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João Amazonas, firmeza de princípios e flexibilidade tática

Renato Rabelo*


Faz cinco anos que João Amazonas não está entre nós – ele deixou de viver em 27 de maio de 2002. Ele não ch

Não pode ver, também, o fortalecimento e o crescimento do Partido Comunista do Brasil neste período, o respeito e o prestígio angariados pelo Partido no cenário político brasileiro e seu desempenho histórico neste momento em que o Brasil virou uma fase e caminha para buscar rumos próprios de desenvolvimento e de ampliação da democracia.



Um primeiro ponto que é preciso destacar, quando lembramos de João Amazonas, é a presença de seu pensamento político, de sua contribuição política; ela é forte e permanente entre os comunistas brasileiros. Nestes cinco anos, o PCdoB contou com este legado, que talvez seja a principal herança deixada por João Amazonas para os comunistas – além, é claro, de um Partido Comunista forte, e gozando de grande influência política.



A herança deixada pelo veterano dirigente pode ser resumida em poucas palavras: firmeza de princípios, amplitude e flexibilidade na tática. Um pensamento que, em João Amazonas, pode-se dizer, era uma traço pessoal aprendido ao longo da dura luta política que protagonizou por quase setenta anos de militância comunista. Há um relato, deixado por Victor M. Konder – que, jornalista da imprensa partidária, em meados da década de 1950 foi enviado para Pernambuco para acompanhar o trabalho de organização do Partido naquele estado. E a orientação que recebeu de João Amazonas não podia ser outra: “Nada de movimentos isolados prenhes de reivindicações precipitadas e radicais”, mas procurar aliados, pessoas que “tomam a defesa dos camponeses e advogam a entrega da terra a eles: sacerdotes, desembargadores, líderes políticos, profissionais liberais e outros” – lembrou Victor Konder em seu livro de memórias.



Este foi um ensinamento fundamental, que ajudou o partido a se fortalecer e a não perder o rumo na quadra difícil representada pelas mudanças no mundo socialista, na passagem das décadas de 1980 para a de 1990, e também sob a hegemonia conservadora, neoliberal, que desde então causou grave prejuízo para os lutadores pelo progresso social e pelo socialismo.
O PCdoB assume esta característica, que é seu grande legado, e a incorporou ao próprio pensamento que orienta sua ação política e social. O Partido acaba de completar 85 anos de existência, uma longa e rica trajetória, memorável em um país onde a democracia enfrentou, ao longo do século XX, condições tão adversas. Fundado em 1922, o Partido enfrentou, ao longo desse percurso, mais de 60 anos de clandestinidade, ilegalidade e semi-legalidade impostas pelos regimes dominantes. Viveu condições de plena legalidade apenas nos anos de 1945 a 1947, quando elegeu 14 deputados federais, um senador e vários deputados estaduais e vereadores, cujos mandatos foram cassados depois que o Partido foi proibido, em 1947. Depois, o outro período de legalidade é o atual, que já dura 22 anos (desde legalização, em 1985). Nos demais, enfrentou a perseguição policial, a prisão, tortura, exílio e assassinato político de muitos de seus militantes e dirigentes. Cenário trágico que resultou de situações históricas, em que só havia frestas de liberdade, nas quais foi grande o número de homens e mulheres integrantes do Partido que deram suas vidas em defesa dos ideais comunistas e avançados.



Outro aspecto da atuação de João Amazonas que é preciso frisar, ao evocar sua memória, é seu papel decisivo nas três reorganizações vividas pelo PCdoB desde a década de 1940. No enfrentamento com os períodos de ditadura e no embate contra correntes revisionistas cuja ação teria liquidado o Partido, João Amazonas esteve na frente de batalha pela defesa do Partido. Desde 1941/1943, ele atuou em três reorganizações partidárias onde seu trabalho pertinaz resultou, ao final, no Partido Comunista do Brasil que existe hoje, com suas peculiaridades próprias.



A primeira delas foi durante a ditadura do Estado Novo. A perseguição policial quase desmantelou a direção nacional do Partido que, em 1941, estava quase toda nos cárceres da polícia política; sobreviviam alguns núcleos comunistas na Bahia, Rio de Janeiro, São Paulo, mantidos por dirigentes intermediários do Partido que assumiram os postos vagos da direção nacional e, já naquele ano, iniciaram os contatos que culminaram na realização, em 1943, da clandestina Conferência Nacional da Mantiqueira cujo objetivo era reconstruir a direção nacional. João Amazonas esteve entre os principais dirigentes daquele processo de reorganização, juntamente com Diógenes Arruda, Pedro Pomar, Maurício Grabois, Amarílio de Vasconcelos, entre tantos outros.



A segunda reorganização partidária que teve João Amazonas no centro dos acontecimentos foi a que culminou o forte debate ocorrido entre os dirigentes comunistas no período de 1956 a 1961. Naquela época, formou-se uma corrente na direção nacional que acompanhou as mudanças sinalizadas pelo XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética e pelo dirigente russo, Nikita Kruschev, que apontavam para um enfraquecimento do compromisso revolucionário e para a coexistência pacífica com o imperialismo. Aquele grupo promoveu mudanças estatutárias nesse sentido, rompendo a legalidade partidária pois aquelas alterações não haviam sido aprovadas pelo V Congresso, realizado em 1960 – mudanças que significavam a liquidação do partido revolucionário do proletariado. O debate daqueles anos contrapunha duas posições antagônicas, entre manter os ideais e princípios do Partido constituídos desde a fundação de 1922 ou revisá-los. Foi a luta ideológica mais importante no seio do movimento comunista internacional e brasileiro e, contra a ameaça de liquidação do Partido, um grupo de dirigentes e militantes levantou-se em sua defesa. O desfecho deu-se em 18 de fevereiro de 1962, quando aquele grupo dirigente, liderado por João Amazonas, Maurício Grabois, Pedro Pomar, entre outros, reorganizaram o Partido para manter seus ideais, seu nome, sua identidade. O Partido reorganizado desde 1962 conseguiu crescer e incorporar outras forças políticas revolucionárias, como o caso mais exitoso da Ação Popular, organização política com influência entre trabalhadores e estudantes, que se integrou ao PCdoB em 1972, afirmando a mesma ideologia e política do Partido Comunista.



Por fim, a terceira reorganização do PCdoB, que teve a participação decisiva de João Amazonas, foi a ocorrida em 1979, na 7ª Conferência Nacional, já no final da ditadura militar. Ela reestruturou a direção nacional do Partido depois que uma dezena de dirigentes nacionais terem sido mortos pelo regime ditatorial, e quando – em conseqüência da perseguição policial e da insegurança para sua integridade física, o seu núcleo dirigente nacional teve que viver um período no exterior. Nessa conferência, que ocorreu num período marcado também pelo debate intenso contra um grupo liquidacionista surgido entre dirigentes nacionais, foi reorganizado o Comitê Central e também as direções estaduais do PCdoB.



Foram três momentos decisivos para a construção do Partido, que foi reorganizado três vezes em períodos decisivos de sua historia. Nunca será suficientemente ressaltada a importância da atuação de João Amazonas nestas reorganizações; é essa participação que justifica o reconhecimento de João Amazonas como o “construtor do PCdoB”.



Finalmente, outro ponto que quero ressaltar na trajetória de João Amazonas é sua contribuição teórica, fundamental para a compreensão das contradições de nosso tempo. A lição mais importante que ele deixou, ao analisar a experiência socialista do século XX, foi a constatação das contradições da construção do socialismo, que foi o principal acontecimento daquele período. A primeira delas é a idéia de que não há modelo único para o socialismo, não há um só socialismo, mas – enraizada nas experiências históricas de cada nação – sua construção seguirá um rumo próprio em cada povo, determinado pela maneira como as contradições sociais e a luta contra o imperialismo serão resolvidas em cada país. E João Amazonas tirou a conseqüência necessária dessa conclusão ao insistir na necessidade do desenvolvimento da teoria marxista com o estudo das condições históricas próprias de cada nação. No caso do Brasil, enriquecer o pensamento avançado com o conhecimento das particularidades nacionais, um desafio que João Amazonas enfrentou desde pelo menos os debates do V Congresso do Partido, em 1960.



A outra contribuição teórica importante deixada por João Amazonas decorreu da análise que ele fez, no VIII Congresso do Partido, em 1992, da crise do socialismo nas décadas de 1980 e 1990. Foi a compreensão de que aqueles acontecimentos refletiam a crise da teoria marxista, refletiam a estagnação da teoria, que levou à paralisia política e social e à acomodação. Este era o pano de fundo da débâcle –sem o desenvolvimento da teoria, os problemas postos pelo desafio de construir o socialismo não puderam ser enfrentados de forma condizente com a exigência histórica.



Mas a contribuição teórica decisiva para a compreensão e evolução do pensamento estratégico do PCdoB – quase que uma “descoberta” – foi a noção da existência de uma fase de transição entre o capitalismo e o socialismo, que é um período objetivo. Esta contribuição está fundamentada no seu brilhante trabalho “Capitalismo de Estado na transição para o socialismo: notável contribuição de Lênin à teoria revolucionária do progresso social”, e de desenvolvida no artigo “Etapas econômicas no sistema socialista”, onde escreveu: “As etapas, tanto no socialismo como no capitalismo, são leis fundamentais do desenvolvimento objetivo, exprimem crescimentos quantitativos seguidos de saltos qualitativos na produção, que se refletem igualmente na superestrutura. Por isso, as etapas não podem ser determinadas arbitrariamente, nem suprimidas ou aceleradas artificialmente. Tampouco desconsideradas”. Esta é uma contribuição importante para a compreensão das contradições da experiência de construção do socialismo na URSS e no Leste Europeu, e também da experiência que se mantém, hoje, nos países que persistem no rumo da construção do socialismo. A tese defendida por João Amazonas naquele artigo permite o conhecimento mais agudo e consistente desse processo contraditório, dialético, de superação do capitalismo, ultrapassando as limitações muitas vezes voluntaristas existentes quando se deixou de considerar de forma mais detalhada a existência objetiva da transição.



Este foi um ensinamento fundamental, e o êxito alcançado pelo Partido em nossos dias é conseqüência destas contribuições de João Amazonas, que continuam vivas e ajudam a iluminar a trajetória dos comunistas brasileiros.


 


*Renato Rabelo é o presidente do Partido  Comunista do Brasil-PCdoB