Uma festa sem operários na Ponte Rio-Niterói

Houve corpos retirados da Baía de Guanabara, outros que se perderam nas águas. A ordem era seguir a obra. No dia da inauguração, fez-se rezar uma missão campal em memória desses operários mortos – mas suas famílias não foram convidadas.

A ditadura militar brasileira (1964-1985) foi pródiga em projetos faraônicos – aquelas obras que, de tão megalomaníacas, fariam inveja até aos faraós do Antigo Egito. Muitas começaram a sair do papel durante o período do “milagre econômico” (1969-1974), quando o País crescia a taxas de até 14% ao ano. Com dinheiro em caixa, o regime passou a investir em empreendimentos que pudessem ser vitrines do “Brasil Grande”.

Obras faraônicas não são necessariamente inúteis e podem até se tornar orgulhos nacionais. É o caso da Usina Hidrelétrica de Itaipu, que virou a maior geradora de energia limpa e renovável do mundo, além de ícone da engenharia moderna. Em sentido inverso, a Rodovia Transamazônica (BR-230) – que seria o símbolo da integração nacional, ao ligar o Norte às demais regiões – permanece inacabada. Pior: como apenas metade de sua extensão é pavimentada, a estrada fica intrafegável no período de chuvas.

Uma das obras grandiosas da ditadura acaba de completar 50 anos. É a Ponte Rio–Niterói, inaugurada em 4 de março de 1974. Seu objetivo era reduzir a distância entre os municípios do Rio de Janeiro e Niterói – de 120 quilômetros para 13 km, de duas horas para 13 minutos. Assim, vencendo desafios estruturais de todo tipo, o regime fincou nas rochas da Baía de Guanabara a segunda maior ponte do mundo (até então).

Na inauguração, o general-presidente Emílio Garrastazu Médici e o ministro dos Transportes, Mario Andreazza, atravessaram a Rio–Niterói a bordo do Rolls-Royce da Presidência. “Esta obra magnífica de engenharia é um monumento à Revolução de 64”, bravateou Andreazza. Para deixar claro o DNA do empreendimento, o governo o batizou de Ponte Presidente Costa e Silva, homenageando o ditador que antecedeu Médici e deu início às obras.

A celebração do cinquentenário da Rio–Niterói dá ênfase justamente às proezas da engenharia nacional que viabilizaram sua construção. Reportagens em jornais, revistas, postais, TVs e rádios enaltecem as soluções adotadas para minimizar os impactos. Quase todas as matérias lembram que, a cada dia, 150 mil carros passam pela ponte de aço e concreto da Baía de Guanabara, transportando 400 mil pessoas. O ufanismo atual não deve nada à euforia nos “anos de chumbo”.

Projetos faraônicos demandam uma abundante mão de obra e, invariavelmente são marcados pela exploração. Não se trata de uma primazia do Egito dos faraós ou do Brasil dos ditadores. O governo do Qatar admitiu que “entre 400 e 500” trabalhadores, quase todos imigrantes, morreram nas obras para a Copa do Mundo de 2022, como estádios, hotéis, pontes e estradas. A despeito dos números, o presidente da Fifa, Gianni Infantino, classificou o Mundial no país islâmico como “melhor Copa do Mundo de todos os tempos”, com “um legado transformador”.

Essa contradição marca igualmente a história da Ponte Rio–Niterói. No pico das obras, 10 mil operários trabalhavam em condições precárias de segurança, já que a legislação da época não previa nem sequer EPIs (Equipamentos de Proteção Individual). “Não é difícil encontrar fotos de operários calçando sandálias de borracha, usando bermudas, sem capacete ou fumando enquanto trabalhavam”, registrou o Blog do Acervo.

Historiadores e jornalistas estimam que cerca de 400 trabalhadores perderam a vida nos cinco anos de construção da Rio–Niterói. A ditadura, especialista em esconder dados, mortos e desaparecidos, reconhece somente 33 vítimas. Com leis permissivas e pouca fiscalização, os acidentes de trabalho eram comuns.

Oficialmente, Domício Barbosa Lima foi o primeiro operário a perder a vida na obra. Ele morreu em 5 de novembro de 1969, após a explosão em uma instalação de ar comprimido. Dois acidentes tiveram um número mais expressivo de vítimas. Em 24 de março de 1970, o desmoronamento de uma plataforma provocou a morte de cinco operários e três engenheiros. Já em 4 de janeiro de 1974, a apenas dois meses da inauguração, o desabamento de uma passarela matou mais seis trabalhadores.

Houve corpos retirados da Baía de Guanabara e outros que se perderam nas águas. A ordem era seguir a obra. No dia da inauguração, fez-se rezar uma missão campal em memória desses operários mortos – mas suas famílias não foram convidadas nem para a missa, nem para a inauguração propriamente dita.

A organização da solenidade até reservou um espaço para 20 trabalhadores, escolhidos, conforme o Estadão, “após exames escritos de Português, Matemática, Geografia e História”. Os demais tiveram de ficar a 300 metros do palco. Cinquenta anos depois, a festa para a Rio-Niterói continua a excluir o papel dos operários brasileiros.

Em tributo a seus mártires “oficiais” e “não oficiais”, a ponte poderia exibir os versos de O Operário em Construção, de Vinicius de Moraes: “Um silêncio de torturas / E gritos de maldição / Um silêncio de fraturas / A se arrastarem no chão. / E o operário ouviu a voz / De todos os seus irmãos / Os seus irmãos que morreram / Por outros que viverão.”

Talvez seja mais fácil, sim, levar poesia à Ponte Rio-Niterói do que rebatizar seu nome. Quando era prefeito de São Paulo, Fernando Haddad criou o programa “Ruas de Memória” para alterar o nome de vias públicas ligadas a personagens da ditadura. A mudança mais significativa ocorreu no Minhocão. Chamado por 45 anos de Elevado Costa e Silva, o viaduto que liga a zona oeste ao centro paulistano virou Elevado João Goulart. O que falta para autoridades fluminenses seguirem o exemplo de São Paulo e ao menos renomearem a Ponte Presidente Costa e Silva?

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