Ucranianos refugiados na Rússia criticam visão ocidental sobre o conflito
Mais de um milhão de ucranianos buscaram abrigo na Rússia desde o início da guerra. Os relatos são de que milícias neonazistas destruíam Mariupol bem antes das tropas russas chegarem.
Publicado 19/06/2022 08:52 | Editado 19/06/2022 18:44
A Aljazira, empresa de mídia do Catar, publicou uma reportagem em que entrevista refugiados ucranianos na Rússia. São fugitivos da guerra ignorados pelo ocidente, mas que relatam um cenário bem diferente do que a mídia ocidental faz do conflito na região do Donbass, por terem vivido a destruição da região, antes da chegada das tropas russas.
“Passamos cerca de duas semanas escondidos no porão. Não havia água, aquecimento ou luz. Lá fora, neonazistas andavam pelas ruas, nos dizendo que isso é tudo por causa do nosso referendo de independência em 2014, e todos vamos morrer aqui – os russos virão e nos massacrarão”, lembrou Tatyana (nome protegido pela reportagem), dos primeiros dias da batalha em Mariupol. A região de maioria russa defendia a independência da região, que era ligada à Rússia até o fim da Segunda Guerra Mundial. Desde 1914, há conflitos com o governo ucraniano pela independência da região.
Enquanto os militares russos são frequentemente culpados pela destruição da cidade, Tatyana vê as coisas de forma bastante diferente. Quando ela fala em “neo-nazistas”, ela está se referindo aos soldados e paramilitares ucranianos que os funcionários do governo russo consideram combatentes de extrema-direita.
“Desde 24 de fevereiro, o lado ucraniano estava bombardeando toda a cidade. Até 16 de março, não vimos nenhuma força russa, apenas os ucranianos patrulhando nossas ruas e montando postos de controle, bloqueando a estrada. Em 16 de março, nosso vizinho gritou para nós que as posições ucranianas haviam sido quebradas. Não hesitamos: meu marido entrou no carro e partimos.” Tatyana agora mora em Moscou com parentes distantes e está procurando emprego.
De acordo com o Ministério de Situações de Emergência, mais de 1,5 milhão de refugiados ucranianos chegaram à Federação Russa desde fevereiro. E muitos têm uma perspectiva muito diferente sobre o conflito daqueles entrevistados pela mídia ocidental, diz a Aljazira.
A primeira onda chegou pouco antes do início da guerra em 24 de fevereiro, quando os rebeldes pró-Rússia das chamadas Repúblicas Populares de Donetsk e Luhansk (DPR e LPR) no leste da Ucrânia anunciaram a evacuação de todas as mulheres e crianças da área antes de um iminente ataque ucraniano. Homens em idade de combate foram mantidos para trás para a mobilização.
Lyubov Gerasimenko, 38, é de Ilovaisk, na região de Donetsk, onde em 2014 foi travado um violento conflito entre forças ucranianas e pró-russas.
“Foi um dia terrível que vou lembrar para o resto da minha vida”, disse ela. “[Quando a batalha começou], eu e meu amigo estávamos no ônibus e pudemos ouvir um estrondo à distância. Quando saímos, ouvimos que nossa cidade natal estava sendo bombardeada por aviões e mísseis. Podíamos ver janelas quebradas, fios pendurados, casas fumegando ao longe.” Após a batalha, a cidade ficou sob o controle da DPR (a República Popular de Donetsk).
Em 19 de fevereiro deste ano, Lyubov e seus filhos mais novos se juntaram à evacuação para a Rússia, pegando um trem para a fronteira e depois para Moscou. Ao chegarem, os refugiados passam um curto período de tempo em tendas temporárias na fronteira antes de serem transportados de ônibus por todo o país.
Os abrigos de refugiados
Abrigos de refugiados foram criados em todo o país, em pensões, hotéis e acampamentos de verão para crianças. Lá, eles são abastecidos com produtos de higiene pessoal e roupas limpas. Animais de estimação feridos são vistos por veterinários e crianças têm aulas em escolas locais.
Mas alguns desses refugiados se queixaram de se sentir presos nos campos com apenas uma ajuda mínima do governo. Segundo a reportagem, essas críticas são mal vistas pelo governo russo, que acaba acusando as organizações que cobram melhores condições para os refugiados de “agentes estrangeiros”.
“No começo, ficamos com nossos parentes em Moscou, mas era muito desconfortável juntos e nos ofereceram para ficar em um centro de refugiados. As crianças precisavam ir à escola e tudo parecia organizado lá”, disse Lyubov à AlJazira.
“As condições no centro não eram ruins, mas não podíamos sair ou ir trabalhar. Nossos amigos e parentes não tinham permissão para nos visitar, e também não podíamos visitá-los como convidados. Se saíssemos, teríamos que estar de volta à noite ou seríamos verificados. O acampamento ficava em algum lugar na floresta, então teríamos que caminhar meia hora pela floresta para chegar à civilização. Fomos alimentados, mas o governo não [nos deu dinheiro] por quatro meses e não podíamos trabalhar. As crianças queriam comer frutas e nós não tínhamos dinheiro. Então, no final, decidi sair e encontrar um emprego.”
O governo prometeu 10.000 rublos [cerca de US$ 170] para os refugiados, mas este valor só está sendo distribuído consistentemente em algumas poucas localidades após um longo procedimento burocrático. Acredita-se que não havia dinheiro suficiente no orçamento para alocar o valor para a grande maioria de refugiados que chegou.
Svetlana Gannushkina, cofundadora do Comitê de Assistência Cívica, uma das organizações que trabalham com recém-chegados, é mal vista pelo governo, depois que assinou uma carta aberta condenando a agressão militar da Rússia e criticar a falta da ajuda para os refugiados. Apesar disso, ela desmente notícias disseminadas no ocidente contra a Rússia.
O governo russo foi acusado de realocar à força civis de territórios ucranianos ocupados, reassentando-os em áreas remotas da Rússia ou usando-os para filmar vídeos de propaganda. Gannushkina disse que não encontrou casos de pessoas levadas contra sua vontade, embora elas não tenham muita escolha diante dos bombardeios.
“Mas deve-se dizer que muitos deles queriam chegar à Rússia – não apenas do Donbas, mas também de outras áreas de língua russa da Ucrânia.”
Tatyana sente a mágoa pelo que considera discriminação contra os falantes de russo na Ucrânia e a omissão do Ocidente no início do conflito. Quando trabalhava em Mariupol, ela ouvia reclamações por falar russo.
“Os governos europeus fizeram isso com nossa cidade. Eles são responsáveis porque forneceram as armas e porque nos humilharam e à região de Donetsk por oito anos”.
Gannushkina critica um suposto processo de “filtragem” dos refugiados. Nas passagens de fronteira, testemunhas relataram ter sido interrogadas, tendo suas impressões digitais tiradas e o conteúdo de seus telefones celulares e eletrônicos verificados, enquanto os soldados seguravam seus passaportes. Embora a maioria seja liberada rapidamente, ainda não está claro o que acontece com aqueles que não são, segundo ela.
Como a região é fortemente ocupada e defendida pelas milícias de extrema-direita, além de ser sede de organizações que militam contra a independência e atacam os falantes de russo, as defesas russas precisam estar atentas a eventuais infiltrados entre os refugiados. Alguns refugiados têm que se despir para exibir tatuagens que possam vinculá-los aos extremistas.