Não veja a Veja, Veja o Che: Guevara vive em nossos corações

*Por Enilton Grill
Guevara vive em nossos corações, no coração de quem busca o melhor para o próximo, de quem não pensa em sí, mas em um coletivo (Nalva Praxedes).

Esta semana me abordaram na rua: Tu ‘viu’ a última Veja? E eu fui ver a Veja. E eu recomendo: Não veja a Veja. Veja o Che. Do diário dele: “Nossa atitude para com os feridos contrastava sempre com a do exército, que não somente assassinava os nossos feridos como abandonava os seus”.


 


Outubro de 1967. Há 40 anos, Che Guevara era assassinado a sangue frio num miserável povoado da Bolívia. Ele tinha 39 anos. Corre o vento e o rio passa e hoje uma revista diz que o Che real seria “incapaz de compreender a vida em uma sociedade aberta”. O que essa revista não diz é que, muito antes que qualquer outro Che já nos advertia que a nova sociedade em formação tem de competir muito duramente com o passado.


 


A matéria dessa revista diz que Che era “aferrado com unhas e dentes à rigidez do marxismo leninismo em sua vertente mais totalitária”. A história é um rio veloz que não poupa obstáculos. O socialismo europeu tentou congelar as águas do rio com o burocratismo, o autoritarismo e a completa falta de humanismo. Mudanças radicais ocorreram nestes 40 anos. O Muro de Berlim caiu e soterrou o socialismo europeu. Mas, muito antes, em Argel, em 1962, Che já apontava as rachaduras nas muralhas do Kremlin. Muralhas que para muitos de nós pareciam tão sólidas.


 


Quem sabe a história do socialismo seria outra, hoje, se tivessem dado ouvido às suas palavras. Disse ele quando de retorno de uma viagem à antiga União Soviética: “Estamos todos convalescendo desse mal chamado sectarismo”. Numa outra oportunidade, Che disse: “Não é possível destruir as opiniões na porrada e é isso precisamente o que mata todo o desenvolvimento livre da inteligência”. E a revista tenta emplacar a idéia de que Che era sedento por sangue, que só pensava em matar. Mas o que essa revista não diz é que, quando do início de sua peregrinação, ele atendeu pacientes nos leprosários dos confins do continente. E um dos pacientes, Isaías Silva, relata assim um diálogo dele com o Che: “Eu não atenderia um leproso nem por um milhão de dólares”. E Che respondeu: “Eu também não. Porque a um leproso só se atende por amor”. E diz mais a revista: disse que Che sempre teve uma “maníaca necessidade de matar pessoas”.


 



Mas o que essa revista não diz é que os rebeldes em plena selva montaram um consultório médico. E só um era médico entre eles. E esse médico vai atender uma caravana de crianças barrigudas e moças velhas e homens que são como pelancas secas e vazias, porque a miséria vai transformando cada um em sua própria múmia. O nome desse médico é Ernesto. Mas podem chamar de Che.


 


O mesmo Che que, da África, em 1965, escreveu ao diretor do jornal Marcha de Montevidéu, “Deixe-me dizê-lo, sob o risco de parecer ridículo, que o verdadeiro revolucionário é guiado por grandes sentimentos de amor”. Corre o vento e o rio passa e essa revista diz que o Che foi alguém cuja vida, “exceto na revolução cubana, foi uma seqüência de fracassos”. Mas o que a revista não diz é que, na sua peregrinação pelo continente, ele saiu de si mesmo, incandescido pelo amor, que em sua vida, se traduziu em libertação e em gestos que serviram de exemplo de mobilização. Os sinos dobram por ele, escreveu Eduardo Galeano. Nunca guardou nada para si. Doente está o mundo onde ter e ser significam a mesma coisa. Viver é se dar, acreditava ele. E ele se deu. E foi nesse projeto de vida que ele morreu. Tristeza na morte de um herói poeta o poeta Pablo Neruda. Mas Che vive porque não se mata um sonho. E o minuto final foi encarado com o olhar sereno e altivo. Um olhar de quem via amor e liberdade. Um olhar de quem via esperança.


 


E quem quiser ver o Che que não veja a Veja.


 


Enilton Grill
Radialista