Como a profusão das Fake News sedimentou o caminho para o negacionismo genérico

Negacionismos são discursos e afirmações que confundem, relativizam, negam, instauram controvérsias e difundem teorias da conspiração

Nos últimos anos, o conceito de negacionismo ganhou uma repercussão até então inédita nos debates na cena pública brasileira.  Não somente no Brasil, mas em termos mundiais, o termo foi objeto de manchetes em todo mundo, principalmente, quando a humanidade assistiu perplexa aos efeitos de uma pandemia que paralisou nações inteiras. Embora não tenha surgido nos últimos anos, a prática negacionista foi alçada a uma posição de destaque com o crescimento das plataformas digitais e o fortalecimento da extrema-direita em diversos países.

O conceito de negacionismo foi cunhado no final do século XX com base em práticas e discursos que, desde o final da Segunda Guerra, negavam um dos maiores crime contra a humanidade: o Holocausto. A crescente negação daquele episódio e as tentativas de abrandamento de seus resultados mobilizaram intelectuais, jornalistas e políticos a fim de denunciarem as falácias de seus negadores.  Assim, a marca original que o termo enseja é a associação com a barbárie, a desumanização, a normalização do mal e o profundo desprezo à vida.

O historiador francês Henry Rousso nos chama atenção que tais práticas se caracterizam pela banalização de episódios limites, como foi o Holocausto que, muitas vezes são colocados frente a outros acontecimentos e apresentados a partir de hierarquizações valorativas que acabam por relativizar e amenizar seus efeitos. Tais estratégias buscam fazer desaparecer as especificidades de cada acontecimento. Assim, tal prática corrói o escopo do crime porque, ao situar o episódio entre a banalização e a negação, estabelece sobre ele comparações assimétricas em realidade totalmente distintas.

Para exemplificar o procedimento negacionista basta lembrarmos como, aqui no Brasil, uma das estratégias utilizadas para dizer que Ditadura de 1964 foi “branda” é colocá-la em perspectiva com outras ditaduras do Cone Sul. Logo, muitos do que levantam a bandeira do abrandamento e da negação evocam argumentos do tipo: aqui morreram poucas pessoas; havia uma revolução comunista em curso, ou ainda que os ditadores agiram em nome do povo.

Deste modo, podemos dizer que Negacionismos são discursos e afirmações que confundem, relativizam, negam, instauram controvérsias, difundem teorias da conspiração, manipulam informações e dados consolidados da produção do conhecimento e da informação com claros objetivos de intervenção político-ideológica ou mesmo econômica.

Mas o que há de novo na manifestação do negacionismo no tempo presente?

Em 2020 a empresa de segurança digital Kaspersky realizou uma pesquisa e constatou que 62% dos brasileiros não conseguiam reconhecer uma notícia falsa. No mesmo ano, a Avaaz fez uma pesquisa com três países considerados os mais atingidos pela pandemia de COVID-19 naquele momento, EUA, Itália e Brasil, para avaliar de que modo seus cidadãos foram afetados pelas notícias falsa sobre a doença. No caso do Brasil, 94% dos brasileiros haviam sido atingidos por, ao menos, uma notícia falsa sobre a COVID-19. Destes, 7 em cada 10 pessoas acreditaram em pelo menos uma notícia falsa distribuída pelas plataformas digitais, especialmente pelo WhatsApp.

Em termos comparativos, obedecendo os mesmos protocolos metodológicos entre os três países, os resultados do Brasil foram os piores em termos da relação que os brasileiros estabelecem com as notícias falsas. Nos resultados, o país apareceu como o que mais acreditou em fake News.

Esses dados podem nos ajudar a entender os motivos do negacionismo, associado às notícias falsas, ter se tornado um problema grave para a produção da informação e do conhecimento no tempo presente. Podemos dizer que o negacionismo é a outra manifestação dessas notícias falsas e que se direciona aos conteúdos do campo científico. Falamos de um negacionismo genérico que se espraia de forma acelerada minando as bases da produção da informação e do conhecimento científico.

Se a negação da ciência ou da informação não são exatamente uma novidade, especialmente, quando estão em jogo interesses políticos, econômico ou morais, podemos apontar algumas características para esse momento. Em primeiro lugar, a circulação de conteúdos falsos e conspiratórios, além de poderosas ferramentas ideológicas, são distribuídas numa escala até aqui inédita. A rapidez como são elaboradas e postas em circulação torna quase impossível seu combate de forma eficaz e na mesma proporção. Em segundo lugar, tais conteudos são uma parte importante na engrenagem algorítmica e se toraram objeto de monetização, ou seja, distribuir informação falsa e negacionista, tornou-se um negócio rentável.

Essa produção tem por base a manipulação de dados comportamentais utilizados para angariar seguidores inflamados por produtos direcionados de forma cada mais individualizada. O escritor italiano Giuliano Da Empoli denomina essa, como uma engenharia do caos que visa instigar e diluir antigas barreiras ideológicas, muito mais diversa em matizes, por oposições binárias entre o bem o mal, elites e povo, decadência moral e religião. Igualmente, a produção de notícias falsas e negacionistas se alimentam de emoções negativas posto que estas possibilitam uma maior adesão nas chamadas bolhas digitais. Dessa forma, o modelo algoritmo acaba por favorecer o a ampliação desses conteudos que, por sua vez, vão agregando mais e mais informações similares. Essa difusão se realiza tanto pelo apelo a demandas de cunho moral conservador, como também pelo engajamento eficaz que notícias e informações falsas desencadeiam.

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