Crise Yanomami é causada por “tempestade perfeita” de Bolsonaro

Epidemiologista da FioCruz-AM defende que o governo Lula terá um desafio para combater as inúmeras ações forjadas pelo bolsonarismo contra populações indígenas.

Imagem ilustrativa de indígenas Xavante. Acervo da Agência Brasil.

O dia 21 de janeiro de 2023 entrou para a história por sensibilizar o Brasil e o mundo para mais uma tragédia sanitária e ambiental contra o povo Yanomami. Também por revelar o tamanho da omissão do governo Bolsonaro, ou seu plano premeditado de extermínio indígena.

Após anos de várias denúncias formais sobre o que estava acontecendo, isto só foi possível porque o presidente Luis Inácio Lula da Silva começou seu governo indo a Roraima, com seus ministros, para verificar in loco a situação. Acabou revelando o estímulo do Estado à mineração ilegal em terra demarcada, com invasão de 20 mil garimpeiros.

O epidemiologista da Fiocruz-Amazônia, Jesem Orellana, acompanha pela instituição a situação sanitária de populações indígenas e participou das denúncias, em 2019, junto com organismos como a Unicef e o Instituto Socioambiental. Naquele momento, de cada 10 crianças, 8 apresentavam desnutrição crônica, malária e parasitismo. 

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“Não é problema de diagnóstico e conhecimento, mas de abandono”, resume Jesem, em entrevista ao Portal Vermelho. “Bolsonaro só foi agir em defesa de indígenas atingidos pela covid-19, depois da enorme pressão da justiça e da sociedade”.

Tempestade perfeita

O epidemiologista diz que, embora a questão territorial e a tensão na região sejam históricas, essa “tempestade perfeita” tem sido formada por Jair Bolsonaro por “uma combinação letal de negligência, intolerância sociocultural e desprezo pela vida”. 

“Nada diferente pode explicar uma calamidade sanitária e socioambiental como esta que recolocam o Brasil em posição deplorável de violação de direitos humanos e descarada degradação ambiental”, afirmou.

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A desarticulação do programa Mais Médicos, que garantia a presença de profissionais especializados em regiões remotas do país, é parte deste conjunto de medidas propícias à formação de uma tragédia sanitária. O desinvestimento nos serviços públicos dedicados àquela população também demonstra o objetivo do governo.

“Esse genocídio se encaixa perfeitamente na qualificação do Estatuto de Roma, premeditado e planejado pelo governo federal, na medida em que abre mão de atender essas populações”.

Não é por acaso que Bolsonaro coloca Ricardo Salles no Meio Ambiente, ou Damares Alves “num ministério que ninguém sabe a que veio”. “Ou ainda o Marcelo Xavier, delegado da Polícia Federal, que foi indicado para a Funai [Fundação Nacional dos Povos Indígenas]”, destaca ele, referindo-se a gestores escolhidos para desmontar as instituições que comandavam, para impedir seu trabalho objetivo.

Jesem também ressalta que o garimpo ilegal contamina as mentes dos jovens indígenas, ao levá-los para a vida fácil da mineração ilegal. “Esses jovens passam a consumir e levar para as aldeias refrigerantes e outros ultraprocessados e se tornam reféns dessa dupla carga de doenças nutricionais, com crianças obesas, mas desnutridas e vulneráveis à doenças”, esclarece.

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Simbolismo de novo governo

Jesem considera que o aspecto simbólico do presidente Lula e seus ministros irem a Roraima, onde o governo estadual é abertamente antiindígena, “configura em contundente gesto em favor dos brasileiros, independentemente da etnia ou credo”. “Em outras palavras, é um gesto humanitário que devolve o Brasil à cena internacional de defesa da Declaração Universal dos Direitos Humanos”, diz ele.

Tendo trabalhado com dezenas de etnias da Amazônia e do Centro-Oeste, Jesem não se recorda de ter visto algo tão dramático. “Ver uma criança dessa, é ver alguém que já está morto, pois o óbito apenas a livra do sofrimento contínuo da fome”, afirmou.

A atitude do governo Lula foi tão contundente, que Bolsonaro apelando mais uma vez ao argumento da “armação da esquerda”, dizendo que são venezuelanos que vêm para morrer no Brasil. Jesem observa que o ex-presidente costuma dizer que fez milhares de atendimentos, nem nunca especificá-los ou provar documentalmente. “Há uma grande omissão expressa nas inúmeras ações do Ministério Público Federal contra o governo Bolsonaro”, acusa.

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Medidas emergenciais e permanentes

O sanitarista considera que as medidas imediatas tomadas pelo Governo, após a visita, são essenciais. “A atual gestão precisa manter essas medidas assistenciais, sociais, de sustentabilidade ambiental e nutricional no médio e longo prazo, sob a pena de tornar esse conjunto de louváveis medidas em deplorável populismo sanitário”, recomendou.

Segundo o Ministério da Saúde, do Desenvolvimento Social e dos Povos Indígenas, foram distribuídas, desde sábado (21), 80 toneladas de cestas de alimentos adaptados para a realidade local, assim como foi feita a retomada de serviços que foram desmontados, com atendimento em saúde para combate à desnutrição e desidratação. O desafio do transporte numa área bastante inacessível tem sido enfrentado com transporte aéreo. O governo também tem planejado políticas para retomada de lavouras e criação de animais nas aldeias, assim como que fazer as políticas de assistência social chegarem mais próximas dessa população.

O desafio maior, no entanto, são as medidas de médio prazo, como o combate à contaminação de rios e solo e fazer tudo isso respeitando a cultura originária de povos que muitas vezes encontram-se isolados em termos territoriais e linguísticos. 

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Para Jesem, a fim de atingir esta meta, é preciso rigor na fiscalização e punição dos responsáveis pela invasão e degradação ambiental de terras indígenas protegidas por lei. “Não há como supor saúde e qualidade de vida sem conservação dos territórios desses povos, tão importantes para a humanidade e não apenas para os indígenas”, defendeu.