, ao entrar em contato com pessoas com transtornos mentais graves. Nise estava cursando Medicina, quando visitou um presídio em Recife, há cerca de um século. Ali, observou que algumas detentas não seriam criminosas, mas pessoas com problemas psiquiátricos; começou, então, a desenhar-se o seu interesse pelo estudo dessas situações-limite. No ano seguinte à sua formatura, em 1927, foi para o Rio de Janeiro, onde, depois de estudo e estágio em Neurologia, passou em concurso para ser médica psiquiatra, em 1933. Passou a ser residente no então Hospital da Praia Vermelha. 

Em 1936, foi denunciada por uma enfermeira por ter livros marxistas em seu quarto. Era a época da ditadura Vargas, em que os comunistas eram perseguidos – talvez por isso o argumento idiota de que a homenagem seria inspirada em “ideais dissonantes das projeções do Estado Democrático”. Conhecemos bem quem não respeita a democracia, não? Haja hipocrisia!!

Bem, mas vamos ao que importa. Este veto, divulgado nestes dias, gerou uma torrente de protestos e de homenagens à Nise. Um efeito que mostra a força da nossa Heroína, o seu valor imenso, como pessoa, cientista, médica, cidadã.

Nise é o oposto absoluto de tudo o que o inominável representa. Imensamente humana, empática com os oprimidos, com os seres em estado de sofrimento mental, com os animais e com as pessoas que estavam à sua volta. Nise era um gênio e usou a sua genialidade de forma ousada, intensa e corajosa a favor das pessoas alijadas da sociedade, os ditos loucos. Nise tinha uma espiritualidade fina e libertária, que floria nos seus atos de solidariedade, na vida real. 

Nise adorava as Artes. Literatura, artes plásticas, música, teatro, cinema, fotografia, dança harmonizavam-se com seu interesse pela Psicologia e Filosofia. Era amiga de grandes artistas, os melhores da época. Muitos colaboraram com o seu trabalho ou frequentavam seus grupos de estudos. Nise respirava amor, vivia o amor no dia a dia. Pois é do lado dela que estou, que estamos os que sabem do seu valor.

Nise mudou a vida de inúmeras pessoas, Nise construiu um sólido trabalho de pesquisa sobre o psiquismo humano, Nise foi pioneira na humanização do tratamento em saúde mental, Nise fundou um tesouro inestimável, o Museu de Imagens do Inconsciente, um acervo com milhares de obras de pessoas antes abandonadas ao ócio dos pátios dos hospitais psiquiátricos. O Museu hoje é fonte de estudos e de pesquisas sobre os mistérios da psique, é fonte de encantamento para os que se deparam com a beleza e a significância das produções ali guardadas e também expostas em mostras nacionais e internacionais. Seu trabalho teve repercussão internacional, foi admirado por cientistas, artistas, psicólogos, estudiosos de várias áreas do conhecimento.

Nise viveu a vida com integridade ímpar, era de uma ética impecável. Era divertida e alegre, acolhedora, incansável na realização de seus ideais. 

Nise voava e voa agora no Céu do Afeto e da Verdade, Nise ilumina os nossos corações, com a sua largueza de alma. Nise viveu, vive e viverá na memória de cada ato e de cada palavra sua, de cada semente que plantou de sabedoria e amor.

Nise respirava poesia. Por isso, pra fechar esse protesto/homenagem, seguem um belíssimo poema dela e o poema que em mim nasceu, ao lê-lo. O poema da Nise, que tive a honra de traduzir, está no livro Nise da Silveira – caminhos de uma psiquiatra rebelde, de Luiz Carlos Mello, lançado em 2014, leitura fundamental pra quem quiser conhecer sua vida e sua obra.

Voemos com a Nise! Honremos a sua luta!

      I

As montanhas escondem órgãos

gigantescos

quase sempre silenciosos

Quando o Poeta do Espaço 

eventualmente  brinca

sobre seus teclados

Troveja

II

O Poeta do espaço tem à sua

disposição uma infinidade de

licores

Hoje, o que ele irá beber?

Resina de abetos?

Luz azul? 

Ou neve recém-caída?

III

O poeta do espaço

É um andarilho errante

Ele salta de um planeta a outro

De uma estrela a outra

em grandes passadas

ele não carrega nem cajado nem sacola

ele é livre.

IV

Ao anoitecer o Poeta

do Espaço escreveu um poema

Sua pena foi um cirro branco

Sua tinta – pequenas nuvens irisadas

O poema durou apenas um instante

E ninguém o compreendeu.

[Nise da Silveira, julho de 1964] 

À POETA DO ESPAÇO

A tua jornada de Luz continua,

querida amiga e mestra,

querida amiga dos homens, mulheres e animais, 

querida guerreira de espadas de Paz.

Teus passos

entre planetas e estrelas

ecoam em nossos corações.

Acordam,

como o som de antigos tambores,

o pulsar da Vida e da Sabedoria

que vibra,

escondido, em todos nós.

Alquimista Verdadeira,

trabalhaste com fervor até deixar brotar,

das dores do Mundo, das mãos sofredoras,

o Ouro Puro do Ser

que fica como Herança Viva,

eternizada nas imagens criadas

pelos teus queridos artistas.

Vai, andarilha do Universo, 

Vem, pois nesse espaço tudo é Uno.

Vamos, pois estás sempre entre nós,

pulando de estrela em estrela, 

na direção do Sol.                                                            

[Teresa Vignoli, 2007]

*Teresa Teca Vignoli, graduada em Psicologia pela UFRJ e especialista em Gestalt-terapia e em Psicologia Analítica Junguiana, atua como psicoterapeuta e é docente do SatoriGT, centro de formação em Gestalt-terapia de Campinas (SP). Tem proferido palestras sobre vida e obra de Nise da Silveira, convidada por universidades e outras instituições. Há 30 anos, oferece oficinas de escrita intuitiva para psicólogos, educadores e grupos diversos. É autora dos livros de poesia AsaVerso, Chama Verbo e Entre Mundos e são, também, de sua autoria os textos sobre Nise da Silveira