Filme: Escravos de Jó: Decifra-me ou Devoro-te

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Patrícia Helena Carvalho Holanda*

O filme “Escravos de Jó” surpreende o espectador, colocando-o diante do breviário das angústias e misérias do ser humano, através do mito de Édipo, uma história dos acontecimentos que são eternos porque se repetem, nas máximas funções da vida: amor, nascimento, morte, maternidade, paternidade. Isso se desenrola numa trilha da luta de Eros contra a pulsão de morte.

O enredo do filme apresenta um certo aspecto mítico, ao apresentar a sua concepção original da compreensão acerca da escravidão, através de uma obra aberta. Acentua a fragilidade humana, que reside na ânsia de busca incessante de conhecer o que está “fora de si”, em detrimento do conhecimento da própria essência, “conhece-te a ti mesmo”, conforme consta no Templo de Delfos, desde 650 a.C. Convida o espectador a olhar para si, ao demonstrar o quanto somos constantemente aniquilados pela ignorância de não sabermos quem, de fato, somos. Desse modo, a dinâmica do filme se movimenta em torno da função primordial desse processo para um saber próprio, de modo a proporcionar construções e desconstruções, não se inibindo em cutucar feridas e ignorar moralismos.

Desde o início do filme nos deparamos com algumas indagações. Dentre elas, destaco: “quem somos nós? por qual motivo nos deixamos escravizar?” A excursão da mina desativada, situada numa caverna, leva-nos a associá-la à volta ao útero de onde viemos.  Na caverna visitada, era feita a extração do ouro, à custa do trabalho dos negros escravizados trazidos da África, que dominavam técnicas de extração de ouro e pedras. O guia, ao narrar a história, ressalta que muitos negros morreram de depressão (o banzo, devido à saudade da terra de origem) e em decorrência das condições de trabalho insalubres e das árduas jornadas de trabalho. E, apesar de todos os esforços de luta, ficaram esquecidos ou mesmo invisíveis na história de Ouro Preto.  Se, por um lado, o filme pontua aquilo que nos escraviza, ao fornecer uma explicação da realidade, por outro lado, recorre ao mistério, ao texto bíblico e ao sobrenatural, ou seja, exatamente àquilo que não se pode explicar, que está fora do plano da compreensão humana.

Em seguida, nos deparamos com o protagonista do filme, Samuel (Daniel Passi), jovem que estuda cinema, filho de pais adotivos, em busca de produzir um filme sobre a arte barroca de Minas Gerais, defrontando-se, nesse trajeto, com significativos trabalhos realizados por escravos que dominavam técnicas, instrumentos, ferramentas específicas para trabalhar com a pedra sabão. Na busca de conhecer o que está “fora de si”, levado pelas intempéries da vida prática, parece ocorrer um distanciamento da sua autoescuta, voltando-se para o mundo externo, evidenciando que somos constantemente aniquilados pela ignorância de não sabermos quem somos.  Daí por diante, somos lançados a acompanhar uma empreitada audaciosa do seu protagonista, situando-o no lugar vago deixado pela filosofia, ocupado pela descoberta de Freud (a existência do inconsciente, um domínio novo do saber, que abriu o século XX) que o filme traz para o espectador, para lembrar aquilo que é impensável. Isso ocorre à medida que somos conduzidos a decifrar a conduta do ator principal como um criptograma, a ser interpretado como os exegetas interpretam os textos sagrados. O filme atualiza o mito do Édipo, lançando mão de elementos do teatro grego, onde são expostos todos os detalhes íntimos da constituição psíquica do ser humano. Assim, apresenta-nos um personagem atormentado, que é inocente, culpado, lúcido e cego, que, constantemente, debate-se com cada parcela de sua história, pondo em evidência suas articulações.

Desse modo, o personagem principal segue em busca de decifrar o próprio enigma da sua existência. Uma dessas empreitadas ocorre através do contato com um sobrevivente do holocausto, que ressalta a importância de um judeu conhecer sua história. Nessa ocasião, seu interlocutor, Élifas Lévi, (Everaldo Pontes) afirma peremptoriamente: “todo judeu deve conhecer a sua história”. A partir desse momento, ao sair em busca de si mesmo e da história da sua família, ele descortina a história do holocausto.

Nessa busca incessante, assistimos ao protagonista colocar-se num estado de abandono aos seus pensamentos, encontrando situações reais e imaginárias, mergulhando em camadas povoadas de sonho, de símbolos, de máscaras e de emblema, que apontam para um mundo familiar e desconhecido. A sua atenção é tomada por imagens do holocausto e fotos de partes do corpo da moça palestina, sua paixão Yasmina (Daniela de Jesus), que imprime e cola na parede, oferecendo ao espectador uma visão de Eros e Thanatos. Por outro lado, convive com as memórias do encontro casual com a figura materna de duplo rosto, ora amante, ora temível, até então desconhecida, que exerce um fascínio que o próprio inconsciente executa sobre o ego e o remete a experienciar o mito grego de Édipo, rei de Tebas, ao desposar a sua própria mãe cumprindo a previsão do oráculo, sem o saber. Sofre como Édipo, ao julgar que o impossível foi feito para não agir de forma tão culpável e que só o destino cego o tinha envolvido em tal imbróglio. Afinal, “viver o mito” envolve a experiência de conhecimento de si mesmo, como estava escrito no templo de Delfos. Experiência que deve ser compreendida, mais voltada para o sentido naturalista, do que no âmbito da experiência religiosa. Daí a importância de nos libertarmos do que nos escraviza.

O filme “Escravos de Jó” não parece feito para ser agradável, mas finaliza aberto ao prisma do universo simbólico, como admirável convite a pensarmos na atualidade dos mitos. É um filme desconfortável e, ao mesmo tempo, esperançoso, ao convidar o espectador a visitar o seu templo de Delfos, deixar cair suas máscaras, decifrar seus enigmas e olhar para sua consciência e trabalhar para conquistar sua alforria, desafio que só pode ser aceito para quem não tenha medo daquilo que não é espelho.

*Psicóloga, mestra, doutora em Educação pela UFC e pós-doutorado na área de concentração de Desenvolvimento Profissional Docente pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da UNB. Cursou o estágio sênior, bolsista-CAPES, na Universidade de Lisboa.