Audiência discute a problemática do livro e da leitura no Ceará
A Assembléia Legislativa, no último dia 18/04 realizou audiência pública para discutir a problemática do livro, da leitura e a situação empregatícia e funcional dos bibliotecários cearenses. Na ocasião, MIleide Floes fez um pronunciamento, qu
Publicado 22/04/2008 13:08 | Editado 04/03/2020 16:36
Gostaria de agradecer aos deputados Artur Bruno e Adahil Barreto pela solicitação desta Audiência Pública. A todos aqui presentes e aos telespectadores, o meu boa tarde.
Antes de enveredarmos pela pauta que nos trouxe aqui, gostaria de fazer algumas considerações a respeito da importância do livro na formação de uma sociedade leitora, de um país de cidadãos conscientes do seu papel. O livro é um instrumento universal de educação e, portanto, se faz necessário que todos tenham acesso a ele, independente de qualquer fator restritivo. Assim, livro é cultura. O poder de uma sociedade é dado pela capacidade comunicativa e pelo capital de informação de seus cidadãos, por isso, livro é direito. Mas, livro é negócio de editores, distribuidores e livreiros, logo, livro também é mercadoria.
O Brasil é considerado, historicamente, um país onde pouco se faz uso da leitura, daí a necessidade permanente de induzir, apoiar e desenvolver pontos de leitura, de distribuição e de venda do livro. São contraditórios os dados referentes ao mercado brasileiro do livro: o alto preço contrasta com o baixo poder aquisitivo da população; políticas governamentais de fomento à produção de livros contrastam com o baixo acesso e prejuízos das livrarias. É necessário que haja alta produção, baixo preço e uma grande malha de livrarias e bibliotecas para garantia da máxima visibilidade do livro em todo o território nacional. Neste sentido, gostaria de ressaltar que não adianta se discutir política pública de leitura sem passarmos pelo entendimento do que fazemos dela. Não se concebe que na discussão sobre “leituras” se permita que um estudante termine o ensino fundamental sem conseguir interpretar um texto de poucas linhas. Reflexo este, da busca desenfreada de resultados apontados apenas para formação de leitores sem qualificá-los naquilo que é mais urgente e primordial que é a interpretação do que se lê. Não acredito em política pública de qualquer coisa se não envolvermos a sociedade em torno da discussão. Neste caso, os professores, os bibliotecários, os escritores, os livreiros, os editores, os gráficos, o poder público através de seus representantes legais, as ONGs, as associações de bairros, os intelectuais, os leitores inseridos em qualquer seguimento sem a harmonia necessária para transformar o seu bairro, a sua cidade, o seu estado e o seu país em um Estado de Leitores, de todas as leituras. Por isso é urgente a necessidade em ampliarmos as discussões na Câmara Estadual do Livro e da Leitura.
Olhando para o que nos sugere a pauta “Problemática do livro e da leitura no Estado do Ceará” e “Situação empregatícia e funcional dos bibliotecários cearenses” percebemos a complementaridade dos temas em relação ao acerto na discussão sobre a problemática do livro e da leitura com a situação empregatícia dos bibliotecários. Sinto necessidade de colocar um terceiro vetor na discussão; a fragilidade ou mesmo inexistência do setor livreiro no Estado do Ceará.
Para facilitar o entendimento do porquê da discussão que perpassa pelas livrarias, busquemos em Geir Campos, em sua Carta aos Livreiros do Brasil escrita em 1960 uma reflexão onde ele diz “… e é quando o leitor põe o pé na porta de uma livraria que começam a fundir-se todos os problemas, sociais e econômicos, culturais e políticos, que cercam a produção e a circulação do livro em nosso país”. Neste sentido, não se pode falar em políticas públicas para o livro e para a leitura percebendo o livreiro apenas como um agente econômico, pois é na cadeia produtiva e comercial do livro que se encontra um dos maiores entraves desta discussão. Nesta cadeia, o mais importante não está na relação apenas da sua movimentação econômica geral mas, indiscutivelmente, está no entendimento de que é nela que estão as maiores repercussões políticas, culturais, educacionais, profissionais, tecnológicas e sociais, ao disseminar educação, cultura, visões de mundo e de idéias.
As livrarias, segundo a divisão clássica da economia em produção, distribuição e consumo, se encontram na esfera da distribuição, preenchendo a necessidade de aproximar o livro do público consumidor. Outra divisão clássica da economia em primária, secundária e terciária, coloca as livrarias na esfera do terciário, que se expande, que se moderniza e que retrata a cara das cidades, pois a livraria representa comércio de um bem cultural precioso, capaz de civilizar e democratizar. Ainda uma outra divisão da economia em setores intensivo em tecnologia, intensivo em trabalho e intensivo em capital, coloca as livrarias em intensivo em trabalho, realizando a grande função social de empregar pessoal permanente ou sazonalmente, direta ou indiretamente.
Se essa teorização pode ser genericamente compreendida e aceita, surge um problema grave quanto ao posicionamento dos próprios livreiros e das autoridades que determinam as políticas econômicas e sociais – o livreiro e o bibliotecário devem ser os aliados estratégicos das autoridades públicas.
Para compreender o mercado livreiro é necessário perceber que a análise social, educacional e cultural, reflete nos números apresentados:
A Câmara Brasileira do Livro considera editora comercial qualquer empresa que publique pelo menos cinco obras por ano;
A tiragem padrão brasileira é de apenas três mil exemplares, menor que a tiragem de um jornal de bairro.
A tendência brasileira tem sido de aumentar o número de títulos e reduzir o número de exemplares, atendendo sempre ao mesmo público leitor.
O livro didático e o chamado “paradidático” correspondem a 54% da produção editorial, deixando 46% para todas as demais possibilidades, caracterizando concentração excessiva e o alto preço de produção.
No Brasil a compra governamental compõe 52% do volume total de negócios, enquanto a compra para bibliotecas públicas corresponde apenas 1% desse faturamento, diferentemente da Europa, por exemplo, onde esta compra atinge 30%.
O brasileiro lê, em média, 1,8 livros por ano.
Neste sentido, gostaria de ressaltar algumas ilhas de excelência e buscar nelas a nossa inspiração: o Rio Grande do Sul mantém uma média de leitura, per capita, em 5,5 livros ao ano. Em Ribeirão Preto, interior de São Paulo a média está próxima a 6, médias estas encontradas em países considerados leitores (Diagnóstico do Setor Livreiro, ANL, outubro de 2007)
Sem envolver as livrarias nas compras governamentais e, sobretudo, sem resolver a falha fundamental da baixa escolaridade e da baixa renda nacional, o Brasil continuará sendo, paradoxalmente, um ótimo produtor e um péssimo consumidor de livros. Assim, o efeito-demonstração e o efeito-vitrine, real motivador que bienais e feiras de livros apresentam, não surtirão os efeitos esperados de uma democratização do livro, útil como cultura, como direito e como negócio.
Dentro deste panorama está hoje em discussão no Brasil o anteprojeto de Lei em Defesa do Livro, discussão esta que faço parte da Comissão Nacional e que tem como objetivos: assegurar uma maior diversidade de livros e títulos ao leitor; assegurar a capacidade cultural e social do País; garantir compra permanente de livros para bibliotecas; garantir a sobrevivência de livrarias independentes de pequeno e médio porte; garantir maior acesso ao livro pela população e diminuir o preço final do livro, como conseqüência. Neste momento, gostaria de solicitar aos deputados desta casa, uma atenção carinhosa para que alcancemos sucesso no nosso pleito. Ressalto que este anteprojeto já foi apresentado por mim nesta tribuna.
Esta discussão se faz necessária e urgente no momento em que a Associação Nacional de Livrarias publica o diagnóstico do Setor Livreiro no Brasil (outubro, 2007). Passemos ao diagnóstico:
2.600 livrarias no Brasil, sendo 70% de médio e pequeno porte. Estas com faturamento mensal entre R$ 35 mil e R$ 45 mil, com um ganho líquido de 5%.
Cada vez menos empresários buscam investir num negócio que exige muito trabalho, muito esforço pessoal e ganho real muito baixo.
Em 1999, 35,5% dos municípios brasileiros possuíam livrarias e em 2006 apenas 30%, representando uma queda de 15,5% dos municípios com livrarias no país (IBGE, 2007).
As livrarias estão distribuídas da seguinte forma no território brasileiro: 53% no Sudeste; 15% no Sul; 20% no Nordeste; 5% no Norte; 4% no Centro-Oeste e 3% no Distrito Federal. Quadro este que analisado com os dados divulgados pela FGV em 2001 sobre a concentração dos maiores índices de pobreza, analfabetismo e desqualificação no ensino médio estarem nas regiões norte e nordeste e que nestas mesmas regiões estão os piores índices de leitores e de quantidade de livrarias e bibliotecas, nos faz acreditar que podemos concluir que pobreza e desqualificação cidadã extinguem livrarias, bibliotecas e leitores, a extinção de livrarias, bibliotecas e leitores aumenta a pobreza e a desqualificação cidadã, num ciclo vicioso de extrema perversão.
Para a ONU a situação ideal para quantidade de livrarias em relação à população é na proporção de uma livraria para cada 10 mil habitantes. No Brasil temos o seguinte quadro:
Região Habitantes Número de livrarias Proporção
Brasil 180 milhões 2.600 72 mil hab / livraria
Rondônia 657 mil 04 164 mil hab / livraria
São Paulo 40 milhões 676 60 mil hab / livraria
Ceará 8 milhões 65 123 mil hab / livraria
Dados nossos excluindo as Livrarias Didáticas de pequeno porte.
Diante do quadro apresentado e da análise rapidamente delineada, digo que vale a pena ressaltar que não existe outra cadeia capaz de produzir e comercializar tanto produto novo e, ao mesmo tempo, tão frágil por estar intrinsecamente ligada às mudanças de humor político, econômico e cultural, das políticas públicas de um país. O país vive hoje um acúmulo de crises, quando a maior delas encontra-se no setor social, no emprego, na segurança, na saúde e na educação, por isso, é grande a necessidade de se ler e de se compreender um texto escrito, devido à urgência de mudança no olhar com que compreendemos nosso país e sua posição no mundo. Por isso justifica a existência de audiências públicas como esta. Parabéns, mais uma vez aos seus provocadores, Deputados Artur Bruno e Adahil Barreto.
Antes de encerrar, gostaria de acrescentar que, talvez, a explicação desta falta de políticas públicas para o livro e leitura em nosso país está centrada no pensamento de Shi Huangdi, imperador da dinastia Qin, 219 e 210 a.C., que dizia “que o monopólio sobre os recursos intelectuais é tão importante para governar um país quanto o controle sobre a produção de arroz ou da seda” (Conturbada História das Bibliotecas, pág. 43), por isso, mandava queimar o livro e matar o seu autor como também a todos os estudiosos pouco propensos em submeter-se a sua autoridade. Em analogia, vemos o pouco caso feito às bibliotecas públicas, que sucumbem ao desprezo nos seus acervos e na ausência de profissionais bibliotecários, pela falta de uma política para ela; a entrega de um parque editorial, antes nacional, ao capital estrangeiro; a existência de um parque de livrarias, precário e pouco comprometido com a formação e qualificação do leitor; livrarias descapitalizadas e entregues ao delírio das grandes redes livreiras em shopping centers, na venda dos best sellers. É percebido que do ano de 2000 para cá, quando saiu o primeiro diagnóstico da leitura em nosso país, os governos municipal, estadual e federal, perceberam a necessidade de mudança, o que foi intensificado em 2003 com a assinatura da Lei do Livro, engavetada há anos.
Acredito que estes pontos sirvam para uma reflexão e acrescento algumas sugestões e encaminhamento do processo:
Que as compras governamentais, federal, estadual e municipal de livros, passe pela rede de livrarias legalmente constituídas (como é feito na França).
Que o livreiro e o bibliotecário sejam aliados estratégicos das políticas de fomento à leitura no país, nos estados e nos municípios.
Que sejam criados incentivos econômicos, fiscais e políticos para manutenção das livrarias.
Que seja aumentada a criação de políticas públicas estadual e municipais do livro.
Que as apostilas adotadas em vários colégios, sejam também, analisadas pelo MEC, quanto a eficácia, como é feito com os livros.
Que seja fiscalizado o comércio do livro didático, hoje praticado de forma irregular nas praças, nos colégios, nos estacionamentos, entre outros.
Que sejam revistos e fiscalizados os fatores que determinam o preço do livro.
Que a Câmara Estadual do Livro e Leitura seja efetivada na prática.
Que seja pensada uma política de Estado para o livro e leitura e não uma política de governo.
O Ceará, a partir de 2000, entrou nesta briga. Lembremos de algumas ações:
Modificou o perfil da Feira do Livro, transformando-a em Bienal, levando para ela discussões neste sentido.
Discutiu e redigiu a sua Lei do Livro, ainda por regulamentar.
Participou ativamente das discussões nacionais em torno do Vivaleitura.
Criou a Câmara Estadual do Livro e da Leitura, primeiro estado a constituí-la.
A Secretaria de Cultura passa a ter um departamento para o livro (COPLA – Coordenadoria Política para o Livro e Acervos).
Anúncio de Investimento na reestruturação das bibliotecas públicas, incluindo as comunitárias.
Anúncio de compra de 3.5 milhões de livros.
Organização de cursos de capacitação aos profissionais da área.
Assembléia Legislativa e a Câmara de Vereadores de Fortaleza entram na discussão.
Interiorização de feiras de livros nas Feiras Regionais do Livro e na Feira do Sebo.
É estranho o descompasso existente dentro das cadeias produtiva, criativa e mediadora da leitura, todas, harmonicamente responsáveis pela formação e manutenção de leitores e de leituras. Busquemos em Monteiro Lobato, no seu texto O Livreiro, a inspiração final: “Entre os mais humildes comércios do mundo está o do livreiro. Embora sua mercadoria seja a base da Civilização, pois que é nela que se fixa a experiência humana, o livro não interessa ao nosso estômago nem a nossa vaidade. Não é portanto compulsoriamente adquirido. – O pão diz ao homem: ou me compras ou morres de fome; – O batom diz à mulher: ou me compras ou te acharão feia. E ambos são ouvidos. Mas se o livro alega que sem ele a ignorância se perpetua, os ignorantes dão de ombros, porque é próprio da ignorância sentir-se feliz em si mesma, como o porco com a lama. E, pois o livreiro vende o artigo mais difícil de vender-se. Qualquer outro lhe daria maiores lucros; ele o sabe e heroicamente permanece livreiro. E é graças a esta generosa abnegação que a árvore da cultura vai aos poucos aprofundando as suas raízes e dilatando a sua fronde. Suprimam-se o livreiro e estará morto o livro – e com a morte do livro retrocederemos à idade da pedra, transfeitos em tapuias comedores de bichos de pau podre. A civilização vê no livreiro o abnegado zelador da lâmpada em que arde e perpetua a trêmula chamazinha da cultura”.
Obrigada pelo convite e pensemos nos nossos papéis.
Maria do Socorro Sampaio Flores (Mileide Flores) é Presidente da Sociedade Amigos da Biblioteca Pública Menezes Pimentel. 1ª Secretária do Sindicato do Comércio Varejista de Livros do Estado do Ceará. Diretora Sindical da Federação do Comércio do Estado do Ceará. Membro da Comissão Nacional em Defesa do Livro. Coordenadora do Movimento Caixeiro Viajante de Leitura e Sócia Administradora da Livraria Feira do Livro.