Inspeção do CNJ constata superlotação e maus-tratos em presídios de Goiás

Segundo relatado pelo Conselho Nacional de Justiça, há instituições com ocupação superior a 200%. Além disso, relatos explicitaram práticas como castigos e tortura

Foto: Luiz Silveira/Agência CNJ

Relatório recém-publicado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aponta que dos 19 presídios inspecionados em Goiás no ano passado, 13 estão superlotados — em alguns casos, a taxa de ocupação é superior a 200%. Também foram constatadas as práticas de maus-tratos e de tortura, além da falta de atendimento adequado em saúde e de alimentação apropriada. 

O documento resulta de missão do CNJ feita em Goiás entre os dias 29 de maio e 2 de junho de 2023. De maneira geral, ficou demonstrado o desrespeito aos direitos humanos em diferentes níveis e aspectos, contrariando preceitos legais, inclusive a Constituição.

O estado tem a oitava maior população carcerária do país, com 21 mil pessoas presas em 88 estabelecimentos, o que equivale a 298 presos por 100 mil habitantes. Segundo o relatório, do total de pessoas privadas de liberdade, quase 74% são negras. 

De acordo com o documento, “o modelo de gestão adotado extrapola a manutenção da custódia segura e as funções declaradas da pena, inclusive com diversos indícios de tortura e maus tratos. Foram documentadas pessoas com feridas visíveis, hematomas e marcas de munição de elastômero”. 

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Além disso, o CNJ verificou o não cumprimento de garantias constitucionais e legais no processo de execução da pena. Entre os problemas encontrados estão a demora no trâmite dos processos de execução; o desrespeito ao caráter progressivo da execução penal, com muitas penas cumpridas em regime integralmente fechado; irregularidades na apuração de faltas graves e ausência de defesa, entre outros. 

Durante a missão, também foi constatada a falta de atendimento adequado à saúde, com episódios recorrentes de desassistência e agravos ocasionados pelas condições de encarceramento, além da falta de itens básicos como água potável e alimentação em quantidade e qualidade inadequadas.

Desrespeito à pessoa

Para além das dificuldades vividas cotidianamente pela população encarcerada, o relatório aponta ainda dificuldades da missão em aferir, pelo depoimento dos próprios presos, a situação das instituições. “Em diversas unidades houve relatos de que as pessoas privadas de liberdade teriam sido orientadas a não compartilhar informações com a equipe de inspeção, em especial quanto a denúncias de irregularidades. O medo e o receio transparecidos por muitos entrevistados reforçam os relatos de intimidações”, afirma.

Ainda assim, foi possível verificar, a partir das visitas e inspeções, “a existência de um quadro sistemático e endêmico de violações na execução penal do estado de Goiás” e de princípios básicos relativos aos direitos dos presos. 

Tais princípios, aponta o relatório, “dizem respeito às regras mínimas estabelecidas para o tratamento de pessoas privadas de liberdade, relacionadas à obrigação de serem tratadas com respeito e dignidade inerentes à condição humana; sem discriminação e com imparcialidade; acesso à habitabilidade, com critérios relacionados à lotação, ambiência, infraestrutura, salubridade, fornecimento de assistências sociais e materiais, entre outros”. 

A violação dos princípios mínimos, diz o documento, “enseja o agravamento do sofrimento, o comprometimento da saúde física e mental e, em suma, o não cumprimento das funções declaradas da pena privativa de liberdade”. 

Superlotação e insalubridade

Dentre as violações detectadas está a superlotação. Quase todos os presídios visitados tinham ocupação superior a 100% das vagas; em dez dos estabelecimentos masculinos, a ocupação superava a linha de corte para controle da superlotação, estabelecida em 137,5%.

O pior quadro foi encontrado na Unidade Prisional Regional de São Luís de Montes Belos, onde há 66 vagas e 149 presos, uma taxa de ocupação superior a 225%. Em seguida está a Casa de Prisão Provisória de Aparecida de Goiânia, com 906 vagas e 1.940 pessoas, taxa de 214%. Neste caso, conforme assinala o relatório, “em algumas celas a situação de superlotação é ainda mais agravada. A título de exemplo, em um dos espaços havia 76 pessoas, mas somente 22 colchões”. 

Soma-se a isso a precária e insalubre estrutura da maioria dos prédios. “Embora constatadas algumas modificações recentes, grande parte dos estabelecimentos prisionais se encontrava em condições de evidente insalubridade, com mofos, infiltrações e goteiras nas paredes e tetos das celas; com ventilação cruzada e iluminação natural diminuta em decorrência da ausência de janelas adequadas; sem proteção ao frio ou ao calor intenso e pintura das paredes deteriorada”. 

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Outro constatação diz respeito aos “castigos” impostos aos presos. De acordo com o documento, “foram uníssonos os relatos de existência de ‘castigos’ e sanções com emprego de violência, tortura, maus-tratos e outros tratamentos cruéis e degradantes, além da privação de direitos”. 

Além disso, destaca, “denúncias recebidas em todos os estabelecimentos prisionais apontam para alarmantes episódios de tortura, envolvendo supostas práticas como eletrochoque, afogamento, sufocamento, desmaio, golpes em genitálias, tapas e, até mesmo, empalamento”. 

Maioria negra

Com base nos dados colhidos, o CNJ também verificou uma sobrerrepresentação de pessoas negras no sistema goiano em relação à população geral do estado. 

O documento lembra que de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em Goiás a população negra representa 63,7% do total da amostragem. Já no sistema prisional, o quadro aproximado, a partir das informações disponibilizadas, é de 73,69% de pessoas negras.

“Tais dados revelam que o sistema de justiça criminal e as violações a direitos identificadas nos estabelecimentos prisionais incidem principalmente sobre a população racializada como não-branca, como expressão do racismo estrutural. Sabe-se que o sistema de justiça criminal opera na reprodução de desigualdades raciais estruturantes da sociedade brasileira”, diz o relatório.

Quanto à mulheres privadas de liberdade, o documento afirma que “o quadro constatado foi de ausência ou insuficiência de assistência material, abandono, sofrimento, trauma psicossocial e desatenção à saúde, tudo a apontar para a invisibilidade sistêmica a que estão sujeitas as mulheres em privação de liberdade”. 

Outro dado alarmante diz respeito aos relatos de pessoas que informaram terem adquirido deficiências em decorrência de tratamentos cruéis, desumanos e degradantes no momento da prisão ou nos próprios estabelecimentos prisionais. “Diversos informes apontaram que deficiências visuais, auditivas e/ou físicas se deram em decorrência de utilização inadequada de armamento menos letal e/ou agressões físicas. O elevado número dessas denúncias, acompanhadas de indícios físicos com elas compatíveis, inspira especial preocupação”, relata o documento. 

A missão do CNJ foi coordenada pelo corregedor nacional de Justiça, ministro Luis Felipe Salomão (STJ), e pelo desembargador Mauro Pereira Martins, então conselheiro supervisor do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas (DMF). A ex-ministra Rosa Weber, então presidente do Supremo Tribunal Federal e do CNJ, acompanhou a missão.

O CNJ fez vistorias semelhantes no estado do Ceará (dezembro de 2021), do Amazonas (maio de 2022) e de Pernambuco (agosto de 2022).