50 anos sem Josué de Castro mantêm seu legado vivo contra a fome

A compreensão de que a fome não é resultado da falta de alimentos ou culpa da preguiça continuam sendo um norte para políticas públicas de combate à desigualdade na distribuição da terra e das riquezas.

O legado de Josué de Castro no combate à fome

Há exatos 50 anos, em 24 de setembro de 1973, o mundo perdia um intelectual notável, Josué de Castro, cujo trabalho teve um impacto significativo na luta contra a fome e na compreensão das causas subjacentes à insegurança alimentar. Originário do Nordeste do Brasil, Josué de Castro denunciou a miséria nas favelas e dedicou sua vida a combater a fome e suas raízes.

Seu legado deve ser lembrado, debatido e incorporado às discussões públicas sobre políticas alimentares e combate à fome. A celebração do 50º aniversário de sua morte é uma oportunidade para retomar o compromisso de combater a fome e usar o legado deixado por Josué de Castro para promover um futuro mais justo e igualitário.

Josué trouxe uma perspectiva sociopolítica para o problema da fome, lançando luz sobre as raízes socioeconômicas desse flagelo. Sua obra desafiou as explicações simplistas e deterministas então vigentes.

Nascido em 5 de setembro de 1908, na cidade do Recife, ele teve uma carreira multifacetada que incluiu ser médico, professor universitário, presidente do Conselho Consultivo da FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura), deputado federal, embaixador e presidente do Centro Internacional de Desenvolvimento, em Paris. Ele se tornou uma figura importante na política brasileira, especialmente nos anos 1950.

Obra monumental

Josué de Castro é mais conhecido por suas obras “Geografia da Fome” (1946) e “Geopolítica da Fome” (1951), nas quais analisou as causas e consequências da fome e propôs soluções para combatê-la. Seus trabalhos foram traduzidos para 25 idiomas e tiveram um impacto global, especialmente durante a Guerra Fria, quando circularam tanto nos Estados Unidos quanto na União Soviética.

“Geografia da Fome” foi especialmente inovador ao mostrar que a fome estava enraizada nas desigualdades sociais, não apenas em fenômenos naturais ou crises temporárias. O livro examinou os regimes alimentares em diferentes regiões do Brasil, destacando as questões de propriedade e relações de trabalho como fatores-chave na determinação da fome. Isso levou Josué de Castro a fazer a conexão crucial entre acesso a alimentos e renda.

Em “Geopolítica da Fome,” Josué de Castro ampliou sua análise para uma escala global, explicando os fatores geográficos, biológicos, culturais e políticos que contribuem para a fome em todo o mundo. Ele desafiou a ideia de que o aumento populacional necessariamente levaria à escassez de recursos, argumentando que a concentração de riqueza e poder era a verdadeira causa da fome.

O legado de Josué de Castro vai além de sua análise da fome. Ele ajudou a dar à fome um “estatuto político e científico”, destacando que a fome não era apenas resultado de desastres naturais, mas também de fatores políticos, como sistemas de produção e distribuição de alimentos, desigualdade social, tradições culturais e muito mais.

Quem tem medo de Josué de Castro

Josué de Castro foi exilado durante o regime militar no Brasil, mas continuou seu trabalho intelectual na França. Ele foi impedido de retornar ao Brasil e seu nome era proibido de ser mencionado. No entanto, sua influência perdura, especialmente nas discussões sobre insegurança alimentar e políticas de combate à fome.

Hoje, apesar dos avanços científicos e tecnológicos na produção de alimentos, a insegurança alimentar ainda afeta milhões de pessoas no Brasil e no mundo. A obra de Josué de Castro continua relevante e serve como um lembrete de que a fome não é apenas um problema técnico, mas também um problema político e social que exige ação contínua.

Sua obra foi indicada três vezes ao Prêmio Nobel, em Medicina e da Paz, reconhecendo a importância de suas contribuições. Mesmo décadas depois de suas publicações, suas ideias continuam relevantes. O Brasil, um grande produtor de alimentos, ainda enfrenta problemas de insegurança alimentar e pobreza, destacando a necessidade contínua de abordar as questões que Josué de Castro levantou.

Ameaça permanente

No Brasil contemporâneo, políticas como o Bolsa Família e programas de distribuição de alimentos têm ajudado a reduzir a fome, mas a desigualdade persiste como uma das principais causas da fome endêmica. Em apenas um governo antipopular, foi possível desmontar toda a estrutura governamental de combate à fome e à insegurança alimentar, jogando 33 milhões de brasileiros na linha da miserabilidade.

Em um mundo onde a produção agrícola é mais do que suficiente para alimentar a população global, as barreiras para garantir que todos tenham acesso a alimentos adequados são políticas e econômicas. A pandemia e a guerra em um único território da Europa foi capaz de gerar uma avalanche que tornou o acesso à produção de grãos da Ucrânia e da Rússia um desafio para grande parte do mundo africano e asiático. No entanto, a preocupação com a inflação de alimentos e a insegurança alimentar de bilhões no mundo continua sendo menor que a preocupação com fabricação e comércio de armas.

Josué de Castro nos ensinou a olhar além das explicações simplistas e a questionar as estruturas que perpetuam a fome. Seu trabalho continua sendo um divisor de águas na compreensão e combate à pobreza e à fome, e seu legado deve ser lembrado e celebrado.

Brasília (DF), 09/02/2023 – Moradores do Sol Nascente almoçam em Cozinha Solidária de Ceilândia (DF), que faz parte da rede de cozinhas gerida pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Teto.

Acesso à terra

Sua pesquisa e ativismo em relação à distribuição desigual de terras e recursos agrícolas o levaram a defender apaixonadamente a reforma agrária como um meio fundamental para combater a fome e a pobreza. Ele via a concentração de terras como uma das principais causas da fome e da miséria em muitas regiões.

A influência de Josué de Castro não se limitou ao Brasil; ele também teve um impacto significativo em organizações internacionais, como a FAO, onde advogou por políticas que promovessem a reforma agrária como uma maneira de garantir a segurança alimentar global.

Josué de Castro tinha a visão de que a fome poderia ser erradicada por meio da redistribuição justa de terras, da diversificação da agricultura e da promoção de práticas agrícolas sustentáveis.

Os “Dez Pontos para Vencer a Fome” formulados por Josué de Castro em 1953 continuam sendo uma diretriz importante para o combate à fome e à desigualdade:

Combate ao latifúndio.

Combate à monocultura.

Aproveitamento racional de todas as terras cultiváveis circunvizinhas aos centros urbanos.

Intensificação do cultivo de alimentos sob a forma de policultura em pequenas propriedades.

Mecanização da lavoura.

Financiamento bancário adequado e suficiente da agricultura.

Progressiva diminuição até extinção absoluta da isenção de impostos para as terras destinadas à produção de alimentos.

Amparo e fomento ao cooperativismo.

Estudos técnicos para o conhecimento mais amplo do valor dos recursos ambientais.

Planejamento de uma campanha de âmbito nacional para a formação de bons hábitos alimentares.

Esses pontos demonstram o compromisso de Josué de Castro em abordar a fome não apenas como um problema técnico, mas como uma questão política e social que exige mudanças profundas na forma como a agricultura é conduzida e como os recursos são distribuídos.

Aqui estão algumas das principais ideias expressas por Josué de Castro:

Alterações Ecológicas no Nordeste Açucareiro: Josué de Castro observou como a paisagem natural do Nordeste brasileiro, outrora coberta por florestas tropicais, foi drasticamente transformada pela ação humana, especialmente pela expansão da produção de açúcar. Ele enfatizou a importância de compreender como as ações humanas podem desequilibrar ecossistemas e alterar as condições naturais, levando a consequências ambientais significativas.

Conflito Interior e Fome: Josué de Castro explorou a relação entre a fome e os impulsos humanos. Ele descreveu os estados de espírito extremos no sertão nordestino como manifestações de um conflito interior entre os instintos básicos de sobrevivência (fome) e outros desejos e aspirações humanas. Isso reflete a complexidade da condição humana e os desafios enfrentados por aqueles que lutam para satisfazer necessidades básicas.

Desenvolvimento Econômico: Josué de Castro argumentou que o Brasil precisava avançar além de sua infraestrutura econômica pré-capitalista, que ainda mantinha grande parte de sua população em condições precárias. Ele via a erradicação da fome como um desafio crucial para a atual geração e como um símbolo da superação do subdesenvolvimento. Sua visão era de que o país deveria se modernizar e garantir que todos os cidadãos tivessem acesso a alimentos e oportunidades econômicas.

Fome não é causada por escassez de alimentos: Josué de Castro argumentou de maneira convincente que a fome não é uma consequência direta da falta de alimentos em termos quantitativos. Ele destacou que a produção de alimentos não era o problema central, mas sim a distribuição desigual dos recursos e das riquezas. Essa percepção ajudou a desmistificar muitos mitos sobre as causas da fome.

Conexão entre fome e desigualdade: Josué de Castro identificou a desigualdade social e econômica como a raiz da fome e da miséria. Ele argumentou que a concentração de terras e recursos nas mãos de poucos, em detrimento das massas empobrecidas, era o cerne do problema. Isso o levou a se tornar um forte defensor da reforma agrária como uma solução crucial.

Análise internacional da fome: Em “Geopolítica da Fome”, Josué de Castro expandiu sua análise da fome para uma perspectiva internacional, examinando como a desigualdade global e os processos de colonização contribuíram para a pobreza extrema em diferentes continentes. Ele demonstrou como a exploração econômica e política estava ligada à perpetuação da fome em todo o mundo.

Desafio à narrativa dominante: Josué de Castro desafiou ativamente a narrativa convencional de sua época, que muitas vezes culpava as vítimas da fome por sua própria situação. Em vez disso, ele enfatizou a responsabilidade das estruturas sociais e econômicas na criação da fome e da miséria.

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