Sul do Piauí sofre com desmatamento e violência causados pelo mercado da soja

Pesquisa revela como a financeirização da agricultura e da terra impacta o Cerrado, trazendo consequências catastróficas para o meio-ambiente e para as comunidades locais

Área desmatada identificada por grupo conhecido por grilar áreas na região do Matopiba. Foto: Bruno Spadotto.

Relatório divulgado nesta quarta (12) pela Rede Social de Justiça e Direitos Humanos detalha como empresas do agronegócio no sul do Piauí mantêm relações com imobiliárias, subsidiárias e o mercado financeiro para burlar leis e ampliar a margem de lucro, enquanto aumentam a pressão sobre comunidades tradicionais.

O estudo Empresas transnacionais do agronegócio causam violência, grilagem de terras e destruição no Cerrado traz à tona casos de fazendas com histórico de emissão de títulos falsos de propriedades e da atuação de redes que põem em prática estratégias para acobertar as irregularidades em torno das terras.

A pesquisa revela como a financeirização da agricultura e da terra vem impactando o Cerrado brasileiro, mais especificamente o sul do Piauí, trazendo consequências catastróficas para o meio ambiente e para as comunidades camponesas, quilombolas e indígenas.

A savana com maior biodiversidade do mundo, o Cerrado é conhecido como o “berço das águas” e abriga diversos territórios que deveriam ter sido regularizados para essas comunidades.

Desde o início do século, no entanto, o avanço do desmatamento no bioma teve crescimento exponencial e conectado ao boom da commodity soja.  Segundo o estudo, a degradação dele “acelerou pari passu” com o preço do cereal no mercado global.

Leia também: UNE entrega carta a Lula que promete mais universidades e escolas técnicas

Leia também: Recursos para saneamento precisam dobrar, mas não virão das privatizações

Correlação entre o preço da Soja e o desmatamento

Nos últimos 20 anos foram desmatados cerca de 13 milhões de hectares no Cerrado, ao passo que nos 500 anos anteriores, desde a invasão colonial, foram aproximadamente 11 milhões de hectares.

O processo de industrialização e modernização da agricultura teve seu auge entre as décadas de 1960 e 1970. Foi este período que estabeleceu as características mais recentes do agronegócio da soja no século XXI e seus movimentos após o estouro da bolha das commodities, durante o período entre 2002 e 2012

Em maio de 2021, o preço da soja atingiu US$643 por tonelada. Em 2008, antes da crise, a tonelada estava US$ 637, até então o pico.

Essa movimentação do mercado especulativo da soja acarretou a expansão da produção agrícola e, consequentemente, a grilagem e o desmatamento de terras no país todo. Essa expansão, no entanto, é mais intensa no Cerrado e na Amazônia, com grande foco no monocultivo da soja.

“Nos últimos 20 anos, a região do MATOPIBA (acrônimo dos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia) tem sido o principal foco da expansão do monocultivo de soja. De acordo com dados do MapBiomas, nos últimos cinco anos 76% da expansão da fronteira agrícola no MATOPIBA ocorreu sobre áreas de vegetação nativa e a principal causa deste desmatamento foi a expansão das plantações de soja. Os monocultivos de soja ocupam cerca de 38,5 milhões de hectares, aproximadamente 4,3% de todo o território brasileiro, sendo metade desta ocupação no bioma Cerrado”, diz o estudo.

Ainda sobre o Meio Ambiente: Especialistas pedem protagonismo da juventude em defesa do Meio Ambiente

Ainda sobre o Meio Ambiente:  Sistema vai monitorar biomas para evitar desmatamento

Fazenda Kajubar

A fazenda Kajubar, no município de Santa Filomena, é um exemplo utilizado pelos pesquisadores para destrinchar a atuação do mercado da soja na região e a relação das empresas produtoras e comercializadoras do produto.

Localizada no sul do Piauí, a área desmatada pela fazenda tem sobreposição com as terras de comunidades tradicionais da região.

Em 2021, as terras foram devastadas com o chamado desmatamento com correntão, quando apenas dois tratores e uma corrente limpam a mata local. Naquele ano, uma área de 1,8 mil hectares foi destruída na fazenda Kajubar.

O desmatamento, no entanto, foi paralisado nos dois anos seguintes, uma vez que a legislação estadual proíbe qualquer tipo de exploração, empreendimento e licenciamento ambiental enquanto houver sobreposição de territórios – nesse caso, com o das comunidades tradicionais – e indefinição sobre quem tem direito a eles.

Área desmatada da fazenda Kajubar
Foto: Mariella Paulino

Além disso, os donos da fazenda respondem processo judicial movido pelo Ministério Público do Piauí por grilagem e irregularidades.

Conforme explicam os pesquisadores que assinam o relatório, os esquemas que impactam terras como a Kajubar têm como agentes tanto empresas do agronegócio como imobiliárias agrícolas e de comercialização (trading companies). O que se faz é comprar terras por um preço baixo e vender por um preço muito acima. Paralelamente, as empresas que têm ligação fomentam a monocultura de produtos como a soja.

Também na cidade de Santa Filomena, outras terras, que somam 124 mil hectares, tiveram o registro bloqueado pela Vara Agrária da Comarca de Bom Jesus, município vizinho, em virtude dos indícios de grilagem e outras ilegalidades. Há dois anos, o grupo empresarial que briga pela sua titularidade, violando direitos das comunidades rurais do local, conseguiu, na justiça, o desbloqueio, o que aumentou a violência e as ameaças contra essa população.

Desmatamento

Entre as fazendas desse perímetro estão a Santa Alice e a Tupã. O mesmo processo aconteceu com as fazendas Tagí, Baixão Fechado, Passárgada, Reata, São Manoel, Serra do Ovo, São Paulo, Novas e Fortaleza l, ll e lll. Os níveis de desmatamento aos quais faz referência o relatório são de monitoramentos da organização AidEnvironment. No documento divulgado, um ponto que mereceu ênfase é a facilidade com que se desmata uma área no cerrado, já que se pode fazê-lo somente com dois tratores e um correntão.

“O esquema de grilagem funciona através do registro em cartório de títulos falsos de terras. Geralmente tem início com o registro de um pequeno lote, que serve para justificar a apropriação de áreas maiores através de tais falsos títulos iniciais, envolvendo dezenas ou até centenas de milhares de hectares”, escrevem os pesquisadores.

“As áreas mais cobiçadas pelo agronegócio são as chapadas do cerrado, com terras planas e altas, onde se expande o monocultivo de soja com possibilidade de produção mecanizada. Quando outras empresas compram essas áreas formadas através da grilagem, o processo de queimada e desmatamento anterior esconde a origem da terra”, acrescentam.

Em entrevista à Agência Brasil, um dos autores do relatório, Fábio Pitta, que acompanha o cenário há uma década, destacou que o importante é evidenciar que o capital financeiro é que dita o ritmo da apropriação indevida de terras. Ele disse, ainda, que o que o relatório ilustra apenas uma parte do que acontece no Matopiba (fronteira do cerrado dos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia).

“A gente fala que se está ‘esquentando’ aquela terra. E, sem o comprador, não há a efetivação da grilagem, porque, senão, o grileiro fica com aquilo na mão dele e não tem o que fazer com aquilo”, afirma Pitta.

Ainda sobre o Meio Ambiente:  Brasil tem importante papel no combate às mudanças climáticas

Ainda sobre o Meio Ambiente: Planeta registra o dia mais quente desde 1979

Negociatas

Como ressalta o pesquisador, as negociatas não seriam viáveis se não fosse pela participação também do poder público. “A gente vê diversas características do poder público que fomentam isso. Primeiro, todo o apoio ao agronegócio, ao grande latifúndio, todo o discurso e toda a ideologia do agro que a gente está acostumada a ouvir, que compõe um ideário e não permite que isso seja questionado.

Isso faz com que as instituições do Estado agindo, muitas vezes, até independentemente uma da outra, o que é um problemão nesse sentido, acabem fomentando o agro”, afirmou, citando como exemplo a falta de articulação entre quem tem como incumbência conceder licenciamento ambiental, o órgão responsável por emitir parecer antropológico que atesta a presença de uma comunidade tradicional no local e quem fiscaliza.” “Ao mesmo tempo, a lentidão do Judiciário para lidar com terras que, em algum momento, foram reconhecidas como griladas e trouxe um processo contra essas áreas e esses grileiros. E os processos ficam anos parados. Aí, nesse interim, o processo de grilagem avança, porque ele é ilegal, não precisa da legalidade do Estado. O Estado acaba contribuindo para se forjar uma imagem de legalidade”, acrescenta Pitta.

Ainda sobre o Meio Ambiente:  Cúpula em Paris termina com promessa de US$ 100 bi para países pobres

Ainda sobre o Meio Ambiente:  Lula diz que países ricos devem pagar dívida histórica com o planeta

Autor