Presidente português diz que país tem responsabilidade por escravidão

Fala de Marcelo Rebelo de Sousa traz à tona debate sobre ações que vão desde a reparação pelos países colonizadores até políticas afirmativas contra o racismo e a desigualdade

O Jantar, de Jean-Baptiste Debret

Questão que até hoje não foi devidamente equacionada nas relações entre países colonizadores e colonizados de outrora, a escravidão e seu terrível legado constituem uma ferida ainda aberta. Os danos causados àqueles que foram submetidos à prática não terminaram com a abolição ou a independência das nações e continuam ecoando geração após geração numa espiral de racismo e desigualdades que afeta, sobretudo, a população negra e os territórios subjugados. 

O tema segue gerando debates e reflexões e voltou aparecer no noticiário após o presidente português, Marcelo Rebelo de Sousa declarar, nesta terça-feira (25), após a visita do presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao país, que Portugal deveria se desculpar e assumir a responsabilidade por seu papel no comércio humano. Pelo que consta, é a primeira vez que um mandatário do país faz tais colocações. 

Segundo veiculado pela agência Reuters, Rebelo de Souza disse que “pedir desculpas às vezes é a coisa mais fácil de fazer: você pede desculpas, vira as costas e o trabalho está feito”. Sem dar maiores detalhes, ele acrescentou que o país deve “assumir a responsabilidade” por seu passado para construir um futuro melhor.

O presidente português levantou como aspectos positivos do passado colonial a difusão da língua e da cultura de seu país, mas colocou como “lado ruim” a exploração dos povos indígenas, a escravidão e o “sacrifício dos interesses do Brasil e dos brasileiros”. 

De acordo com o IBGE, estima-se em mais de quatro milhões os africanos trazidos à força para serem explorados no Brasil, número que corresponde a mais de 1/3 desse tipo de comércio. 

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Manifestações como esta têm ocorrido por parte de outros países colonizadores e instituições. No final do ano passado, por exemplo, o primeiro-ministro da Holanda, Mark Rutte, pediu oficialmente perdão pela escravidão e o tráfico de pessoas. “Durante séculos, o Estado holandês e seus representantes permitiram e estimularam a escravidão e lucraram com isso. É verdade que ninguém vivo hoje carrega qualquer culpa pessoal pela escravidão. (No entanto) o Estado holandês carrega a responsabilidade pelo imenso sofrimento que foi feito para aqueles que foram escravizados e seus descendentes”. 

Na ocasião, Rutte também anunciou o estabelecimento de um fundo para iniciativas de combate ao legado da escravidão na Holanda e em suas ex-colônias. 

Líderes de outros países e instituições também já reconheceram ou pediram perdão por seu papel nesse tipo de prática nefasta, tais como entidades financeiras do Reino Unido e a Igreja Anglicana, a Igreja Católica, França e Dinamarca, por exemplo. 

Mesmo tendo sido colônia, o fato de o Brasil ter recebido milhões de africanos explorados fez com que Luiz Inácio Lula da Silva fosse o primeiro presidente do país a pedir perdão pela prática, em 2005, durante visita à Ilha de Gorée, na costa do Senegal, de onde partiram muitas das pessoas escravizadas. 

Reparação

Embora importantes, os pedidos de perdão, por si só, não mudam os efeitos deixados por séculos de exploração, que ecoam ainda hoje em todos os países que passaram por essa situação. Há a necessidade de enfrentar o problema investindo diretamente nas ex-colônias e em políticas afirmativas, de reparação, de educação e de combate ao racismo e às desigualdades. 

No Brasil, os governos Lula e Dilma Rousseff foram os que mais colocaram em prática medidas para a superação da desigualdade racial e contra o racismo. Entre as políticas implantadas estão a Lei de Cotas para as universidades; o dia nacional da Consciência Negra; o ensino da história e da cultura afro-brasileira em todas as instituições de ensino; o Estatuto da Igualdade Racial; a criação da Seppir (Secretaria de Políticas da Promoção da Igualdade Racial) em 2003; as cotas no serviço público e as políticas voltadas para a população quilombola. 

No atual mandato, foi apresentado, em março, um conjunto de novas medidas. Entre elas estão os decretos para a reserva de 30% de vagas nos cargos em comissões e funções de confiança na administração pública federal e para a criação de grupos de trabalho para a elaboração do Novo Programa Nacional de Ações Afirmativas e para a elaboração do Plano Juventude Negra Viva, além da entrega de titulações de propriedade definitiva para comunidades quilombolas. 

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Em entrevista ao jornal El País em 2020, o atual ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, destacou que o Brasil “é um país que não se livrou da alma da escravidão. Ela não existe mais como sistema econômico e político, mas deixou marcas nas quais o Brasil se reconhece muito”. Para ele, “a gente precisa se livrar dessa alma bandeirante, de senhor de escravo”. 

Ao tomar posse como ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco salientou: “Após quase 400 anos de escravidão negra, e 133 anos de uma abolição que nunca foi concluída, a população brasileira ainda enfrenta múltiplas faces do racismo que gera condições desiguais de vida e de morte para pessoas negras e não negras no país. Isso não pode ser esquecido e nem colocado de lado”.