Sete de Setembro sofre mais um sequestro autoritário com bolsonarismo

“O sequestro da Independência – Uma história da construção do mito do Sete de Setembro” mostra a mitologia forjada para silenciar as lutas populares no Brasil.

A identidade visual do governo Bolsonaro para o Bicentenário da Independência enfatiza o gesto bélico e fálico da arma empunhada por D. Pedro I.

O livro “O sequestro da Independência – Uma história da construção do mito do Sete de Setembro, recém lançado pela Companhia das Letras, é um esforço para antecipar um debate sobre o bicentenário da independência do Brasil, especialmente no momento em que ele é ameaçado de apropriação política por Jair Bolsonaro.

A antropóloga social e professora da USP, Lúcia Klück Stumpf, falou com a reportagem do Portal Vermelho sobre sua pesquisa. É autora do novo livro, com Lilia Moritz Schwarcz e Carlos Lima Junior, que já trabalharam juntos na obra A batalha do Avaí (2013).

Transformar a efeméride do Bicentenário da Independência do Brasil numa celebração do universo paralelo de desinformação e fake news do governo de Jair Bolsonaro não é algo inédito. Dom Pedro I usou a data para reduzir conflitos com as elites paulistas, ainda em 1823, assim como as mesmas elites usaram para afirmar um falso protagonismo no centenário da Independência em 1922. A ditadura militar jogou fumaça sobre a Guerrilha do Araguaia e as guerrilhas urbanas de esquerda, em 1972. 

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Todos estes “sequestros”, entendidos como deslocamentos e substituições de sentido, são meticulosamente descritos no livro, a partir da análise da trajetória de uma peça pictórica de Pedro Américo, o Grito do Ipiranga, exposto no Museu Paulista, desde 1922. O quadro mostra uma cena idílica, sem conflitos, centrada na aristocracia europeia masculina e sem participação popular para silenciar batalhas brutais que brasileiros de todas as cores lutavam por todo o país em nome da ruptura política com Portugal.

A história oficial consagrada nesta pintura também é geograficamente interessada. A monarquia força um protagonismo paulista inexistente na independência, mas que tem numa pintura acadêmica situada na periferia rural de São Paulo seu mito e imaginário fundadores.

Como é característico da pesquisa dos autores, o livro traz vasto material imagético sobre o evento libertador da nação, sendo que a maioria pouco se firmou no imaginário nacional, enquanto o quadro de Pedro Américo sobre o “Grito do Ipiranga” foi se afirmando nos livros didáticos. A obra traz elementos para a análise da formação da identidade nacional.

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O Grito do Ipiranga, óleo de Pedro Américo

Cada presente histórico narrou o evento conforme seus interesses. A D. Pedro I interessava amainar as tensões do Segundo Reinado e rivalidades entre as elites do Rio de Janeiro e São Paulo. A riqueza econômica paulista precisava definir seu lugar na construção ideológica da nação, trazendo ao centro os campos do Ipiranga, o desbravamento dos bandeirantes e o marco da Arte Moderna Brasileira. A ditadura vivia seu momento mais instável de violência e endividamento, mas o livro vai além em seu percurso, analisando como a ditadura se utilizou da efeméride dos 150 anos, em 1972, para amainar suas instabilidades. Agora, o governo de Bolsonaro faz bravatas golpistas a partir do chamado às celebrações do Bicentenário.

“Percebemos que até o segundo reinado, a década de 1840, não era o Sete de Setembro que era incensado pela monarquia. Em grande parte do primeiro reinado, até a abdicação de Pedro I, essa data ainda que comemorada, dividia atenções com outras datas, como o 12 de outubro, que é o dia da aclamação do Imperador e o primeiro de dezembro, dia da coroação, ocorridas no Rio de Janeiro”.

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A proclamação da Independência por Francois-René Moreau

Ela cita a primeira pintura, já em 1844, no início do reinado de Pedro II, que relembra e cita a proclamação da independência, feita pelo artista francês Francois-René Moreaux. “A construção da data não parte do Sete de Setembro, aclamada como uma data nacional, mas foi sendo construída ao longo dos anos pela própria monarquia”.

A pintura de Pedro Américo surge no último ano antes da proclamação da República, o que gera uma série de embaraços ao quadro, que fica por muitos anos, depois de pronta, enrolada e guardada nos porões da Faculdade de Direito do Largo São Francisco. “Não interessava ao novo regime exaltar uma cena em que o protagonismo era reservado à monarquia, e fazer a ode a um evento protagonizado pelo Império, regime récem-deposto. Enfim, uma pintura que ficou por muito tempo escondida aos olhos do povo brasileiro”. 

O sequestro paulista

Indo buscar quando a pintura vai se fixando na memória nacional, percebe-se que foi através dos livros didáticos, no centenário em 1922. Lúcia conta como se deu a disputa entre Rio e São Paulo. Epitácio Pessoa, então presidente, comandou as festas e organizou uma exposição internacional com convidados do mundo inteiro, que montaram suas mostras de modernidades no Rio de Janeiro. O Museu Histórico Nacional, recém-criado, fez um concurso para que artistas tentassem formular novas imagens da independência. Muitas obras foram vencedoras, mas também não se fixaram na memória.

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São Paulo conseguiu fazer o primeiro sequestro da data para si, a partir do esforço e atuação de Afonso Taunay, diretor do Museu Paulista, que faz do quadro um grande ícone nas comemorações. Em 1922, a pintura de Pedro Américo vira peça de tapeçaria, estampa de bandejas, além de selo, cartão postal, e passa a fazer parte do cotidiano, entrando na casa dos brasileiros.

O Museu Paulista

O sequestro paulista se expressa também na Semana de Arte Moderna, quando a efervescência cultural estava por todo o país, com forte presença no Rio de Janeiro, mas é em São Paulo que se firma a efeméride. Outra distorção ainda maior ocorre conforme São Paulo se apropria da data da Revolução de 1930. 

Lúcia explica que, nesses primeiros anos de República, no início do século XX, São Paulo teve um grande protagonismo na economia. Foi palco de grandes greves que fomentaram o nascimento do Partido Comunista do Brasil, por exemplo, também em 1922. “Então, São Paulo já disputava um centro político e econômico com o Rio de Janeiro. Com essas elites econômicas bem estabelecidas, passa também a disputar esse centro cultural de formação de uma intelectualidade. É isso que vemos nesse plano de construção e reinauguração, em 1922, do Museu Paulista”, conta. 

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Nesse mesmo momento, Taunay constrói a visualidade do mito bandeirante, lembra ela. Essa construção de um mito heroico do papel dos bandeirantes na história e no desenvolvimento do Brasil foi fruto dessa operação realizada no centenário da independência. Foram vários operações para forjar o papel que São Paulo cumpriu na construção do Brasil.

A independência não teria exatamente relação com São Paulo ou o Ipiranga. Ela poderia ter relação com outra geografia. Nas décadas de 1820 e 1830, ainda não era o Ipiranga o marco central. Por muito tempo se valorizou, sobretudo, o momento em que D. Pedro I chegava ao Rio de Janeiro dessa viagem, e era então aclamado pelo povo como imperador. Então, o momento do reconhecimento do povo que ocorreu no Rio de Janeiro teria sido o gesto inaugural da nação. São essas as primeiras imagens da independência pintadas por Debret, e pintores da corte de Pedro I.

A aclamação do Imperador, por Jean-Baptiste Debret

“Mas foi quase por um acaso que Pedro I tenha sido encontrado às margens do Ipiranga, no momento em que recebeu a notícia sobre as exigências das cortes de Lisboa para que voltasse a Portugal. Tudo isso é construção que vai se dando em diferentes momentos, a depender dos interesses de quem vai escrevendo a história como algo de mão única”, explica ela.

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Portanto, a data poderia ser outra, também. Para construir-se o mito do Sete de Setembro, se silencia todas as lutas e guerras da independência, que duraram muito mais tempo, de 1820 a 1825, guerras pela independência que aconteceram pelo país inteiro. Guerras ocorridas por exemplo na Bahia, primeiro local que declarou o Brasil independente e proclamou Pedro I, Imperador do Brasil. Isso ocorreu na Vila de Cachoeira da Bahia, em junho de 1822, portanto antes do 7 de setembro.

Até hoje, a bandeira do Piauí traz a inscrição de 13 de março de 1823, que é a data da Batalha de Jenipapo, ocorrida no Piauí, contra tropas portuguesas, e, até hoje, é o feriado estadual do Piauí. Mulheres como Maria Quitéria, Joana Angélica e Maria Filipa, também foram celebradas pela luta pela independência e esquecidas no Sete de Setembro. 

A batalha de Jenipapo, no Piauí

Assim como negros. Diz-se que um dos primeiros mortos nas batalhas pela independência foi Manoel Soledade, um jovem negro baiano. “Todos são rememorados no livro com imagens que foram executadas deles, que não ganharam no nosso imaginário a disputa pelo mesmo lugar firmado pela pintura de Pedro Américo”.

É importante notar o quanto o Sete de Setembro é um gesto que dá muito mais protagonismo ao imperador do que à aclamação. O grito do Ipiranga foi algo que ele fez sozinho, com sua entourage civil e militar, diferente da aclamação em que o protagonismo é reservado ao povo. “Tem muito desse jogo de o quanto se dá o protagonismo ao personagem e o quanto se dá o reconhecimento ao povo, sobre seu papel”.

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O sequestro militar

Em 1972, se comemoraram os 150 anos da independência do Brasil nos momentos mais duros da ditadura militar do governo de Garrastazu Médici. 1972 é também o início das repressões do Exército à Guerrilha do Araguaia, organizada pelo PCdoB no interior do Pará. O governo precisava abafar essas resistências e essa guerra civil, que insistiam em existir.

Foi o chamado Carnaval da Independência, que já tinha o mote dos 150 anos, que foi o primeiro evento transmitido a cores pela TV. “Teve a Taça Independência de Futebol, que de forma bastante curiosa, para não dizer outra coisa, vários países foram convidados para essa minicopa de futebol, e a final se deu entre Brasil e Portugal, com o Brasil se sagrando campeão”. 

Quando se representa a independência, ela é uma cena idílica. A própria ditadura encena esse clima pacífico, num dos seus momentos mais violentos. “É nos momentos de crise e instabilidade que se torna necessário aos governos tentar se fixar num passado sempre idealizado, criado a partir dos discursos do presente”, diz Lúcia.

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A pintura surge às vésperas da proclamação da República. “Sabemos que o reinado de Pedro I foi bastante sanguinolento, reprimiu uma quantidade enorme de rebeliões, lutas, revoltas populares e regionais. Tanto, que era chamado de O açougue dos Braganças”, afirma a antropóloga. 

A ditadura se valeu disso para dar esse sentido de que no Brasil é um lugar pacífico, onde não há lutas e as coisas se resolvem sem guerras.

Paralelos do Bicentenário

Algo que motivou os escritores a ser céleres com a escrita do livro foi o uso que o governo Bolsonaro fez do Sete de Setembro, em 2021. Uma primeiro teste para um golpe de estado, na opinião deles. Há de novo esse sequestro militar da cena de Pedro Américo. A logomarca do bicentenário criado pela Secretaria de Comunicação é a empunhadura de Pedro I segurando a espada. 

“É o resgate do momento bélico, militar, da luta, de um protagonismo masculino, esse gesto fálico de erguer uma espada, que é parte do discurso misógino e machista que este governo se orgulha de ter”, resume.

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Ela explica que o governo Bolsonaro tenta se valer disso para fazer um uso autoritário. “Para colocar em risco os processos democráticos e o direito à Constituição e ao processo de transição democrática, que esperamos que haja nesta próxima eleição”.

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