Cresce movimento contra perseguição judicial a Cristina na Argentina

Reações contra lawfare vêm de governos vizinhos, de entidades de direitos humanos, do próprio governo e das universidades, artistas e personalidades, em defesa da democracia e da vontade popular.

Imagen: Télam

Sob o lema “Lawfare põe em perigo nossa democracia”, organizações de direitos humanos e a Secretaria Nacional de Direitos Humanos denunciaram em entrevista coletiva na quarta-feira (14), a “grave situação institucional” que hoje impede a Argentina de celebrar plenamente o período de democracia mais longo de sua história: 10 de dezembro, o Dia da Restauração da Democracia no país, que marca os 39 anos do fim da última ditadura. 

Lawfare é o termo internacional para “perseguição judicial” contra adversários políticos ou comerciais, com apoio da mídia. Por meio de intensa disputa judicial, com acordo entre parte interessada e juízes, se busca a prisão ou destruição de reputação e patrimônio de um terceiro. É o que se acusa estar acontecendo com a vice-presidenta da Argentina, Cristina Kirchner, condenada a prisão e perda de direitos políticos.

“As práticas do Judiciário hoje colocam em risco nossa democracia”, declarou o secretário de Direitos Humanos, Horacio Pietragallla Corti, no início da apresentação no Museo Sitio de Memoria.

Pietragalla se referia à evidente conivência de juízes, promotores, opositores e empresários em manobras legais para condenar Cristina. “O contexto nos faz refletir e ficar atentos”, definiu. Ele faz referência ao escândalo dos “chats vazados”, conversas que revelam o vínculo íntimo entre diretores do Grupo Clarín, maior conglomerado midiático do país, um ministro macrista, um ex-agente de inteligência e quatro juízes, um deles responsável pelo processo que condenou à vice-presidenta. 

As práticas de setores da Justiça “põem hoje em risco a continuidade democrática, e afetam o pleno exercício institucional”, explicou no início da sua apresentação. Acompanhando-o na mesa dos palestrantes estavam o ganhador do Prêmio Nobel da Paz Adolfo Pérez Esquivel; a presidente de Familiares de Desaparecidos e Detidos por Motivos Políticos, Lita Boitano; Taty Almeida, da Linha Fundadora Mães da Praça de Maio; e Mabel Careaga, da Comissão para os 12 da Santa Cruz.

As reações à acusação de lawfare têm vindo de diversas direções. Desde manifestações de governos vizinhos que demonstram preocupação com o modo como estas manobras judiciais vêm se convertendo em verdadeiros golpes de estado contra governos de esquerda. O governo federal também solicitou investigação sobre seus funcionários públicos envolvidos no caso, por não cumprimento de deveres e recebimento de favores.

Foi pedido julgamento político dos quatro juízes no Conselho da Magistratura, entidade que nomeia e regulamenta as faculdades e os funcionários do Poder Judiciário. Por outro lado, o bloco da coalizão do presidente Alberto Fernández, a Frente de Todos, apresentou um pedido de julgamento na legislatura da cidade de Buenos Aires aos funcionários municipais envolvidos no episódio: o ministro de Justiça e Segurança de Buenos Aires, Marcelo D’Alessandro, e o Procurador-geral da capital argentina, Juan Bautista Mahiques.

Na renomada Universidade Pública de Buenos Aires (UBA), está em processo um pedido coletivo por um julgamento acadêmico para o juiz federal Julián Ercolini, professor e diretor de uma especialização na faculdade de Direito. Já foram reunidas mais de 10 mil assinaturas na instituição.

Com a denúncia das organizações de direitos humanos como marco, uma série de ações foram anunciadas com o objetivo de desmascarar operações judiciais orquestradas por interesses econômicos e políticos. Também destacaram a necessidade de manter o estado de alerta e a capacidade transformadora da mobilização popular. 

O povo da rua conseguiu parar o 2 x 1″, lembrou Taty Almeida, aludindo à tentativa -durante o governo de Mauricio Macri- de reduzir os tempos de pena dos repressores. “O povo na rua pode distorcer uma decisão injusta como a desta parte judicial”, enfatizou. Referiu-se à necessidade de sensibilizar e fazer “um apelo à população” face ao “perigo de um Poder Judicial que sobrepuje a vontade popular”.

A leitura de um documento assinado por mais de quarenta organizações de direitos humanos de todo o país, encabeçadas por Taty Almeida e Mabel Careaga, sintetizou a vocação democrática pela qual foram definidos os anúncios, destinados a denunciar o lawfare e a perseguição contra a vice-presidente, que também afeta “toda a sociedade”, destacou Pérez Esquivel.

A luta do movimento de direitos humanos na Argentina, sintetizada nas políticas de Memória, Verdade e Justiça, “com mais de mil genocídios condenados e com 130 netos restaurados”, sustenta a afirmação. A volta de Lula à presidência do Brasil –depois de escapar do processo legal que o manteve detido por dois anos– e os acontecimentos pelos quais passa o Peru completaram a caracterização do processo.

“Isso põe em risco a continuidade democrática”, enfatizou Pietragalla na Argentina, e lamentou: “Temos que denunciar que, com esses acontecimentos, a democracia perdeu um valor muito importante, que é a legitimidade do Judiciário”. A sentença da vice-presidente foi definida no documento como “uma vergonhosa decisão da Justiça Oral da União 2 que visa cercear seus direitos políticos e de grande parte da sociedade que compõe seu eleitorado”. 

Mas Pietragallanão se referiu apenas ao julgamento contra ela, mas também – e talvez centralmente – ao atentado contra a ex-presidente, sobre o qual a investigação processual ainda não avançou. A esse respeito, o documento das entidades especificava: “Diante desse ato de violência política, o setor mais questionado da Justiça Federal optou por enviesar a investigação e não aprofundar as pistas, cortando assim a possibilidade de esclarecer e mostrar toda a população que são os responsáveis ideológicos ou instigadores desta tentativa de assassinato”.

Viagem ao Lago

Entre as ações previstas no anúncio, estava um pedido de audiência ao Supremo Tribunal Federal e um pedido ao Conselho da Magistratura para investigar a escandalosa viagem ao Lago Escondido de magistrados, funcionários e empresários que tem sido o estopim para todas as acusações de parcialidade do judiciário. Também anunciaram seu apoio ao pedido de julgamento acadêmico do juiz Julián Ercolini, e ao chefe do governo de Buenos Aires, Horacio Rodríguez Larreta, para remover os funcionários que participaram da viagem ao Rancho de Joe Lewis, um dos milionários envolvidos.

O documento é muito claro”, disse Pérez Esquivel. “A democracia está em risco no país, mas também em todo o continente”, acrescentou sobre o ocorrido no Peru, onde “o presidente (Pedro) Castillo foi derrubado com os mesmos mecanismos de lawfare e instabilidade democrática”, enquanto o país convulsiona com protestos e violência repressiva.

Entre os que apoiaram a iniciativa estavam representantes das Avós da Plaza de Mayo, HIJOS Capital, Asociación Buena Memoria, Liga Argentina de Direitos Humanos e, entre outros, Madres en Lucha –contra o gatilho fácil–. Também estiveram presentes a deputada portenha da Frente de Todos Victoria Montenegro, e a atriz Lola Berthet, atual diretora do Centro Cultural Haroldo Conti.

Ao final, a presidente da Associação Boa Memória, Gabriela Alegre, afirmou: “Se o Tribunal se recusar a nos dar a audiência, se não pudermos avançar com a investigação que vamos pedir ao Conselho Judicial, se as instâncias institucionais não prosperarem, será hora de sair às ruas. A democracia está em risco e foi muito difícil para nós alcançá-la”. 

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