Quando o Estado causa perda, adoecimento e desamparo 

“Nossos filhos foram descartados como baratas”, diz Débora da Silva, sobre assassinatos em 2006. Pesquisa mostra a dor de mães como ela

Movimento Mães de Maio. Foto: arquivo pessoal

A dor de uma mãe que perde um filho para a violência não pode ser medida. Porém, é possível ver seus efeitos na saúde física, mental e emocional dela. A percepção de adoecimento de mulheres que passaram por essa perda — no caso, resultante da atuação de um agente do Estado — chamou atenção de outras que compartilhavam as mesmas histórias e levou à realização de um estudo. Os relatos nele contidos mostram que a indiferença do poder público e da sociedade e a impunidade produzem uma nova camada de sofrimento que se soma à ferida original e que se mostra como um novo ato de violência contra essas mulheres.

Esse é o objeto da pesquisa “Vozes da dor, da luta e da resistência das mulheres/mães de vítimas da violência de Estado”, protagonizada pelas integrantes do Movimento Independente Mães de Maio, de São Paulo, em articulação com mães de vítimas de outros estados do Brasil, pesquisadoras do Centro de Arqueologia e Antropologia Forense (Caaf) da Unifesp e a Harvard Kennedy School. 

A expectativa é que o material seja lançado em outubro. Mas, o relatório preliminar já explicita o quanto a dor da perda de um filho por ação de agentes do Estado — que deveria proteger seus cidadãos — leva a situações dramáticas, potencializando o sofrimento que os assassinatos, por si só, já causam.

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“Temos, muitas vezes, a família toda adoecida porque o Estado não mata só nossos filhos, mata a convivência dessa família com aquele menino e mexe com o seu íntimo e a gente precisava chamar atenção para isso”, explica Débora Maria da Silva, uma das pesquisadoras e fundadora do Movimento Independente Mães de Maio, em entrevista ao Portal Vermelho.

Conforme explica o relatório, no que diz respeito ao formato, o estudo também inova ao “quebrar as hierarquias que definem as pesquisas tradicionais, as quais colocam as pessoas afetadas no papel de ‘objetos’ de pesquisa, cuja participação não só é instrumentalizada pelos pesquisadores formais e suas instituições acadêmicas, mas que também reproduz as desigualdades de poder que já marcaram a relação entre o Estado e as comunidades afetadas pela sua violência”. 

De acordo com nota técnica que ajudou no estudo, elaborada pela pesquisadora Raiane Patrícia S. Assumpção, do Caaf/Unifesp e que também integra a pesquisa, “os movimentos sociais protagonizados pelas mães e familiares, sobrevivem sem o devido direito a uma política de Estado que ofereça apoio psicológico e acolhimento humanizado, além do notável distanciamento do corpo técnico em saúde com relação à experiência da violência sofrida”. 

Experiências compartilhadas

 Foto: Rafael Bonifácio/Ponte Jornalismo

Numa primeira experiência envolvendo o Movimento Independente Mães de Maio e o Caaf/Unifesp, durante visitas feitas a mulheres que perderam seus filhos por ações policiais, percebeu-se que eram comuns casos de mães que adoeciam e morriam. 

A situação chamou atenção das ativistas, entre elas Débora, de 64 anos. Ela mesma perdeu o filho, o gari Edson Rogério Silva dos Santos, de 29 anos.  Homem negro e trabalhador dedicado, ela lembra que no dia 10 de maio de 2006, ele havia feito cirurgia dentária e mesmo de atestado, preferiu trabalhar. Cinco dias depois, em 15 de maio, foi assassinado em Santos, cidade onde vivia, durante os chamados “Crimes de Maio”, que aconteceram no estado de São Paulo naquele ano. 

A onda de assassinatos ocorreu após ataques do Primeiro Comando da Capital (PCC) a agentes e equipamentos de segurança pública, que foram retaliados por policiais e grupos de extermínio. Ao todo, cerca de 600 pessoas foram mortas e até hoje pouco se avançou no esclarecimento dos crimes e na responsabilização dos culpados. 

“A gente tomava conhecimento do adoecimento e morte de mães e via que não era algo normal. Foram ao menos oito casos. E passamos a provocar a academia para fazer um estudo em cima disso”, conta Débora. Ela mesma passou por uma profunda depressão após o assassinato de Edson. 

Um dos casos mais emblemáticos que ela conta foi o de Vera Lúcia Gonzaga dos Santos, que perdeu sua filha Ana Paula, grávida de nove meses, e o genro Eddie Joey, num dos casos de maio de 2006. “A Vera era muito atuante e ainda foi criminalizada. E ela ficou com aquilo na cabeça. Ela tentou suicídio, depois ela se arrependeu, mas acabou morrendo de um AVC”, lembra Débora. Outras mulheres — mães e irmãs das vítimas — também adoeceram e outras perderam a vida por causas variadas. 

Para ela, “esse era um quadro que não podia ficar só pra nós. E com o desenvolvimento dessa pesquisa, a ideia foi trazer as mães de referência e pesquisar, junto a outras mães, para a gente poder obter o que a academia jamais vai atingir: o grau da situação vivida por essas mães, que  colocam para fora, em suas narrativas, o que de fato acontece na convivência desse luto, no dia a dia com as famílias”. 

Dupla violência do Estado

A experiência dessas mulheres reflete uma dupla violência do Estado que acomete milhares de familiares de pessoas assassinadas todos os anos. Afinal, além da perda de filhos e parentes para ações de agentes estatais — que deturpam seu papel precípuo —, essas pessoas vivenciam a dor causada pela impunidade. Soma-se ainda a indiferença e a criminalização que tais populações, em geral negras e pobres, sofrem por parte da sociedade. Via de regra, mortos pela polícia são taxados como “bandidos”, independentemente da vida que levavam. 

Mas, ainda que fossem suspeitos e tivessem de fato cometido crimes, vale lembrar que não há pena de morte no Brasil — portanto, o que se espera a partir do que determina a lei é que suspeitos possam ter seus direitos jurídicos garantidos e responder por seus atos perante à Justiça.

“O pacto civilizatório que o Estado brasileiro criou com a sociedade brasileira não autorizou a pena de morte”, disse à CNN o advogado e presidente do Condepe (Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana de SP), Dimitri Sales. “(Esse pacto) tira do Estado a autoridade de decidir, por sua livre e espontânea vontade, quem deve viver e quem deve morrer. O que acontece em atos de chacina é que a polícia decide, no momento que ela julga pertinente, quem deve morrer”, acrescentou, em análise recente feita sobre a operação policial ocorrida no Guarujá, que deixou ao menos 18 mortos desde o dia 27 de julho. 

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Segundo o Anuário 2023 do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, no ano passado houve 6.429 mortos em intervenções policiais, o que significa 17 por dia. “É evidente que o confronto faz parte da atuação policial e o uso da força é constituinte da profissão, contudo, a desproporcionalidade do uso da força está suficientemente evidente”, diz o levantamento. 

O Anuário aponta, ainda, que os dados que permitem construir o perfil das vítimas da letalidade policial “são faceta evidente e consolidada historicamente do racismo que estrutura a sociedade brasileira — 83% dos mortos pela polícia em 2022 no Brasil eram negros, 76% tinham entre 12 e 29 anos. Jovens negros, majoritariamente pobres e residentes das periferias seguem sendo alvo preferencial da letalidade policial”.

A pesquisa do Caaf/Unifesp confirma esse perfil e acrescenta: “Esses padrões de violência estatal correspondem a uma tendência  geral na América Latina, onde a violência exercida pelo Estado é estratificada pelos principais indicadores da desigualdade social”. 

Para Débora, “o Estado produz essas mortes de maneira desenfreada, é uma política de morte implantada no Brasil, que aceitou essa política dentro do Estado democrático de direito. A Constituição de 1988 tem uma cláusula pétrea do direito à vida que em geral não é praticada pelos governantes, que não fazem o controle da sua polícia, pelo contrário: usam o poder deles para colocar esses homens como heróis às custas de vidas humanas”. 

Débora completa dizendo que “a gente paga a bala que mata nossos filhos, a gente paga o policial que mata nossos filhos, a gente paga os governantes que são funcionários públicos e que ordenam, que acham que para reestabelecer a ordem, precisa ir para a periferia e ir para a favela dar uma resposta para essa sociedade, que se alimenta do sangue periférico”. E salienta: “nossos filhos foram descartados como se fossem baratas; muitas mães perdem os empregos porque eles matam nossos filhos como suspeitos e ninguém dá credibilidade para elas”. 

Políticas públicas

Silvio Almeida reunido com o movimento, ao lado de Débora Silva. Foto: MDH

Um dos focos da pesquisa feita pelo Caaf/Unifesp é contribuir para a formulação de políticas públicas que mudem o quadro de violência policial e que ofereçam suporte às mães e familiares das vítimas.

No último dia 10, o relatório parcial da pesquisa foi apresentado durante seminário realizado pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) em parceria com o Movimento Independente Mães de Maio. “Eu não poderia ser ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania se eu nada dissesse ou se eu me calasse em um momento como esse. O Brasil institucional é uma tragédia muito grande, um país feito de sangue, morte e genocídio”, lamentou o ministro Silvio Almeida, na ocasião. 

Após casos recentes de violência policial que deixaram 45 mortos em São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia, o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), vinculado ao MDH, emitiu recomendação em que estabelece ser preciso “reunir os diversos setores do governo federal, os governadores e membros de outros poderes para um grande pacto nacional pela vida, sobretudo de jovens pobres e negros, maiores vítimas da violência policial e da violência de maneira geral”.

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O Ministério da Justiça e Segurança Pública sinalizou, há poucos dias, que vai atualizar a formação das forças de segurança, de maneira a reforçar a defesa da democracia e dos direitos humanos. E em junho, em reunião com o Movimento Independente das Mães de Maio, o ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, destacou que a ação do ministério no que diz respeito ao tema será em duas instâncias. 

A primeira a de reparação, por meio da criação de um programa nacional do governo federal para indenizar as famílias e garantir assistência psicológica para mães e familiares ligados às vítimas. A segunda será estruturar um programa com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) para o acompanhamento dos inquéritos na busca por celeridade nos processos.

Outro ponto defendido pelas mães é a aprovação do Projeto de Lei 2.999/22, do deputado federal Orlando Silva (PCdoB-SP). Conhecida como “Lei das Mães de Maio”, a matéria estabelece um programa de enfrentamento aos impactos da violência institucional e à revitimização de mães e familiares de vítimas e sobreviventes de ações violentas, por meio da atenção social integral.

“A gente está vivendo numa guerra de classes, onde os poderosos querem continuar vivos e querem a paz do cemitério, essa ‘paz branca’ que não aceitamos”, pontua Débora. E conclui: “precisamos de políticas públicas para poder barrar essas canetas que nunca secam e essas metralhadoras que sempre estão atirando e têm um alvo certo: as favelas, as periferias, o povo negro, o povo pobre”.