Morte e sobrevivência no vale do calçado
Entre cinco e seis da tarde, frio de seis graus, eles chegam ao sindicato. Botas baratas, calças de lã, blusões de moleton, cachecol no pescoço ou touca na cabeça, são mulheres e homens que acabam de receber aviso prévio na fábrica de calçados em que trab
Publicado 31/05/2007 22:49 | Editado 04/03/2020 17:12
Na tarde em que o Valor visitou o sindicato, na semana passada, a situação era um pouco diferente da habitual. Noventa e nove operários haviam sido simplesmente despedidos, sem aviso prévio e sem notícias de pagamento. “Procurem a Justiça”, foi o que lhes disseram. Um terço dos demitidos está agora no sindicato. São 26 mulheres (duas grávidas) e três homens, trabalhadores de uma empresa exportadora que está aos poucos desaparecendo. Em 2004, empregava 650 pessoas. Agora, nas linhas de produção e na área administrativa, restam 62.
A empresa era especializada em exportação. Saiu pelo mundo a oferecer produção sob encomenda (subcontratação). Trabalhava ao gosto do freguês, para grandes distribuidores e redes de lojas que acrescentavam sua própria marca ao produto de Sapiranga. Os chineses e outros asiáticos, que agiam da mesma forma, mas com vantagem cambial, derrotaram-na na competição pelo cobiçado mercado dos Estados Unidos ou deslocaram-na nas áreas arduamente conquistadas da Europa, da Ásia e até, da América Latina.
O proprietário não dá entrevistas, como a maioria dos empresários do setor, mas aplaudiu quando um colega mais corajoso declarou ao “Estado de S. Paulo” que daria sua fábrica de presente ao novo ministro do Desenvolvimento, Miguel Jorge, se este conseguisse administrar com competência uma exportadora de calçados com dólar abaixo de R$ 2,0.
“Desde o último sábado (quatro dias úteis), já entramos com 120 iniciais na Justiça do Trabalho. Agora serão mais 99”, diz Ivo Caetano, tesoureiro do sindicato, que, advogada ao lado, resolveu promover uma reunião geral no salão de assembléias. Decidiram que, junto à reclamação das verbas rescisórias, impetrarão medida cautelar para penhorar, em favor dos demitidos, os créditos de ICMS e PIS/Cofins que as empresas têm com a Receita Federal. Se não houver dinheiro na empresa, os créditos poderão servir para honrar a dívida trabalhista. Em caso de falência, pela nova lei, os trabalhadores terão prioridade, até o teto individual de 150 salários mínimos. Atualmente, o sindicato patrocina 4 mil ações.
Esta é uma cidade que vive do calçado. Hoje seus habitantes são 88 mil. Eram menos na primeira metade da década de 90, quando o número de “sapateiros” chegava a 35 mil, agora reduzidos a 16 mil, com salário médio de R$ 550. Entre médias e pequenas empresas, fecharam mais de 30 nos limites do município nos últimos três anos.
Resistem as que já trabalhavam para o mercado interno ou tinham rede de lojas de marca no exterior, como a Paquetá, com calçados femininos de custo médio. A Paquetá também não dá entrevistas, mas sua unidade em Sapiranga produz a plena capacidade e, segundo se comenta no sindicato, “está até contratando”.
Exatamente entre a fábrica da Paquetá e o sindicato, como a separá-los, está um prédio moderno, térreo, pintado de rosa, bem cuidado, com mais de um quarteirão de área ocupada. Lá dentro existe uma fábrica completa. Parada. E o prédio está fechado. O imóvel era de uma exportadora subcontratada que faliu. O novo dono do imóvel não encontra clima para colocar as máquinas a funcionar ou passá-las para a frente. “Não queremos máquinas, nem prédios como garantia de débitos trabalhistas, pois não têm liquidez”, diz Caetano. Por isso, a penhora dos créditos fiscais.
A situação em Sapiranga não difere da que se verifica nos 24 municípios produtores de calçados femininos do Rio Grande do Sul. Com epicentro em Novo Hamburgo, à meia hora de Porto Alegre, a indústria se espalhou pelas margens do Rio dos Sinos e do Rio Taquari, em direção à serra gaúcha. Nesta região, a dez minutos de Novo Hamburgo, está Campo Bom, um município onde, em 1935, se instalou a Reichert Calçados, a maior de todas, que, anteontem, anunciou o encerramento de suas atividades.
Segundo a Associação Brasileira da Indústria de Calçados (Abicalçados), o Rio Grande do Sul tinha, em 2005, 3.419 empresas que empregavam 126.784 pessoas. Já nessa época, a indústria demitia mais do que admitia. Segundo o Caged, do Ministério do Trabalho, o saldo de empregos com carteira assinada do setor no Estado, em 2005, foi negativo em 16.720. A esse estoque de desempregados, somaram-se 4.672 no ano passado. Mas há muitas terceirizações (ateliês, de acordo com o jargão local), que empregam sem carteira assinada e são as primeiras a demitir. Estas não constam das estatísticas.
Segundo a Federação dos Trabalhadores na Indústria de Calçados, 65 fábricas ou unidades industriais foram fechadas desde 2005. O Rio Grande do Sul é o Estado que mais exporta calçados, com quase 70% do total. Seguem-se São Paulo e Ceará. Em pares de calçados exportados, comparado o primeiro trimestre de 2007 com igual período de 2006, houve redução de 15% (31,77 milhões em 2006 e 27,07 milhões em 2007) no Rio Grande do Sul. Em valor, a queda foi de 3,6% (US$ 413 milhões contra US$ 398 milhões). No total das exportações brasileiras, a queda é de 0,3% no valor e de 8% em volumes.
Sindicato quer penhorar créditos de ICMS a favor dos demitidos por empresas exportadoras
Os últimos impactos do dólar baixo podem, entretanto, agravar a situação, adverte o diretor-executivo da Abicalçados, Heitor Klein. “Há grande quantidade de contratos fechados com dólar a R$ 2,20 ou mesmo R$ 2,30. Na hora de entregar e receber pelo câmbio do dia, a exportação não cobre os custos. Tornou-se dramática uma situação que já era grave.”
Klein lembra que a crise não é surpresa. Desde 2005, a Abicalçados, com apoio de outras entidades patronais e também dos sindicatos de trabalhadores, reclama contra a política cambial. Aparentemente resignado ante a notícia oficial de que o câmbio não muda – acrescida do anúncio pelo Ministro do Desenvolvimento de que o darwinismo é diretriz da política industrial – o setor passou a pleitear o enquadramento de todas as empresas no Simples, elevação para 35% na Tarifa Externa Comum dos similares importados, e um prazo mais rápido para a devolução dos créditos fiscais, além de elevação do imposto de exportação para o couro wet blue. São medidas paliativas, reconhecem, mas que ajudariam na resistência ao real valorizado. Até agora só houve a elevação da alíquota.
Ontem, em São Paulo, mesmo diante da notícia de 4 mil demissões da Reichert, o ministro do Planejamento, Paulo Bernardo, apenas repetiu que o governo está trabalhando nas medidas para desonerar os setores prejudicados pela valorização excessiva do câmbio. “Mas é necessário analisar e avaliar quais serão as conseqüências para a economia como um todo”, disse ele, ao ser questionado se elas não estão demorando muito para sair. “Não se pode fazer isso da noite para o dia”, acrescentou, afirmando que não se pode mudar a política econômica por conta de um segmento da economia.
Em 2005, uma manifestação dos trabalhadores contra a política cambial interrrompeu a estrada federal que liga o Vale dos Sinos a Porto Alegre. Um operário morreu quando, algemado, teve o pescoço partido por um cassetete de soldado da Brigada Militar.
Não é esta a primeira grande crise da indústria de calçados. Pelos mesmos motivos, dólar baixo, houve quebradeira geral das indústrias tradicionais no Rio Grande do Sul, de 1994 a 1999. “Foi quando Sapiranga tinha aqueles 35 mil sapateiros”, diz o sindicalista Caetano, com nostalgia.
Na época já se recomendavam modernização, design sofisticado, mudança de métodos de marketing internacional e reengenharia nas linhas de produção. “Tudo isso foi feito, a indústria se reequipou e recuperou-se”, diz Klein. “Em 2004, estávamos novamente no auge. Conseguimos melhorar a qualidade e o preço médio do nosso calçado. Produzimos 750 milhões de pares ao ano e estamos presentes em 120 países do mundo. Mas agora, a reengenharia já foi feita e temos de enfrentar a concorrência chinesa, que praticamente não existia há dez anos.”
Concorda com ele o sindicalista Caetano: “A maioria das empresas não demite porque quer simplesmente economizar. Já fizeram isso no passado. Agora demitem porque perderam mercado. Algumas, como a Reichert, entregam sua última encomenda com prejuízo, pagam os trabalhadores e fecham. Outras ficam devendo para governo, fornecedores e trabalhadores.”
Uma empresa calçadista moderna será talvez a que mais emprega mão-de-obra por unidade produzida. Especialmente no ramo de calçados femininos – a especialização gaúcha – por mais atualizada que seja a linha de produção – técnicas computadorizadas são usadas na modelagem e o corte já pode ser feito por máquinas – será sempre necessária a mão-de-obra artesanal, dada a variedade exigida pelo mercado. Estima-se que mil pares de qualidade por dia precisam, em média, de 300 pessoas na linha de produção.
Mas nem tudo é crise. Há empresas que descobriram formas de sobrevivência com criatividade e ousadia. É o caso da Via Uno, fundada há 16 anos, em Novo Hamburgo, com a produção de 30 pares por dia e uma marca (Pìzón) muito pouco atraente. Ao sobrevir à crise da valorização do real em 1994, o fundador, César Minetto, resolveu mudar a marca para Via Uno e lançar-se à conquista da mulher da classe B, de 20 a 40 anos, a quem não agradavam os calçados sintéticos de baixo preço, mas sem poder aquisitivo para o calçado de couro, clássico e bem mais caro.
Nesse intervalo atuou a Via Uno, que resistiu às propostas de trabalhar sob encomenda e preferiu conquistar mercado com design e marca própria. “Substituir um simples fabricante é fácil, basta optar pelo de menor preço. Substituir uma marca forte e consolidada é diferente”, diz Paulo Kielling, 29 anos, gerente de marketing da empresa. “Por isso, fomos para o mundo com a ambição de ter um canal direto com o consumidor.”
Há três anos, no Chile, a Via Uno fez sua estréia na linha de franchising. Instalou-se com uma loja exclusiva num shopping center de Santiago. A franquia chilena foi piloto para uma rede de lojas por todo o Brasil e no exterior. Ontem, inaugurou-se em São Paulo sua 77 loja franqueada do Brasil. “Até domingo, com mais duas em Belo Horizonte e uma em Porto Alegre, seremos 80. E a meta é fechar o ano com 100.” A empresa já tem franquias em toda a Europa, inclusive nos fechados mercados de Itália e Espanha. Nos Estados Unidos, Canadá, México e Argentina, também. São 85 as lojas Via Uno no exterior. “Sofremos, como todos os fabricantes e exportadores, os problemas do câmbio e do juro que se agravam com a competição chinesa. Mas vamos em frente”, diz Kielling, que, “por motivos estratégicos”, não dá números sobre produção e faturamento, apenas o de operários da fábrica de Novo Hamburgo: 4 mil.
Fonte: Valor