LGBT+ têm conquistas a celebrar e muitas lutas neste mês do orgulho

Antropóloga Regina Facchini mostra que os avanços conquistados até dez anos atrás, são agora alvo de ataques nos legislativos do país por setores ascendentes da extrema-direita.

São Paulo (SP), 02/06/2024 - 28ª Parada do Orgulho LGBT+, com o tema Basta de Negligência e Retrocesso no Legislativo! Vote Consciente por Direitos da População LGBT+, na Avenida Paulista. Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

A trajetória de luta e conquista de direitos pela população LGBTQIA+ no Brasil tem sido marcada por avanços significativos, especialmente nas últimas décadas, mas também enfrenta desafios contínuos, sobretudo com a ascensão do conservadorismo. Esse panorama é analisado pela antropóloga Regina Facchini, pesquisadora e docente do Núcleo de Estudos de Gênero Pagu/Unicamp, e coautora do livro Direitos em Disputa: LGBTI+, Poder e Diferença no Brasil Contemporâneo (Editora Unicamp), junto com Isadora Lins França.

Regina Facchini é antropóloga, docente do Núcleo de Estudos de Gênero Pagu da Unicamp

Em entrevista ao Portal Vermelho, Regina destaca que a população LGBT+ tem um período relativamente curto de reconhecimento oficial. “O período de luta vai desde antes dos anos 1970, mas as demandas dessa população só começam a ser reconhecidas, mesmo, a partir dos anos 1990, com maior intensidade nos anos 2010”, explica. No entanto, esse avanço foi abruptamente interrompido pela ascensão do conservadorismo, que reduziu as possibilidades de obtenção de direitos pelas vias mais tradicionais, como políticas públicas e legislação.

Conquistas relevantes via STF

Uma das principais formas de avanço dos direitos LGBTQIA+ no Brasil tem sido através do Supremo Tribunal Federal (STF). Entre as conquistas destacadas por Regina estão:

  • Reconhecimento da União Estável: O STF reconheceu a união estável entre pessoas do mesmo sexo, garantindo direitos semelhantes aos de casais heterossexuais.
  • Mudança de Nome para Pessoas Trans: Pessoas trans podem mudar seus nomes sem a necessidade de procedimentos invasivos de modificação corporal ou laudos médicos.
  • Reconhecimento da LGBTfobia como Crime: A LGBTfobia foi reconhecida como crime, equiparando-a ao racismo e proporcionando maior proteção legal à população LGBTQIA+.

Políticas públicas e visibilidade

Embora o STF tenha desempenhado um papel crucial, o Executivo também implementou políticas importantes, especialmente no campo da saúde. A antropóloga menciona políticas de saúde específicas para a população LGBT+, incluindo gays, homens bissexuais e pessoas trans, além de políticas relativas ao HIV/AIDS, que foram essenciais.

Nos anos 2000, houve também iniciativas importantes na educação, com a formação de docentes para lidar com questões de gênero, sexualidade e raça em sala de aula, promovidas por organizações como a Ação Educativa. Essas iniciativas contribuíram para a conscientização e inclusão no ambiente escolar.

A visibilidade e apoio à paradas do orgulho LGBT+ também foi uma ação relevante, aumentando a visibilidade e o reconhecimento social da população LGBTQIA+.

Nome social e transformações

Um dos avanços mais transformadores mencionados pela pesquisadora é o reconhecimento do nome social em várias instâncias públicas e privadas. “Isso trouxe uma enorme transformação na vida das pessoas trans, de modo que hoje a gente tem até demandas que se desdobram a partir dessa”, afirma. O reconhecimento do nome social tem permitido que pessoas trans sejam respeitadas em sua identidade de gênero, promovendo dignidade e inclusão.

Embora tenha havido avanços significativos, como a inclusão universitária e algumas políticas de saúde, a luta por direitos plenos e reconhecimento continua. A violência, a invisibilização e a falta de dados precisos são obstáculos que precisam ser superados para que se possa garantir uma vida digna e segura para todos.

Inclusão universitária e mobilidade social

Um dos avanços recentes é a presença crescente de pessoas trans em universidades. “Podia-se dizer que era uma minoria absoluta que conseguia acessar os ambientes universitários”, relembra ela. Hoje, há demandas por cotas para pessoas trans, o que não só facilita o acesso à educação superior, mas também proporciona oportunidades de mobilidade social. “A transfobia no Brasil era e ainda é, com algumas mudanças, algo tão intenso que atava a pessoa numa situação socioeconômica muito desprivilegiada”, destaca.

Desafios específicos e demandas gerais

Apesar das necessidades específicas, Facchini ressalta que as demandas da população LGBT+ são semelhantes às do restante da população: saúde, educação, trabalho, renda e moradia. No entanto, algumas questões permanecem exclusivas e urgentes para pessoas trans, como o uso de banheiros públicos, que ainda está em pauta no STF. “Imagina, a pessoa ganha o acesso a alguns espaços, porque tem um nome social, porque a pessoa se sente mais confiante de estar ali, e aí ela não pode ir ao banheiro naquele espaço, sem passar por constrangimentos”, explica.

Políticas de saúde e HIV/AIDS

As políticas de saúde voltadas para a população LGBTQIA+, especialmente em relação ao HIV/AIDS, continuam sendo um desafio significativo. A eleição de Lula não extinguiu os efeitos do bolsonarismo e o aumento da influência da extrema-direita, que impactam negativamente as políticas públicas. Facchini menciona a necessidade contínua de enfrentar o HIV entre homens que fazem sexo com homens, incluindo gays, bissexuais e a população trans, ressaltando a vulnerabilidade acrescida desse grupo.

Violência e invisibilização

A violência contra a população LGBT+ é um problema alarmante. Regina Facchini cita uma pesquisa do Instituto de Psiquiatria da USP que revela dados chocantes: pessoas trans têm 25 vezes mais chances de sofrer violência sexual do que homens heterossexuais. Mulheres bissexuais têm 12 vezes mais chances, e homens gays têm cinco vezes mais chances. “São dados que são muito impactantes”, afirma ela, ressaltando a gravidade da situação.

A invisibilização de pessoas bissexuais também é uma preocupação. “Há uma série de pressuposições e de invisibilização dessas pessoas e da demanda delas”, diz a antropóloga, destacando a seriedade das situações enfrentadas por essa parcela da população.

A importância dos dados

Para formular políticas públicas eficazes, é crucial conhecer a população LGBT+. Facchini destaca o movimento do IBGE em introduzir questões relativas à mensuração da população LGBT no censo e na Pesquisa Nacional de Saúde. “O movimento LGBT+ precisa muito desses dados para poder gerar outros dados e demandar as coisas”, afirma.

Conquistas simbólicas e representatividade

A luta pelos direitos da população LGBTQIA+ no Brasil abrange não apenas questões concretas do cotidiano, mas também aspectos simbólicos e representativos, especialmente na mídia e no parlamento. “Temos mais participação de pessoas LGBT+ nesses espaços”, afirma ela. A visibilidade e a representação política são fundamentais para medir o bem-estar de um grupo social na sociedade.

Avanços e desafios no Legislativo

A eleição de representantes LGBT+ para cargos legislativos marca um avanço significativo. A pesquisadora menciona o “sucesso eleitoral estrondoso” de candidaturas como a de Erika Hilton e outras pessoas trans. “A representação de pessoas LGBT no legislativo é importantíssima. É simbólico também, mas é absolutamente fundamental”, enfatiza. Essa visibilidade pública serve de exemplo e inspiração para outras pessoas da comunidade LGBT+.

Apesar dos avanços, a visibilidade também atrai desafios. Ela aponta que pessoas trans são alvo frequente de projetos de lei que visam retirar direitos. “Todo santo dia tem um PL novo tematizando direitos de pessoas trans”, lamenta. Essa apropriação do sofrimento das pessoas trans tanto por progressistas quanto por conservadores tem consequências diretas sobre suas vidas.

Transformações na mídia

A representação LGBT+ na mídia tem avançado e, segundo Regina, é uma transformação irreversível. “A população, de modo geral, é menos conservadora do que os setores conservadores querem fazer crer”, argumenta. A inclusão de personagens LGBT+ em novelas e pautas jornalísticas contribui para sensibilizar a maioria da população, que não se alinha com o hiperconservadorismo.

Educação e diversidade

A antropóloga ressalta a importância da educação para combater preconceitos e desinformação. A extrema-direita tem utilizado factóides como “ideologia de gênero” e “kit gay” para gerar pânico moral e ganhar apoio eleitoral. “É preciso que a gente eduque as pessoas para respeitar a diversidade, não só a sexual, mas também a racial e religiosa”, defende. Um esforço educacional é essencial para formar cidadãos críticos que não caiam em fake news e teorias infundadas.

A propagação de mitos, como a “mamadeira de piroca”, tem causado estragos na percepção pública sobre a diversidade. “Quem, com um pouco de bom senso, vai acreditar nisso?”, questiona REgina Facchini, sublinhando a necessidade de combater tais absurdos com educação e informação.

Recuperando espaços

A recente mudança de governo trouxe esperança de recuperação de espaços e políticas voltadas para a comunidade LGBTQIA+. Ela observa que estamos recuperando parcialmente as perdas dos últimos anos, especialmente com a criação de órgãos de gestão relacionados a políticas LGBT+. No entanto, a luta contra a extrema-direita e sua influência legislativa continua sendo um desafio diário.

As reflexões de Regina Facchini evidenciam que, embora tenham ocorrido avanços significativos na representação e nos direitos da população LGBT+, muitos desafios persistem. A luta por visibilidade, inclusão e respeito continua, demandando esforços contínuos tanto no âmbito político quanto educacional. A transformação social requer não apenas a implementação de políticas públicas eficazes, mas também a promoção de uma cultura de respeito e compreensão das diversidades que compõem a sociedade brasileira.

Autor