Vidas interrompidas: a violência que tira o futuro de crianças e adolescentes

Da violência sexual às mortes por bala perdida, crianças e adolescentes são cotidianamente expostos a uma rotina de sofrimento que compromete seu desenvolvimento — e do país

Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

As imagens que percorreram o país de crianças chorando no enterro de Thiago Flausino, de apenas 13 anos — morto com cinco tiros na Cidade de Deus em agosto — traduzem a dor e a impotência de quem, ainda no início da vida, já é obrigado a lidar com uma rotina de violência e medo. Elas são, também, o tenebroso reflexo de um país que virou as costas, sobretudo nos últimos anos, para aqueles que são seu futuro e que silenciosamente pedem socorro. 

É um ciclo ininterrupto. Um dos casos mais recentes foi o de Heloisa da Silva, de três anos, atingida na nuca e no ombro, também no Rio de Janeiro, após uma ação desastrosa da Polícia Rodoviária Federal — ela luta pela vida, em coma induzido, respirando com a ajuda de aparelhos. 

A plataforma Futuro Exterminado, da ONG Fogo Cruzado, dá uma dimensão dessa guerra: em sete anos até agora, somente no Grande Rio, 613 crianças e adolescentes foram baleadas — média de um a cada quatro dias. Desse total, 275 perderam a vida e 338 sobreviveram; 201 dos atingidos foram vítimas de bala perdida; 47,6% foram alvejados durante operações policiais. 

Embora o mapa esteja circunscrito ao Rio de Janeiro, um dos principais palcos desse tipo de violência, a brutalidade contra nossa infância e adolescência é um problema nacional e se apresenta de variadas formas: desde as ocorrências em ambiente doméstico — como as violências verbais, físicas e sexuais —, até aquelas resultantes de ações policiais, balas perdidas e de ataques às escolas, passando pela exploração sexual e o trabalho infantil. 

“Acho que a gente está, de fato, vendo uma sociedade mais intolerante e que oferece condições cada vez menos saudáveis para a infância”, explica, ao Portal Vermelho, a pesquisadora associada do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Sofia Reinach. “Quanto mais tensa a sociedade está, mais isso vai respingar nas crianças”, completa. 

De fato. Ainda que este não seja um flagelo novo, os últimos anos — marcados pela ascensão da extrema-direita bolsonarista e a decorrente proliferação do discurso de ódio, do “libera geral” das armas de fogo, da permissividade em relação à violência policial — contribuíram diretamente para piorar o quadro geral. Além disso, argumenta, “o bolsonarismo não só não fez nada como também desmontou as políticas públicas que existiam, de apoio e prevenção”. 

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Para ficar em alguns exemplos pontuais, além dos cortes em saúde, educação e assistência social e do aumento da fome e da miséria que atingem diretamente esse público, sob o governo Bolsonaro foram extintos a Comissão Intersetorial de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes e o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), além do esvaziamento do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda). 

O então Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, que respondia também pelo atendimento às crianças e adolescentes, sofreu sucessivos cortes no orçamento nos últimos anos, uma queda de R$ 203 milhões, em 2018, para R$ 54 milhões em 2022, segundo dados da equipe de transição de Lula.

Alvos precoces

Segundo o Anuário 2023 do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o ano de 2022 registrou redução de 2,6% nos números absolutos de assassinatos de crianças e adolescentes em relação a 2021 no Brasil. No entanto, o cômputo segue alarmante, com um total de 2.489 mortes, quase sete por dia. 

Dentre as que tinham entre 12 e 17 anos, chama atenção o número de vítimas em intervenções policiais: 358 em 2022, contra 306 no ano anterior. “Ou seja, houve um aumento de 17% de um ano para o outro, razão pela qual, em 2022, as mortes por policiais foram responsáveis por 15,7% do total de crimes letais entre adolescentes”, aponta o levantamento. 

Vale destacar, ainda, que neste universo, o principal alvo também está na população negra. “Enquanto 67,1% das vítimas de zero a 11 anos são negras, esse percentual sobe para 85,1% na faixa etária de 12 a 17 anos, evidenciando que a desigualdade racial é parte estruturante da problemática das mortes violentas no país e que se acentua na medida em que os anos passam na vida do sujeito”, diz o anuário.

As mortes violentas entre crianças acontecem, em 65,4% dos casos, nas residências e 15,4% nas vias públicas, percentuais que se invertem na faixa etária entre 12 e 17 anos: quase 60% ocorrem nas vias públicas e mais de 15% nas casas. 

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Entre as vítimas de zero a 11 anos, mais de 40% dos crimes são cometidos com armas branca ou por meio de agressão num quadro de violência doméstica; por outro lado, a violência urbana é o que está por trás das mortes entre aqueles que possuem de 12 a 17 anos. Segundo o Anuário, entre 2021 e 2022, “aumentou o percentual de crianças mortas por arma de fogo, passando de 50% para 55,8%, enquanto houve diminuição das mortes ocorridas por armas branca, dando indícios de que o aumento da circulação de armas de fogo nos últimos anos no país pode ter impactado nesse cenário”. Para Sofia, “quanto mais armada estiver uma sociedade, mais grave vão ser as violências que as crianças sofrem”. 

Quando o estudo se volta para a violência sexual, o quadro segue grave. De um total de 73 mil estupros em 2022, mais de 40 mil foram contra vítimas com menos de 13 anos, o que representa mais de 61% de todos os casos de estupro registrados no ano passado — portanto, a maioria é formada por meninas, e não por mulheres. Os meninos representam 14% dos casos, sendo que 43,4% deles têm entre 5 e 9 anos de idade. 

Também nessas situações os lares são os piores lugares para as crianças, com 72% dos casos registrados de estupros de vulneráveis até os 13 anos; familiares respondem por 71,5% desse tipo de violência sexual.

Os casos envolvendo violência nas escolas também são preocupantes e ensejaram, recentemente, uma série de medidas por parte do governo federal. Trata-se de um crime que, em geral, está intimamente ligado à propagação dos discursos de ódio e naturalização de preconceitos manifestos, inclusive, nos casos de bullying

Para se ter uma dimensão do problema, houve ao menos 23 casos de ataques a escolas no Brasil em 21 anos, com 137 vítimas e 45 mortes, segundo dados da ONG Sou da Paz divulgados em maio. Mas, o levantamento mostrou que a grande maioria dos casos aconteceu a partir de 2019, período em que também houve a decisão, por parte do então presidente Jair Messias Bolsonaro, de flexibilizar o acesso às armas de fogo. 

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Entre 2002 e 2019, foram sete atentados e, nos últimos quatro anos, de 2019 até este ano, o número mais do que dobrou, passando para 17. Apenas nos quatro primeiros meses de 2022, foram seis casos. Em 11 desses episódios houve uso de armas de fogo, causando três vezes mais mortes do que armas brancas, como facas, que apareceram em dez ocorrências. As armas de fogo foram responsáveis pela morte de 34 pessoas (76%), enquanto as brancas mataram 11 pessoas (24%) em ataques a escolas.

Apesar de diferentes entre si, esses tipos de violência têm em comum o trauma que impõem a cada vítima e ao seu entorno. E, da mesma forma, ainda que possam ter origens variadas, são alimentados pelo descaso perpetuado por uma cultura que, ao longo de décadas, normalizou a violência contra crianças e adolescentes. 

Naturalização da violência

Protesto da ONG Rio de Paz em Copacabana. Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

Na avaliação de Lucas Lopes, coordenador da Coalizão Brasileira pelo Fim da Violência contra Crianças e Adolescentes, que integra o movimento Agenda 227, o processo que leva às mais variadas formas de violência que atingem crianças e adolescentes está ligada a fatores ainda não superados pelo país. “O Brasil está atrasado no reconhecimento da criança e do adolescente como sujeitos de direito. Isso não é uma retórica jurídica ou uma abstração normativa”, aponta. Ele lembra que isso impacta tanto na vida da criança hoje como na sua vivência futura, como adulto. 

Neste sentido, explica, o não-reconhecimento de crianças e adolescentes como sujeitos de direitos fica evidente, entre outras questões, no direito à cidade. No que diz respeito à atuação das forças de segurança pública, por exemplo, Lopes enfatiza que os registros têm mostrado que a letalidade desse segmento da população no Brasil também tem cor, idade, sexo e lugar. “Existe uma geografia da ação truculenta policial e isso está associado ao não-reconhecimento dessa criança como sujeito de direitos, atravessado, evidentemente, pelo racismo, outro fator que não dá para dissociar dessa compreensão”, aponta. 

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Soma-se a isso a naturalização da violência contra crianças, presente não apenas na omissão do Estado como também no imaginário social. Em geral, não se admite o homicídio, no entanto, faz-se “vista grossa” para outros tipos cotidianos de violência. “Algo que explica essa naturalização e que está relacionado também com a desigualdade é o fato de termos nos acostumado, ao longo do processo histórico de colonização, a não identificar os atos de violência, de maneira que a violência atravessa a nossa história e se naturaliza nos nossos corpos”, diz Lopes. 

Apesar de ter sido focada no público adulto, pesquisa do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (Cesec), feita com moradores de comunidades do Rio de Janeiro, mostra como as operações policiais afetam a saúde dessas pessoas. Cerca de 30% dos moradores de comunidades violentas perdem o sono, sentem tremores e falta de ar durante tiroteios e outros 43% sentem o coração acelerar ao ouvir disparos. Esses dados demonstram o ambiente vivenciado por crianças e adolescentes e indicam que elas também podem sofrer esses efeitos. 

“Podemos considerar que todo esse cenário de insegurança e violência impacta nos processos de subjetivação das crianças, de modo individual e também coletivo, ou seja, em sua forma de pensar e sentir e, consequentemente, em sua formação cidadã e política também — enquanto crianças e, futuramente, como jovens e adultas”, aponta a professora Heloísa Lins, da Faculdade de Educação e Departamento de Psicologia Educacional da Unicamp. 

Ela acrescenta que cada vez mais cedo “as crianças já vulneradas — pobres, negras, indígenas, periféricas, meninas, por exemplo — precisam lidar com o luto, com o sofrimento e simplesmente não têm condições psíquicas ainda, em função de seus processos de desenvolvimento, para o enfrentamento de tantas atrocidades”. Ela destaca, ainda, que “as consequências negativas podem se intensificar, além do medo imediato —de sair de casa, de confiar nas pessoas, de estudar, por exemplo —, para situações na vida adulta de extrema fragilidade quanto a essas condições subjetivas e também cidadãs”. 

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Ao mesmo tempo, argumenta, “cria-se, para as crianças que sobrevivem, através de exemplos ou modelos diários, principalmente do Estado e de suas forças policiais, mas não apenas, um imaginário social em torno e a partir da violência, uma cultura concreta baseada em atitudes truculentas como um princípio de sociabilidade. Nosso país tem ensinado, na prática cotidiana, a violência para suas crianças e perpetuado as desigualdades sociais, através fundamentalmente dessas bases beligerantes e armamentistas”. 

Heloísa conclui dizendo: “observamos determinadas infâncias e juventudes sem nenhuma promessa de futuro e outras com uma ideia do que seja cidadania desvirtuada dos princípios do Estado democrático de direito. Trata-se, desde o presente, da receita exata para a continuidade e intensificação de injustiças e desastres sociais”. 

Novas perspectivas

A mudança de governo vem abrindo novas perspectivas e algumas ações já foram postas em prática. Há alguns meses, o governo Lula anunciou medidas como a recriação da Comissão Intersetorial de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes; a constituição de um Centro Integrado de Escuta Protegida em cada região do país para atender crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência e medidas de combate à exploração infantil. O governo também enviou ao Congresso projeto de lei que torna a violência nas escolas crime hediondo. 

No Plano Plurianual 2024-2027, explica Lucas Lopes, “já identificamos o atendimento às crianças e adolescentes como uma agenda transversal. Isso significa que todas as políticas e programas em todas as áreas do governo deverão observar essa população, as suas especificidades e os direitos que estão assegurados na legislação. O que  precisa ser feito, agora é uma análise atenta de como isso se dá nos programas e nas políticas públicas, como isso se traduz depois em serviço, em atendimento, em projeto, em iniciativa nos entes federados, olhando na ponta onde as crianças e adolescentes estão, que são os municípios”. 

Ele aponta que também há importantes sinalizações na Lei de Diretrizes Orçamentárias e indica que a Agenda 227 tem trabalhado em defesa de medidas relativas à prevenção da violência, mudanças nos sistemas de informação a fim de melhorar o diagnóstico e a aplicação de políticas públicas, o fortalecimento da rede de proteção, o que inclui os Conselhos Tutelares, e a reedição do Plano Decenal de Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes. 

Lopes conclui dizendo que “a violência contra crianças e adolescentes é, também, uma afronta ao desenvolvimento do país. Pensar na prevenção e no combate a essa situação é um ato civilizatório”.